Reforma Agrária - Questão de Consciência


Secção I

A investida do socialismo contra a propriedade rural

 

Título I

A "Reforma Agrária" e nossa realidade rural

 

Capítulo I

Aspectos positivos de nossa realidade rural

 

Popularidade do fazendeiro na tradição brasileira

Até há bem pouco tempo, o fazendeiro era objeto da consideração e da estima indiscutida de todas as camadas sociais do País. Sua figura, como ela se delineou nas primeiras décadas deste século, é bem conhecida de todos.

Senhor de terras adquiridas pelo trabalho árduo e honrado ou por uma legítima sucessão hereditária, não se contentava em tirar delas, preguiçosamente, o estrito necessário para sua subsistência e a dos seus. Pelo contrário, movido por um nobre anseio de crescente bem-estar e ascensão cultural, aspirava ele ao pleno aproveitamento da fonte de riqueza que tinha em mãos. Para isto, franqueava suas terras largamente às famílias de trabalhadores braçais que, vindos de todos os quadrantes do Brasil e das mais variadas regiões do mundo, procuravam no campo as condições de uma existência honesta e segura. Dedicado de sol a sol à direção da faina rural, o proprietário, associado assim aos trabalhadores braçais na tarefa de tirar do solo recursos de que um e outros iam viver, era verdadeiramente o "pater", o "patrão" de cujos bens e de cuja atuação todos recebiam alimento, teto, roupa e meios de poupança, na medida da situação e da cooperação de cada qual.

E, como as relações de trabalho, quando bem entendidas, não ficam só em seu âmbito mais restrito, mas naturalmente criam compreensão, estima e mútuo apoio nas várias necessidades da vida, a harmonia entre o fazendeiro e o colono criava, freqüentemente, o hábito de este se aconselhar com aquele, recebendo proteção e amparo nos mais diversos assuntos; como, de outro lado, gerava no trabalhador uma dedicação por vezes heróica a seu patrão. É este um dos mais típicos e luminosos elementos de nossa tradição em matéria de relações de trabalho.

A nítida consciência, na opinião pública, dessa íntima e profunda conjugação de esforços e de interesses, manteve-se por muito tempo em nosso País e, mercê de Deus, ainda em larga medida existe. Era e é um dos melhores títulos do fazendeiro à estima geral.

A história de nossas velhas estirpes de proprietários rurais vem de muito antes da época cujo quadro há pouco traçamos. É a história de uma ascensão. Nascida espontaneamente das profundezas da ordem natural das coisas, a propriedade agrícola deu origem entre nós a uma elite social que foi, de início, composta de desbravadores valentes e dinâmicos, a que sucederam gerações de agricultores fixados em suas glebas e postos em luta constante com a natureza bravia do sertão. Aos poucos, a rudeza da terra se foi atenuando, uma tradição agrícola sempre mais completa foi estabelecendo os métodos de trabalho, os sistemas de plantio e a rotina judiciosa e eficiente das atividades rurais. O agricultor ia, com isto, ficando menos absorvido pelas suas funções. Ao mesmo tempo, as cidades se iam multiplicando e as comunicações com o Velho Mundo se iam tornando mais seguras e rápidas. Firme na base econômica que seu trabalho e o de seus maiores lhe haviam formado, o fazendeiro sentia em si a consciência de que a simples posse de um patrimônio não basta para criar uma elite digna desse nome. Da tradição luso-brasileira, marcada a fundo pela influência cristã, herdara ele valores de alma inestimáveis, que cumpria polir e acrescer no convívio com os centros urbanos do Brasil e do exterior.

Daí o aparecimento do agricultor meio citadino, no espírito e nas maneiras. Morava ele de bom grado, durante certa parte do ano, na cidade, e não raro freqüentava a Corte e viajava para a Europa. Mas dedicava gostosamente a outra parte do ano à vida rural, no contato efetivo e natural com os homens e as coisas do campo.

