Plinio Corrêa de Oliveira

 

Guerra psicológica revolucionária:

o que é? Como contrarrestá-la e evitar divisões interiores?

 

 

 

 

 

Chá, Eremo Praesto Sum, 24 de agosto de 1994 

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A D V E R T Ê N C I A

Gravação de exposição do Prof. Plinio para sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.


 

 

Todas as coisas que parecem muito complicadas são muito simples quando a gente vai ao ponto inicial. Quando se fala, por exemplo, dessa guerra, a guerra psy, a guerra psicológica recíproca da Revolução e da Contra-Revolução, dá impressão que é uma coisa complicadíssima, emaranhadíssima etc.

* Para compreender a guerra psicológica é preciso compreender o espírito humano, terreno vivo onde essa guerra se passa, algumas considerações

Pelo contrário, a única coisa complicada que tem, que fica para outra ocasião – nem sei se é oportuna nesta era, se não convém mais esperar outra era –, é compreender o espírito humano que é o terreno vivo onde essa guerra se passa. Porque quando nós falamos em guerra, nosso espírito se reporta naturalmente à guerra militar porque a guerra psicológica é uma coisa análoga à guerra militar embora não tenha nada de derramamento de sangue, nem nada disso. Mas toda guerra é análoga à uma outra guerra. Podem fazer as comparações etc.

Mas há um ponto de divergência entre uma guerra e outra muito importante e que é preciso tomar em consideração. Quando nós falamos em guerra, nós pensamos em dois exércitos que estão combatendo sobre o solo, e o solo é o elemento inerte da guerra.

A gente pisa no solo, calca aos pés etc., ele normalmente não se move. O que pode haver é, por exemplo, uma chuva em que o lamaçal em que a terra dura se transforma – ou pode transformar-se em virtude de uma chuva – muda às vezes as condições de um combate. O avanço da tropa é menos rápido, portanto, um cálculo de que tal tropa deve chegar em tal lugar etc. etc., para desenvolver tal ação, pode ficar perturbada por causa da consistência que o solo toma quando está molhado. Mas são circunstâncias muito especiais e triviais, banais.

Com o espírito humano não. Toda a guerra tem como objetivo um homem, uma alma humana para conquistar. E assim se poderia dizer em certo sentido que não há apenas uma guerra psicológica revolucionária, mas há milhões de guerras psicológicas revolucionárias. Porque em todos os países em que houve ou há uma luta entre a Revolução e a Contra-Revolução, cada alma é como se fosse um paisinho, e em cada alma se trava uma batalha que até certo ponto é autônoma, é um mundo fechado em que as coisas se resolvem de acordo com atitude que cada alma toma.

Então o conhecimento do que age sobre as almas é relativamente fácil de adquirir – relativamente. Mas o conhecimento das reações das almas à vista das armas empregadas por esse ou por aquele, isso é muito diverso, e essa é a parte mais difícil da guerra psicológica revolucionária.

* Analisando uma determinada sopeira, do ponto de vista R-CR

Vamos exemplificar.

Tomar um objetozinho insignificante como...

Ah! O açucareirozinho ele levou.

Mas os senhores estão fartos de ver esse açucareiro em uso hoje em dia. Imitam peças maiores de tamanho de homens. Então é um açucareiro grande que o açucareiro pequeno imita, mas ele imita em geral em forma de boneca, de coisas para brincar com boneca, ele imita uma coisa de gente grande.

Os senhores vejam por exemplo aqui. Foi evidentemente uma sopeira. E naturalmente a sopeira não tem esta história aqui. E a tampa da sopeira se retira, de maneira que ela nem pode ter isto aqui. Mas exceto isto, é uma sopeira.

Eu vou fazer a análise desta sopeira.

Eu não sei onde pôr para os senhores todos verem. Talvez aqui. Dá para todos verem bem?

(Sim!)

Essa sopeira, ela é revolucionária ou ela é contra-revolucionária?

Eu pergunto: que crítica de caráter estético, portanto beleza, pode-se fazer dessa sopeira?

Eu vou fazer a crítica como me parece a mim.

