"O Século", 3 de janeiro de 1932

A Nota da Semana

A Nota da Semana não poderia deixar de se ocupar do desastrado acontecimento que há dias atrás veio trazer mais um golpe profundo aos sentimentos religiosos dos paulistas.

Um militar que, a título interino, ocupava a interventoria à qual foi elevado por uma mera casualidade, que o colocou em uma evidência com a qual nunca sonhara, julga-se no direito de perturbar profundamente a paz religiosa do Estado, para impor aos católicos paulistas seus pontos de vista de acanhado sectarismo, com o rótulo de liberdade de consciência!

Muito barulho levantou o célebre decreto sobre a mendicância, em que o Interventor, estribando-se em alegações absurdas, revogou o próprio Código Penal.

Não lhe fica atrás seu último decreto sobre o ensino religioso, no qual os princípios mais elementares do Direito são abertamente violados. É certo que a função de regulamentar os decretos federais cabe ao Interventor. Nestas condições, poderia S. Exa. ter modificado o decreto do Dr. Lando de Camargo, como bem lhe parecesse.

Nunca poderia, porém, negar toda e qualquer regulamentação ao decreto federal que institui o ensino religioso no Brasil, porquanto isto importa em negar pura e simplesmente aplicação a um decreto promulgado pelo Governo Federal, para vigorar em todo o Brasil.

Exorbitou portanto, evidentemente, o Sr. Interventor de suas funções, e com isto pôs implicitamente em cheque o próprio sistema federativo.

Efetivamente, o decreto ataca a unidade do Brasil sob dois pontos de vista fundamentais: 1) visa quebrar a unidade religiosa, elo poderosíssimo que liga de norte a sul todos os nossos Estados numa admirável comunhão de idéias; 2) quebra a unidade legislativa da nação, negando a um Estado os benefícios que a todos os outros se concedem.

Contra um tal abuso da autoridade, por parte de um funcionário federal, cabia recurso ao Chefe do Governo Provisório. Usando de seus direitos de Pastor e Chefe, o Exmo. e Revmo. Sr. Arcebispo Metropolitano telegrafou ao supremo magistrado da nação, pedindo-lhe que restabelecesse entre nós a justiça e o direito violados.

Temos o direito de esperar do Governo Provisório medidas prontas e eficazes, que forçosamente se impõem como necessárias, ao "espírito jurídico" do Sr. Maurício Cardoso, Ministro da Justiça.

Devemos, no entanto, confessar que tais medidas já se estão fazendo esperar há diversos dias.

Trairá o Governo Provisório sua alta missão de mantenedor da unidade nacional, negando ao povo paulista a justiça que a altos brados reclama? Levará ele a preocupação política a ponto de abandonar seus mais sagrados deveres?

Só o futuro o dirá. Esperemos... sem esperança.

Outro disparate do Sr. Interventor Federal se encontra no curioso telegrama que passou ao Bispo de Campinas, e no qual repetia uma afirmação já feita em telegrama anterior ao Abade do Mosteiro de S. Bento: fora a Igreja, na Idade Média, quem estabelecera o regime da separação entre o Poder Espiritual e o Poder Temporal.

Esta afirmação foi haurida em Augusto Comte. Nem por isto é verdadeira.

De fato, a imensa maioria das nações antigas não fazia distinção alguma entre o Poder Temporal e o Espiritual. Ora era a Igreja que dominava o Estado teocratizado, ora era o Estado que reduzia à mais humilhante vassalagem o Poder Espiritual.

A Igreja, na Idade Média, estabeleceu uma distinção entre os dois poderes, colocando cada qual na sua esfera de ação peculiar, investido na necessária independência, mas, ao mesmo tempo, colaborando estreitamente um com o outro, como exige a própria natureza das respectivas funções.

Nem o Estado era teocrático, nem a Igreja era um mero departamento da administração pública. Igreja e Estado, porém, apoiando-se reciprocamente, colaboravam em estreitíssima união, para a consecução de seus respectivos ideais.

Entre esta situação e o agnosticismo absurdo do Sr. Interventor, contra o qual se levantavam a indignação e cultura de Teixeira Mendes, chefe da Igreja Positivista do Brasil, há um abismo imenso, que só o sectarismo do Sr. Interventor poderia transpor.