"O Século", Domingo, 28 de junho de 1931
A Pastoral Coletiva dos Bispos da Bahia
É possuídos da mais legítima satisfação, que vimos comentar nestas linhas um acontecimento auspicioso e decisivo na história religiosa do Brasil.
A Pastoral Coletiva dos Bispos da Bahia, documento notável na forma e no fundo, vem satisfazer os anseios da alma católica do Brasil.
Muito se tem falado a respeito dos numerosos males que nos assoberbam. Muitos os diagnósticos, muitos os conselhos que nos têm cercado nesta hora difícil de nossa vida política.
Mas o Brasil brasileiro, isto é, o Brasil católico, a todos estes conselhos apenas tem prestado ouvidos inquietos ou distraídos. Inquietos, diante da terrível diversidade com que os conselhos se apresentam, e diante das constantes investidas do interesse pessoal, quase sempre oculto atrás das previsões falaciosas de um brilhante porvir, ou das previsões desanimadoras de um futuro sinistro e derrotista. Distraídos, diante da banalidade invariável das repetições intermináveis e monótonas.
É que, quando se está doente, mais do que dos cuidados do médico, mais do que do zelo de enfermeiros mercenários, a alma necessita do desvelo incessante e bondoso, da proteção tranqüila e acolhedora de um coração de mãe.
E este coração de mãe, com toda a energia temperada de doçura que caracteriza as mães, com toda a lealdade desinteressada e previdente que só um coração de mãe sabe ter, o Episcopado Baiano o abriu de par em par ao povo brasileiro, em uma luminosa Pastoral, que ficará perpetuada nos fastos de nossa história religiosa.
Ecoou, finalmente, no Brasil a única voz que o pode salvar. É a voz da Igreja Católica, Apostólica, Romana, que mais uma vez eleva entre nós, para nos corrigir em nossos desvios, nos reerguer em nossos desfalecimentos, nos animar no momento angustioso em que parece que o próprio solo desaba sob nossos pés.
E neste brado que, partido da Bahia, estende suas vibrações por todo o Brasil, as nossas selvas, os nossos rios, nossos campos e nossas montanhas hão de ter reconhecido as mesmas inflexões que modularam a voz da Igreja Católica, Apostólica,…. [(Romana, através de seus missionarios quando) Nota: no original faltavam algumas palavras; acrescentamos nós as que estão entre parenteses] catequizavam os índios acendendo-lhes nos corações selvagens a chama doce e luminosa da Fé; a mesma voz que morigerou os bandeirantes, exprobando-lhes a ganância, maldizendo-lhes as rapinas, abençoando-lhes o heroísmo; a mesma voz que num murmúrio de conforto, meigo como uma carícia de mãe, ou num grito lancinante de alarma, previdente e cauteloso como o desvelo de um pai, soube ligar o negro, o branco e o vermelho, para atirá-los contra um mesmo inimigo comum – o holandês protestante – que queria destruir a raça, atacando-lhe o cerne: a Fé; a mesma voz que, aos ouvidos dos escravos, pronunciava palavras de esperança em uma vida futura, abrindo-lhes uma nesga de Céu, em plena noite de cativeiro; e que aos senhores murmurava palavras de clemência e de doçura.
Só a Igreja, nas circunstâncias atuais, poderia falar ao Brasil. O que são todos esses partidos, surgidos no ardor passageiro de um instante que a geração de nossos pais não conheceu, e que não conhecerá por sua vez a de nossos filhos? Que são todas estas refregas, todos estes ardores, senão o faiscar de paixões que a ambição suscitou, e que a ambição poderá extinguir? Que credenciais poderá apresentar ao Brasil esta turba multa de políticos, onde a massa dos interesseiros domina por completo um pequeno escol de abnegados? Pequenos como a vida que vivem, fracos e ilusórios como tudo o que não pode durar, os partidos são instáveis pelo próprio fato de serem humanos.
A Igreja, pelo contrário, mergulha suas raízes no nosso mais remoto passado. Quando em seu regaço maternal acolhia os primeiros vagidos de nossa nacionalidade, já 15 séculos de luta lhe davam a respeitabilidade das instituições que o engenho humano não pôde destruir. E hoje a Igreja olha serena para o futuro, certa de que poderão cair as nações, poderão cair as repúblicas e os governos, mas que não cairá Ela, porque veritas Domini manet in aeternum.
Com a sobranceria de quem contempla nossa situação, não arrancando-a da haste do passado, da qual brotou, mas tomando a realidade atual como simples desenvolvimento inevitável de fatores anteriores, e de certo modo superiores à geração atual, a Igreja mais uma vez nos indica o porto a que nos devemos recolher, se não quisermos naufragar nos escolhos em que muitas nações anteriores à nossa, e muitas outras que lhe sucederão talvez, hão de naufragar, se não quiserem reconhecer os princípios básicos em que se têm de estribar.
Não é o câmbio, não é o café, não é a política, que são nossas crises. O câmbio a 3, o café desvalorizado, a anarquia política, são meros sintomas de um mal muito mais geral e muito mais profundo: a crise dos caracteres. É este o ponto culminante da Pastoral, e é esta a verdade fundamental que todos os brasileiros têm de reconhecer.