Sem perder suas raízes na terra, essa elite crescia assim, gradualmente, em instrução, cultura e distinção de maneiras. Por esta forma ela se capacitava para – fiel embora a seu cunho agrícola – fornecer à Nação grande número de intelectuais, de comerciantes, de industriais, de estadistas, de homens e de damas de sociedade, que tanto valor e tanto realce deram à nossa vida política, cultural e social.

Enquanto o fazendeiro, assim transformado, ampliava seu raio de ação em benefício do País, por isto mesmo que não deixara de ser fazendeiro continuava contribuindo para nosso progresso agrícola. A área plantada, o número de famílias vivendo do trabalho na lavoura, o volume da produção e da exportação iam crescendo. E graças às riquezas assim acumuladas, firmava-se no exterior o nosso crédito, e as importações, sem perturbarem nossa balança comercial, iam pari passu avultando. Por esta forma o Brasil, outrora atrasado e sem recursos, se ia apetrechando e adornando com todos os produtos do mundo civilizado.

A lavoura era, por esta forma, a base da prosperidade nacional. O impulso que ela deu ao País se tornou notório ao mundo inteiro. Daí veio a reputação de terra da fartura que o Brasil começou a ter já desde os fins do século XIX. Éramos, com os Estados Unidos e a Argentina, a Canaã para a qual afluíam, cheias de esperança e de dinamismo, as multidões da Europa, do Oriente Próximo e do Extremo Oriente.

 

O princípio básico da popularidade do fazendeiro era uma natural afinidade de interesses

Na geral consideração de que então se cercava o agricultor – e com ele o criador, que sob todos os aspectos lhe era igual – não se objetivava principalmente o magnata que, senhor de uma fortuna estável e honrada, podia dispensar favores. Via-se nele, sobretudo, o proprietário legítimo e benemérito que conscientemente, ao promover seu próprio bem-estar, favorecia, por uma profunda e natural entrosagem de interesses, o bem-estar dos trabalhadores, o progresso do principal fator de desenvolvimento de todos os setores econômicos do País, e a ascensão de nosso nível geral de cultura e civilização.

 

Desgaste e renovação de quadros

Este entrosamento vivo entre o interesse do patrão e o do trabalhador, entre o progresso da iniciativa privada e o de toda a Nação, era especialmente palpável pelo processo de conservação e renovação da elite. Punha esta todo o empenho em se manter e em progredir, mas não obstava a que em suas fileiras certos elementos, que se houvessem desgastado e corrompido, decaíssem, desaparecendo rápida ou paulatinamente num merecido anonimato; nem a que elementos novos e estuantes de vitalidade saíssem das fileiras do salariado para terem acesso à condição de proprietários, pequenos, médios ou grandes. Com isto se lhes abria caminho para a promoção cultural e social, mais acentuada, ou menos, que, com a ajuda do tempo, daí normalmente decorreria. Esta possibilidade de acesso do trabalhador rural empreendedor e econômico à condição de proprietário contribuiu, em larga medida, para preparar dois fatos dos mais marcantes em nossa história econômica recente: o loteamento de zonas novas, feito tantas vezes por grandes proprietários desbravadores, e paralelamente o fracionamento orgânico e espontâneo de grandes propriedades em zonas já antigas e densamente povoadas, onde as conveniências do tipo de cultura induziam a esta transformação.

 

Tradição e progresso

Nossa elite rural tradicional revelou, também neste ponto, um senso profundo das realidades e prestou autêntico serviço ao País. Não aceitou a falsa antítese tradição-progresso. Não quis constituir-se como casta hermeticamente fechada e ligada só ao passado. Porém não quis tampouco renunciar à sua própria continuidade, ao seu espírito e às suas tradições.

E assim, se bem que a nossa melhor elite de plantadores e criadores fosse, de modo geral, a continuação histórica das elites do passado, um processo natural legítimo vinha fazendo uma decantação, deixando desaparecer o que perecera e substituindo por outros os elementos mortos. Estes traziam em si as condições de vitalidade necessárias para dar origem a novas famílias desejosas de se incorporarem na elite existente, e constituindo, pois, novas fontes de tradição fecunda e dinâmica.