* Um misto de pesadão e leveza que, para os dias de hoje, causa um efeito benéfico

A sopeira tem dois aspectos contraditórios. A parte propriamente da sopeira, a parte que contém a sopa é muito bojuda, um tanto gordalhona quase. E isso, de si, desfavorece as coisas porque as coisas que dão impressão que achatam são sempre feias, e o achatar não é bonito.

Então isso é um defeito que ela tem. Mas as formas dela são bonitas e o conjunto, a gente tomando a tampa e depois tomando a parte baixa, o modo pelo qual ela vai se alargando e depois vai se fechando, e o modo pelo qual as diferenças de superfície vão se sucedendo, é um modo bonito que não é falho de uma certa elegância.

Os senhores querem ter uma prova disso? Imaginem que essa parte aqui – vocês estão vendo bem do que eu esto falando – fosse inteiramente cilíndrica, a sopeira seria um pesadelo.

Agora, quando a gente toma em consideração a sopeira como ela está em cima desses pezinhos, a gente tem impressão de que ela toma uma certa elegância por causa dessas ondulações e por causa dessas asas que são levadas para cima e executam um movimento para o alto enquanto o peso da sopeira executa um movimento para baixo. E isso leva a tornar para o olho humano menos pesadona a sopeira. A gente diria que as asas ajudam as perninhas a carregarem o pernão da sopeira.

Se em qualquer ponto não estiver claro, me interrompam a qualquer momento.

Agora, acontece também que essas perninhas podiam ser menorezinhas. Menores ainda. Os senhores têm impressão de pernas de taturana, aquela taturana pesando sobre umas 200 perninhas pequenas que ela tem de cada lado. É uma coisa desagradável, feia. Mas aqui, as perninhas estão feitas com tanta leveza, que se diria que elas querem dançar. Donde conclui que uma impressão de leveza acaba vencendo. As perninhas executam confortavelmente um movimento elegante como se não estivessem carregando esse mamute. Quer dizer, elas são tão fortezinhas, de um metal tão resistente, que o peso para elas não é nada.

Então, asa e perninhas atenuam a impressão que causa o bojudo da sopeira, e forma um todo leve apesar de um peso quase abdominal dessa parte central da sopeira, e que tudo se compensa. Mesmo a tampinha, os senhores notem que não é inteiramente lisa, ela tem nos seus bordos um desenho. E aqui essa espécie de pontinha da tampa também é leve. De maneira que é um pesão compensado por uma porção de "levezinhas".

Alguém quer objetar qualquer coisa?

Agora, eu poderia dizer outro tanto da bandejinha, mas é inútil – porque ela está sobre um pratinho, uma coisa assim. Mas a sopeira já de si explica o que eu quero dizer.

* Ao contrário da leveza e elegância do Ancien Régime, o século XIX gostava das coisas bojudas

Acontece que eu posso perguntar se essa sopeira é revolucionária ou ela é contra-revolucionária. Eu devo dizer o seguinte: ela é semicontra-revolucionária. Por quê? Porque essa é uma sopeira que imita modelos que se usaram muito na Europa, sobretudo França e Inglaterra usaram muito, são modelos intermediários entre a sopeira do Ancien Régime e a sopeira do começo desse século.

A sopeira do Ancien Régime era muito alada, muito leve, com cupidinhos, com uma porção de coisas que davam impressão que era um objeto semi-celestes caído dos Campos Elíseos – nossa noção de Céu empíreo eles tinham um pouco na de Campos Elíseos – caíam dos Campos Elíseos celestes e que estavam aqui para divertir e deliciar o homem na Terra, mas com tudo quanto é espiritual, psicológico, e leve.

A função delas era produzir no homem aquilo que eles queriam. O Ancien Régime, sobretudo na parte final, queria só viver de sorriso, só de brincadeiras, de ditos interessantes, de ditos leves etc., tudo quanto é ligeiro os encantava, tudo quanto era pesado lhes arrancava tédio e terror.

As asinhas, as perninhas etc., são do Ancien Régime. Mas o século XIX começado sob o domínio pesadão de Napoleão. O século XIX tinha uma tendência para o bojudo, para o gordalhão, para o estável, que não tem sorrisos, não tem caretas, olha para a vida como quem se abana e não pensa nela. É o século do burguês. Enquanto o nobre tende a ser elegante, vaporoso, distinto, quase independente da lei da gravidade, o burguês faz de sua cumplicidade com a lei da gravidade a sua delícia.