Se olharmos para o passado, que é que verificamos? É que nossa situação atual é fruto de abusos que se acumularam uns sobre os outros, e que ninguém pôde tolher. Lentamente, as chagas de tantas sinecuras, as úlceras de tantos desmandos se foram gangrenando, até que veio a Revolução de 1930, abcesso terrível em que a nacionalidade quis expelir todos os germens deletérios que a haviam feito sofrer.
E vemos que, lentamente, outras chagas se vão abrindo e generalizando, e que o descontentamento febril da nação indica suficientemente que outro abcesso se vai formando gradualmente no organismo incurável.
É que a terapêutica de que nos servimos não foi adequada a nossos males. Deram ao Brasil um remédio POLÍTICO. E o Brasil precisa de um remédio MORAL. E este engano fatal inutilizou os esforços que se tinham conjugado para solucionar a crise brasileira.
Dissemos que o remédio foi errado, porque foi POLÍTICO. De fato, o mal excede de muito o simples campo da política, e entra em todos os domínios da vida privada.
Quem acompanhar com atenção os movimentos sociais os mais diversos que têm lugar entre nós, chegará facilmente à conclusão sustentada pela Pastoral.
Volvamos os olhos para o esporte. Na vida esportiva campeia freqüentemente a desonestidade. É ao menos o que se deduz do que dizem as diversas associações, ligas e federações esportivas, que se acusam mutuamente de fraude e deslealdade com um furor inconcebível. E freqüentíssimos são os jogos em que o povo agride o juiz, suspeito de suborno.
Do esporte, passemos às organizações de caráter profissional. Estas, em geral, ou são associações mortas, de que se desinteressam os próprios sócios, ou são apenas animadas por uma política desenfreada, em que a luta de pequenos interesses e pequenas facções se faz a golpes de pequenas intrigas e pequenas infâmias.
Das associações de classe, passemos à família. Quem poderá negar que a família atravessa, entre nós, uma crise profunda, que ameaça destruir o velho edifício social brasileiro com o completo naufrágio da organização familiar? Quem poderá porventura, fechar os olhos aos profundos dissídios que jogam os filhos contra os pais, considerados como entes molestos e indignos da menor reverência, e que jogam os cônjuges um contra o outro, em lutas que culminam com o desquite ou uma vergonhosa anulação?
Eis aí diversos terrenos absolutamente alheios à política, e que sofrem dos mesmos males que nos assoberbam na vida pública.
Vemos, por esta simples inspeção à vol d'oiseau, que o mal é muito mais extenso e muito mais profundo do que se pensa. É o próprio caráter nacional que é preciso reerguer, e é só nele que reside a crise.
Tão evidentes são estas verdades, que elas hoje em dia já se impuseram a gregos e troianos, a crentes e descrentes. No entanto, uma inexplicável divergência separa, no formular a receita, aqueles que, quanto ao diagnóstico, foram unânimes.
Só o Catolicismo pode salvar o Brasil, diz a Pastoral. E, efetivamente, qual o outro arrimo para nossa moralidade decadente?
Não se discuta, no momento, o mérito ou demérito da Doutrina Católica. A moral leiga, que se apoderou de nossa nação há 40 anos, produziu os frutos amargos que ora procuramos eliminar. Só em uma moral religiosa, portanto, se poderá encontrar a salvação. Ora, a moral, como outra qualquer idéia e como outro qualquer princípio, se canaliza e se veicula numa nação através de determinadas instituições, de determinadas associações, que são por assim dizer a base material e concreta das ideologias por elas defendidas.
Ora, o Catolicismo, incontestavelmente, é a força moral e religiosa mais influente, mais antiga e mais apta a realizar este desiderato. É mesmo, afirma o insuspeitíssimo Dr. Plinio Barreto, a única coisa organizada que existe no Brasil.
Por que não confiar, portanto, a esta força, o reerguimento da nação? Por que não fazer dela o reduto supremo da nacionalidade periclitante, e o parapeito solidíssimo que nos resguardará do abismo?
Acharão nossos inimigos que é melhor que o Brasil se perca sem o Catolicismo, a que se salve por meio dele? Ser-lhes-á a descrença mais cara do que a Pátria? Colocarão eles suas dúvidas acima de seus mais nobres sentimentos?
Se tal se der, mais um argumento teremos, e poderoso este, contra a moral leiga. Porque, se um sistema de negações e de descrença, um sistema todo feito de destruição, como é o agnosticismo burguês que atualmente ataca a Igreja, auxiliado pelo ateísmo comunista, chega a corromper no homem o próprio patriotismo; se os descrentes querem fazer de sua impiedade o sepulcro em que pretendem atirar o cadáver da nação, nós, os católicos, convidamos a todos aqueles que não querem que o Brasil morra, que não querem que nossa Pátria pereça, e que ainda não estejam definitivamente contaminados pelo morbo fatal da dúvida, que voltem a nós.
Porque somente assim é que se salvará o Brasil.