"O Jornal", Rio de Janeiro, 16 de dezembro 1972
O teste do arco, do teatro e dos quadrinhos
Segundo li em jornais de origens diversas, na França se estão passando três transformações, todas de molde a cindir de alto a baixo a opinião pública daquele país. E não só a de lá. Já se disse que a França é a segunda pátria de todos os homens civilizados. Apesar de tantos e tão duros reveses que ela sofreu neste século, a assertiva continua verdadeira, pelo menos para aqueles a quem civilização é menos matéria do que espírito, menos riqueza do que cultura. Por isto mesmo creio que a essas transformações serão sensíveis quantos ainda conservam o hábito de pensar.
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Não há, no mundo, conjunto urbano mais esplêndido do que o do Louvre, e do eixo que, dele seguindo através da Place de la Concorde, se entronca na Avenida do Champs Elysées e chega ao Arco do Triunfo.
O Louvre é uma das mais altas expressões do bom gosto em matéria residencial. A Place de la Concorde e os Champs Elysées são insuperáveis como obras primas de urbanismo. O Arco do Triunfo é a mais alta representação do que, nos últimos duzentos anos, se tem entendido por glória militar. No seu conjunto, estas quatro grandes realizações culturais formam um todo que nenhuma criação do gênio humano, em tempo algum, superou.
Mas... a demolição bate às portas desta maravilha. Não propriamente para a deitar por terra, mas para a conspurcar, reduzindo sua beleza monumental às proporções risíveis de um brinquedinho anacrônico. Em torno do Arco do Triunfo, com o apoio de Pompidou, haverá em breve todo um anel de enormes arranha-céus em estilo agressivamente moderno. Quem, de então para o futuro, vir o Arco, não pensará mais na "Grande Armée", mas em soldadinhos de chumbo.
Adeus, glória militar!
Bem entendido, de então para o futuro, os arranha-céus se estenderão em torno da Avenida dos Champs Elysées, da Place de la Concorde e do Louvre, como uma erisipela. Uns protestam indignados, em nome do espírito, da cultura e da tradição. Outros aplaudem, em nome da óbvia utilidade comercial, do dinheiro, portanto, e da matéria.
– Permita-me uma pergunta, leitor: qual sua posição?
A Comédie Française é, no gênero, uma instituição inigualada. Fundada no reinado de Luis XIV, vem ela mantendo a arte teatral na França, no mais alto nível. E ainda em nossos dias, ela constitui um dos píncaros de onde se irradia a cultura francesa. Pompidou – segundo leio em uma folha brasileira digna de crédito – acaba de a extinguir oficialmente. E seus atores vão começar a funcionar em uma barraca de circo de cavalinhos!
A razão do gesto do presidente? A folha não o diz. Mas, provavelmente, deve ser econômica. Talvez o local até aqui ocupado pela Comédie possa ser mais "utilmente" aproveitado pelo arrasamento do atual teatro e a construção de um arranha-céu de 80 ou 90 andares, destinado a alojar algum serviço público.
– O leitor concorda com o gesto de Pompidou?
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Que vale mais, como elemento de ensino, Boileau, Corneille e Racine, ou histórias em quadrinhos? Até há pouco, todos os homens alfabetizados optavam pelos três grandes clássicos. E entendiam que se alguém vacilasse na escolha, ou era analfabeto ou nada tinha lucrado em alfabetizar-se. Pois o Ministério da Educação, na França, acaba de cancelar, no curso primário, o estudo de todos os grandes clássicos, substituindo-os por histórias em quadrinho. É, por exemplo, a vitória de Mikey Mouse sobre as fábulas de La Fontaine.
Razão? Os quadrinhos são mais fáceis, mais atuais, e – oh! ironia suprema – atraem mais as crianças para o hábito da leitura.
– Leitor, qual seu modo de pensar sobre o caso?
Uma das razões por que os partidos políticos são tão desbotados e anêmicos em nossos dias, é porque eles se dividem a propósito de assuntos que já não estão entre os de mais interesse para o público. Estas três perguntas, por exemplo, "mordem" muito mais o público da França ou de fora. Pois tomar posição a respeito delas importa em situar-se implicitamente ante os mais altos problemas de que a mente humana possa cogitar. E precisamente neste campo está havendo uma rotação silenciosa, mas enorme, no mundo de hoje.
Em última análise, quem é pelo Arco do Triunfo contra o exclusivismo dos arranha-céus, pela Comédie Française contra o monopólio das repartições públicas e da autarquia, pelo primado absoluto da cultura contra as histórias de quadrinhos, sustenta implicitamente que aos valores do espírito cabe uma missão primordial, que a utilidade material não pode negar. Em outros termos, é pela alma e por Deus contra a ditadura da matéria. Pela civilização contra a barbárie técnica, argentária e burocrática.
E, queira-se ou não, problema mais alto não há. Ademais, ela traz consigo uma série de corolários que estão na raiz de muitas outras opções que desafiam o homem hodierno. Por exemplo, os pedecistas, os "sapos", os socialistas e os comunistas, se forem lógicos, deverão ser pelo totalitarismo dos arranha-céus. Os membros e simpatizantes da TFP deverão ser pelo Arco do Triunfo, pela Comédie e pelos clássicos. Cursilhista coerente será a favor dos arranha-céus. Cursilhista equivocado, contra. E assim por diante.
E o leitor? É a interessante pergunta que lhe faço, para lhe dar ocasião de se definir a seus próprios olhos. Se é que já não o fez.