Os senhores pegam mesa do Ancien Régime de um ricaço nobre, e depois de um ricaço não nobre. A do ricaço nobre é uma mesa com tampo de mármore, de pórfiro ou de qualquer outra pedra assim muito ornamental. Ela toda é dourada como para causar nos olhos a ilusão de que é feita de ouro, e sobre ela se pousam objetos delicados, bonitos, de porcelana de Sèvres, dessas coisas assim, de outro ouro, de pedras preciosas etc., ela toda é uma mesa do irreal.

* Um dos grandes méritos da nobreza foi o manter-se no equilíbrio próprio às coisas distintas, o que não se consegue sem um grande domínio de si: as cartas dos três últimos Condés

As coisas humanas, elas elevam o homem para um nível no qual o homem só entra com certo esforço e só se mantém com certo esforço. É um dos grandes méritos da nobreza é que até certo ponto, para nós imaginarmos o conforto do nobre na vida, temos que imaginar um homem suspenso ao teto por duas cordas com argolas, e que fica ali suspenso no alto, mas se ele fizer qualquer movimento errado ele cai no chão.

É confortável aquilo?

Alguém dirá:

– É, porque é arejado, é pitoresco...

– Sim, mas aquele equilíbrio é tremendo.

Para estar sempre na última linha da moda, na última linha da elegância, da distinção, para dizer a palavra amável que caia no momento certo etc., é preciso ter o domínio de si e o hábito de fazer coisas incômodas, que é do outro mundo.

Por exemplo, eu andei lendo uma coleção de cartas dos Condés uns para os outros. Os três últimos Condés que houve: pai, filho e neto.

Eles eram chefes do exército dos emigrados, e eles tratavam da direção desse exército, porque eles estavam em alas diferentes e precisavam se entender.

Bem, então tudo graduado. O pai escrevendo para o filho começava:

"Monsieur..."

E era assim por extrema delicadeza.

"Mon père et seigneur..." dizia o filho para o pai.

"Mon cher et veneré grand-père..."

Mais ou menos eram fórmulas dessas.

Então tem que começar por uma frase amável, depois então entra no assunto – que às vezes eram assuntos complicados de dinheiro, de distribuição de tropas, manda para onde, para não sei o quê, promove aquele, trocam oficiais entre si segundo as conveniências de serviço, uma carta técnica.

E depois então:

"Eu não posso dizer-vos, meu caro pai, até que ponto me tarda chegar o momento entre todos bem-aventurado em que me será dado a honra de ter-vos entre os meus braços".

Mas a fórmula varia, não pode ser uma fórmula assim, uma estampilha que a gente coloca em todas as cartas.

Então, terminada uma coisa pesadíssima, com outra asa da sopeira.

* Uma sopeira que para o contra-revolucionário de hoje é um apoio, mas que na época do "Ancien Régime" seria um anestesiante em relação ao espírito revolucionário

No tempo de Napoleão aparece a coisa bojuda. E as sopeiras se tornam bojudas como não eram no Ancien Régime. Mas ainda concedem umas graças alígeras, no sentido que têm asas, aladas, por onde aquela coisa abdominal medonha da sopeira parecer voar. E no parecer voar toma ainda alguma coisa que contenta a Contra-Revolução. De maneira que um aspecto dominante, que é o que chama mais atenção naquele objeto, é aquele bojo, aquele bojo já é revolucionário, mas todo o resto é para fazer o contra-revolucionário engolir a pílula. Por causa das asinhas, por causa daquela pontinha da sopeira, por causa das perninhas e outros pormenores, acontece que a impressão de bojo se atenua muito e o contra-revolucionário mole, por preguiça, por displicência, por tudo acha que está bom.

Então aquele minúsculo objeto os senhores puserem uma... aquilo não é um açucareiro, mas é um porta-adoçantes.

Se os senhores puserem um porta-adoçantes daquele numa mesa de chá, numa conversa que tenham com alguém para receber uma visita, qualquer coisa, sem que os senhores percebam, aquilo vai produzir sobre o visitante aquele efeito. Mas com uma circunstância: é que o contra-revolucionário daquele tempo ficava anestesiado por aquela sopeira e outras coisas do gênero ele ficava preparado para receber.