 

Cunho essencialmente familiar e hereditário

Mencionamos a família, a família cristã, evidentemente, oriunda do Sacramento do Matrimônio, abençoada por Deus e reconhecida pelo Estado. Ela era o esteio de toda esta ordem de coisas, o quadro em que o homem vivia, prosperava e acumulava riquezas espirituais e materiais, e no qual, por fim, exalava o último suspiro implorando a misericórdia de Deus. Constituía a família um verdadeiro escrínio em que o agricultor, ao morrer, deixava seus bens espirituais e materiais para a posteridade.

A instituição da família funde em si, harmonicamente, a tradição e o progresso (14).

Pois nela é que o legado do passado não se estiola, mas é assumido pelas gerações novas que o perpetuam e o acrescem com sua própria contribuição. Foi o cunho familiar dessa elite que lhe assegurou a característica a um tempo tradicional e dinâmica.

 

Influência vivificadora e organizadora do pensamento cristão

Subjacente a esta ordem de coisas estava uma verdadeira "filosofia" cristã, vivificada por toda uma tradição católica dez vezes secular, herdada da terra lusa. Dessa tradição não fizemos senão esboçar aqui alguns grandiosos e harmônicos lineamentos:

– Legitimidade da propriedade privada. Dignidade natural e sobrenatural do trabalhador. Harmonia fundamental entre os interesses deste e do proprietário rural.

– Harmonia fundamental entre os interesses do proprietário rural e do País.

– Propriedade hereditária, que não deve existir só com o seu titular, mas sobreviver na família legítima, célula do organismo social dentro da qual e para a qual o homem vive.

– Preponderância do fator família na estrutura social, e consequentemente harmonia entre tradição e progresso.

– Juntamente com a continuidade da estrutura familiar através das gerações, existência de um duplo processo, de decantação dos elementos desgastados e de assimilação paulatina de elementos novos, aptos a se inserirem nos quadros da elite e a lhe assimilarem o espírito.

Em outros termos, essa tradição comporta como pressupostos:

A legitimidade de uma diferença de classes no plano econômico e social;

A possibilidade de cada um ter uma existência digna e plenamente humana, nas condições que lhe são próprias;

A necessidade, para o bem do País, de que, dessa diferenciação comedida e harmônica, decorra uma cooperação íntima.

Em uma palavra, é nisto que se funda a paz social.

E foi nesta paz social que o Brasil alcançou, como já dissemos, a merecida reputação de um dos países de maior fartura no mundo.


Nota:

14) O verdadeiro significado da tradição, a sua importância numa concepção cristã da vida, Pio XII os pôs em relevo com palavras dirigidas à Nobreza e ao Patriciado Romano em 19 de janeiro de 1944. Citamo-las por causa da sua oportunidade numa época em que o papel da tradição é tão pouco compreendido: "A tradição é coisa muito diferente do simples apego a um passado desaparecido, é justamente o contrário de uma reação que desconfie de todo são progresso. O próprio vocábulo, etimologicamente, é sinônimo de caminho e marcha para a frente; sinonímia, e não identidade. Com efeito, enquanto o progresso indica somente o fato de caminhar para a frente, passo após passo, procurando com o olhar um incerto porvir, a tradição indica também um caminho para a frente, mas um caminho contínuo, que se desenvolve ao mesmo tempo tranqüilo e vivaz, de acordo com as leis da vida, escapando à angustiosa alternativa "si jeunesse savait, si vieilesse pouvait".

... por força da tradição, a juventude, iluminada e guiada pela experiência dos anciãos, avança com passo mais seguro, e a velhice transmite e consigna confiantemente o arado a mãos mais vigorosas, que continuam o sulco já iniciado. Como indica com seu nome, a tradição é um dom que passa de geração em geração; é a tocha que o corredor a cada revezamento confia às mãos de outro, sem que a corrida pare ou arrefeça sua velocidade. Tradição e progresso reciprocamente se completam com tanta harmonia que, assim como a tradição sem o progresso se contrariaria a si mesma, assim também o progresso sem a tradição seria um empreendimento temerário, um salto no escuro". – ("Discorsi e Radiomessaggi", vol. V, págs. 179-180).


Índice  Adiante Atrás Página principal