"O Jornal", Rio de Janeiro, 2 de setembro de 1972
Um "moderado" como mil
Li, há dias, que um maravilhoso processo para diagnóstico do diabetes foi afinal encontrado. Basta extrair do paciente uma pequena gota de sangue e pô-la em contato com uma tira de papel revestido de certa substância química: o diagnóstico surge, imediato e indiscutível, pois a coloração do papel se modifica conforme a dose de açúcar existente no sangue. Pus-me a divagar, então, sobre quanto seria útil um papelucho capaz de revelar a dosagem ideológica das pessoas. O papel, encostado à fronte de qualquer pessoa, mudaria de cor conforme fosse ela direitista, centrista ou esquerdista.
Enquanto eu assim sonhava de olhos abertos, acabava de me aprestar para sair de casa. Tomei o elevador e cheguei à rua. Pouco adiante, encontrei um amigo, professor universitário, que se diz faceiramente esquerdista moderado.
– "No que pensa, assim preocupado? – perguntou ele. – Realmente estou preocupado – respondi-lhe com a idéia do teste ainda na mente. Acabo de receber, com certo atraso, o "Time" de 21 de agosto. E imagine que nele li ser a Rádio Moscou uma campeã em matéria de irradiações em língua estrangeira. Ela emite 1.900 horas por semana, em mais de 80 idiomas. É colossal, terrivelmente colossal. Com o aproveitamento de satélites artificiais para essas emissões, até onde irá essa intoxicação ideológica?"
A notícia não parecia causar a menor preocupação a meu centrista. Com um pouco de precipitação, ele me perguntou: "E você acha que não é um direito dos comunistas utilizar um satélite para comunicar livremente seu pensamento à humanidade inteira?" – "Não" – respondi. "Isto importa em fazer propaganda subversiva em território de outros países. Se fosse para defender de tal intromissão o Brasil, eu chegaria até, se necessário, ao extremo de recomendar a destruição do satélite."
Meu homem ia mudando rapidamente de cor. Estava roxo de indignação. Falou-me aos borbotões sobre a liberdade de pensamento e as "conquistas da Revolução Francesa". De passagem aludiu, é claro, à noite de São Bartolomeu e à Inquisição. E não tinha ainda acabado de deblaterar, quando me estendeu a mão para a despedida.
Não o deixei ir-se. Segurei-lhe a mão e o fitei bem dentro dos olhos. Sorrindo, para distender a situação, eu disse então ao meu furibundo "moderado": "Deixe-me completar a notícia do "Time": Gromiko pensa de modo diverso do seu. Ele acaba de escrever uma carta a Kurt Waldheim, secretário-geral da ONU, manifestando sua apreensão pela desordem que a propaganda das nações ocidentais, enviada por satélite, poderá vir a produzir na Rússia. O ministro do Exterior Soviético propôs um tratado internacional regulando as irradiações de sorte a evitar a interferencia de um país em outro. E deixou entrever que a Rússia se reservava de destruir o satélite, caso tal tratado não fosse feito ou viesse a ser violado". E acrescentei: "Que tal? Gromiko é, então, um Torquemada?"
A irritação de meu interlocutor desaparecera. Com entoação de voz ligeiramente cantante, ele me disse: "Não. É preciso compreender a posição dele. Você e os de seu gênero querem limitar a liberdade de pensamento, para coarctar a evolução do mundo. Vocês representam o passado. Gromiko não cerceia a evolução do mundo. O que ele pleiteia em sua "démarche" é o inverso, isto é, que as forças do passado não freiem a evolução. Assim, a posição dele, no fundo, é liberal.
"Não sou comunista. Também não sou anticomunista. Sou moderado. Por isto, sinto-me no direito de afirmar imparcialmente que a atitude de Gromiko é compreensível. Embora você não goste..." – acrescentou, com um sorriso ácido.
Redargui: "Então, há uma ideologia à qual você cola o rótulo de "futuro" e para a qual reivindica o privilégio de fechar a boca dos adversários. É a ideologia comunista. E depois de chegar a este extremo de unilateralidade, você ainda se diz moderado?" Meu amigo retirou a mão, e me disse secamente, à maneira de despedida: "A humanidade caminha para a frente, quer vocês queiram, quer não queiram. Se não evoluirmos, tudo explodirá." E foi saindo rápido, quase como se fugisse da dita explosão.
Enquanto ele se afastava, gritei-lhe ainda: "Então, os comunistas têm o direito de falar e ainda o de fechar a boca dos outros, hein?, seu moderado"! Ele não "ouvira". Do diálogo, guardei a alegria de ter realizado um teste bem sucedido. O fato narrado pelo "Time" revelara a dosagem de esquerdismo na mente do "moderado", como o papel químico revela a açúcar no diabético.