Para o contra-revolucionário de hoje ela é um apoio. E hoje é contra-revolucionário os senhores porém aquilo na mesa, porque choca tanto o gosto moderno, que empurra para trás o espírito humano para coisas que hoje são arcaicas. E empurrar para o arcaico é sempre separar da Revolução.

* Elementos de Contra-Revolução existem amortecidos no espírito de todo homem, e a guerra psicológica visa fortalecer esses elementos

Os senhores estão vendo então que se verifica a regra que eu enunciei de começo. A definição simplicíssima de guerra revolucionária. É alguém que está engajado no processo da Revolução. É meio revolucionário – meio! – com tendências que a Revolução ainda não venceu inteiramente, nesse sentido ela é meio contra-revolucionária. Isso quase todo o mundo é senão já teria vindo o demônio na Terra de forma visível.

Mas esse elemento de Contra-Revolução que existe no espírito dele, está em contínuo recuo, enfraquecido. O elemento de Revolução está em contínuo avanço.

Qualquer objeto que nós ponhamos ao alcance dele para ele olhar um pouco, fá-lo recuar um pouco.

Ao longo do dia se eu tenho uma casa que toda ela tem coisas contra-revolucionárias, ou semi contra-revolucionárias, ele passando o dia inteiro nessa casa, a Revolução perdeu um mês. E eu fiz um ato insigne de apostolado fazendo a Revolução recuar um mês na cabeça dele, pelo seguinte:

* A força de impacto da Revolução provém da unanimidade; o exemplo da flor do Ipê

A força de impacto da Revolução provém de estar para frente, para frente, para frente. Se ela encontra um pouco de resistência, ela perde mais força do que ela tinha.

É um pouco como o seguinte: nós estamos aqui numa roda, imagine os senhores que entra um dos senhores aqui com uma flor e diz:

– "Olha aqui que magnífica flor..." Vamos dizer, a flor tirada de um ipê; eu suponho que todos saibam o que é ipê. É uma árvore aqui do Brasil que produz flores mais ou menos douradas.

É muito bonito. O ipeseiro quando está cheios de ipês é muito, muito bonito.

Imagine que houvesse um pé de ipê aqui. Um dos senhores colheu, por exemplo, três flores de ipê, e resolveu levar para Nossa Senhora na capela. Passa aqui e diz:

– "Doutor Plinio, antes de levar essas flores para a capela, eu vim mostrar ao senhor, vim mostrar aos meus irmãos de vocação como são bonitas essas flores que eu vou oferecer a Nossa Senhora, se estiverem de acordo, em nome de todos, que vou oferecer".

Todos dizem: "que beleza!" etc.

Realmente o ipê é muito bonito. Mas ele é bonito sobretudo visto de longe. Visto de perto ele tem umas ranhuras. Não sei bem definir aquela cor. Na realidade nem me lembro bem como é a cor. Mas pela impressão que eu tenho, são umas ranhuras violáceas. Mas não é um violeta bonito, porque podia ser azul sobre dourado, ou dourado sobre azul, fazem combinações muito bonitas. Mas não é, a cor é feia, qualquer que seja a tonalidade é feia. Meio marrom ou qualquer coisa.

De maneira que um dos senhores, mais atento, olha para aquilo e diz: "Olhe, eu não acho, eu peço permissão para dizer que a flor é bonita de longe, mas de perto ela perde muito".

É ou não é verdade que o tom de gostar do ipê baixe em muitos? Pelo simples fato que não houve unanimidade vários ficam inseguros. "Será? Será que é bonita mesmo? É muito bonita, eu concordo com fulano, mas aquilo que sicrano está dizendo, não deixa de ser verdade. Mas então no total é bonita ou é feia? Como é que fica isso?"

E o exame do ipê termina no seguinte: "prefiro não pensar porque não sei resolver". E pensa em outra coisa.

Isto é ou não é assim?

* Um modo de detectar se é boa ou má a insegurança produzida pelo não saber definir se um objeto é revolucionário ou contra-revolucionário

Agora, de um modo geral as coisas produzem esses efeitos, produzem, portanto, incerteza, entre outros efeitos. A incerteza produzida é um bem ou é um mal?

Conforme. Se o revolucionário fica mais incerto na sua posição revolucionária, foi um bem. Se, pelo contrário, o contra-revolucionário tem a asneira de ficar mais incerto – porque é diferente, hein, as coisas são diferentes – então foi um mal. Então mesmo quando a gente produz a divisão, uns ficam achando de um jeito, outros ficam achando de outro. Se é sobre uma matéria em que a Revolução e a Contra-Revolução estão em jogo, se a divisão versa implicitamente sobre Revolução e Contra-Revolução foi um bem para dividir os revolucionários. Foi um mal se dividir os contra-revolucionários.

Por quê?

Porque Nosso Senhor teve aquela frase luminosa, como são todas as dEle: "Todo reino dividido em si mesmo perecerá". Todo homem dividido em si mesmo, cheio de incertezas e que tem preguiça de resolver as suas incertezas, acaba atolando num pântano de incertezas em que se afoga.

Então a gente deve levar uma luta interna contra as incertezas, e deve ver sempre Revolução e Contra-Revolução, Revolução e Contra-Revolução.

Os senhores hão de concordar comigo que não é tão complicado entender o jogo, a essência do jogo. O que é complicado é formar um juízo sobre revolucionário ou contra-revolucionário.

O resto é só jogar. Está claro?

Bem, eu tenho que terminar agora, eu posso atender uma pergunta ou uma objeção, não posso estender-me mais. Se alguém tem que fazer uma pergunta ou objeção é o momento.

(Aparte: O senhor há muito tempo estava em Serra Negra, no hotel, e tinha diante de si um relógio cujo mostrador tinha um formato como que Ancien Régime. O senhor estava analisando aquele relógio e o senhor comentou que uma pessoa que nos dias de hoje, estando trabalhando várias horas diante daquele relógio, saía dali com a alma fortalecida para enfrentar uma tentação para o pecado que ela por acaso sofresse depois.)

É verdade.

(Aparte: Não sei se o senhor podia explicar o que é que acontece na alma para o bem e para o mal. Porque também quando ela não analisa algo que é mal, apesar de ela não ter analisado, aquilo produz um efeito na alma dela.)

É verdade.

Eu vou dar a resposta, mas só poderei me estender numa outra reunião. Mas a resposta eu dou.

* Além das normas clássicas para evitar o pecado de impureza, é preciso ter em vista que tudo aquilo que leva ao sublime, diminui a apetência do pecado

Tudo quanto há no homem de carnal e de vulnerado pelo pecado original, que vulnerou nossos corpos, nossas almas, tudo quanto conduz afinal ao pecado da carne, é uma coisa que em virtude do pecado original tem muita veemência dentro do homem.

Há então as regras clássicas, muito santas, muito boas, pelas quais o indivíduo deve evitar de cair no pecado da carne. Ele não deve olhar para as coisas que atraem o pecado da carne, é o primeiro ponto. E em segundo lugar ele não deve ler coisas que versem sobre isso, nem ver películas ou slides etc., que de qualquer maneira excitem esse pecado.

Mas é só isto?

Tudo aquilo que na alma leva ao sublime, diminui na alma o desejo daquele paroxismo que o pecado da carne traz consigo. E o desejo constante do sublime, sem eliminar em nada a atração para o mal, dá elementos para resistir, de primeira ordem.

Agora, infelizmente desta matéria não se trata. Por exemplo, os senhores estão aqui. Se houve algum que tenha ouvido o desenvolvimento desse princípio, o simples enunciado desse princípio por quem quer que seja, me levante o braço.

Os senhores estão vendo o silêncio e várias cabeças que faz assim, como diz: "não há saída, não tem e está acabado. Nem adianta estar perguntando".

É uma das explicações para o profundo charco em que caiu a Humanidade.

* A objeção à tese de que tudo quanto é belo, de si estimula a virtude; o exemplo do ambiente do "Ancien Régime" e Luís XIV

Poderia vir uma objeção contra isso. E a objeção é a seguinte: "Mas se fosse assim, no Ancien Régime deveria haver muito menos impureza do que houve. A gente ouve a história daqueles reis, e, portanto, daquelas cortes, toma por exemplo Luís XIV que é o sol daquele sistema, então teve “fassuras” [mulher de condição moral péssima; neologismo proveniente do nome Fassur, personagem péssimo, citado no Antigo Testamento, em JEREMIAS, capítulo 20, tópicos 1, 2, 3, 6. Também no capítulo 21, tópico 1; capítulo 38, tópico 1. Cfr. https://www.paulus.com.br/biblia-pastoral/C8Q.HTM, n.d.c.]. Mlle. de La Valière, Mme. Montespan e depois umas outras assim de passagem até que morresse a esposa dele, Maria Tereza d'Áustria e ele se casasse com Mme. de Maintenon. No fundo é um desfile em que estão cinco, seis, sete mulheres, das quais apenas duas legítimas. A rainha e a segunda esposa, a marquesa de Maintenon.

"Agora, esse homem que vivia nos esplendores de uma arte que segundo o senhor, Doutor Plinio, deve conduzir à pureza, esse homem entretanto transbordou de impureza".

O argumento não parece irresistível?

Eu às vezes, se eu julgo bem certas fisionomias, não sei bem, eu tenho impressão que quando eu dou um argumento assim, um ou outro pensa: "dessa vez ele se atirou numa entalada na qual ele não sai".

Agora, como é que se responde a isso?

É que ele não admitiu de nenhum modo um princípio fundamental dentro disso que é a incompatibilidade do gosto do sublime com o gosto do que é impuro. Como se contradizem e como há, portanto, um meio de, considerando essa contradição, encontrar aí um elemento para praticar a pureza. Ele fez um raciocínio evidentemente contrário: "o sublime tem delícias, e o carnal tem delícias. Deixa eu somar. Eu sou o rei e me instalo dentro desses dois procedimentos".

Pecou contra a sublimidade e pecou contra a pureza. Não sou eu que digo, é ele.

Quando morreu a esposa dele, Maria Teresa d'Áustria, uma pessoa coitada, boa, muito apagada, muito bobinha, parecia uma ervinha do campo casada com o sol. Quando ela morreu...

Ela chorou muito por causa dele. Porque ele fez brutalidades com ela como o seguinte: em ocasiões em que ele viajava, a etiqueta mandava que a rainha viajasse com ele. Ele viajava com a rainha e duas ou três dessas mulheres dentro do mesmo carro. Ela, às vezes, ia chorando. Ele não se incomodava.

Onde é que dava isso?

Dava no seguinte, quando ela morreu, ele fez esse singular e sincero confiteor, disse: "São as primeiras lágrimas que ela me faz chorar".

O que quer dizer: "Eu fiz chorar a ela tanto, ela coitada, que está aí morta, a vida dela se passou no meio das lágrimas por minha causa". No meio das arrogâncias dele, e das sublimidades, nunca se diria que ele haveria de dizer uma coisa dessa. Diante do cadáver dessa pobre coitada que ele espezinhou a vida inteira.

Talvez nessa ocasião, talvez um pouco depois, começa nele um processo de vergonha e de arrependimento que o levou a abandonar uma “fassura” deslumbrante que ele tinha, que era a marquesa de Montespan, abandonar essa “fassura” e os filhos que ele teve dessa “fassura” – ele teve vários filhos – ele tirou da “fassura” e obrigou a “fassura” a se retirar da corte, e viver numa casa particular em Paris, numa situação muito diminuída. E ela morreu para ele. E ele entregou os filhos para Mme. de Maintenon educar. E Mme. de Maintenon era uma pessoa pobre.

Enfim, eu não vou contar a vida da Mme. de Maintenon. Mas ela era muito bonita, muito inteligente, muito lógica, filha de um protestante que era um dos líderes do protestantismo francês, mas de outro lado muito católica. Convertida e profundamente católica. A tal ponto que fundou uma casa só para auxílio das moças da nobreza empobrecida que se tornou uma ordem religiosa. Explicam aquelas frases do Coração de Jesus a Santa Margarida Maria: "Diga ao rei da França o meu amigo, que etc. etc."

Agora, depois ele levou o tempo inteiro, uma vida muito moralizada que os historiadores apresentam assim: "A fase triste e noturna da vida do rei".

Mas na realidade, se ele teve um hercúleo – porque nele tudo era hercúleo –, ele pecou herculeamente, ele se ergueu herculeamente, e morreu herculeamente.

Bem, meus caros...


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