Plinio Corrêa de Oliveira

 

"Somos os entusiastas da sociedade orgânica"

 

 

 

 

 

 

Santo do Dia, 19 de março de 1993

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A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.


 

Hoje é dia 19 de março, festa de São José. No meio de mil preocupações, mil trabalhos e mil dificuldades, entretanto tenho uma alegria grande a lhes anunciar, e por isso fiz questão de anunciar eu mesmo, e logo no começo da reunião. Eu recebi um telefonema hoje à tarde, do Sr. Azeredo, de Portugal, comunicando-me que a editora com quem estávamos negociando a impressão e edição do nosso livro sobre a Nobreza, em português, aceitou definitivamente o negócio e já mandou o livro para a tipografia. [Aplausos e brado]

Espera-se, de acordo com as afirmações da editora, que mais ou menos dentro de um mês o livro esteja circulando no comércio, em Portugal. De lá devem partir as primeiras centenas de livros para o Brasil, para serem postos também à venda aqui.  De maneira que nós estamos então com o primeiro tiro dessa rajada de artilharia na seguinte situação: A bala já está na boca do canhão, e do lado de cá a coisa já está puxada, é só soltar que solta a bala.

São José, castíssimo esposo da Virgem Maria, pai adotivo do Menino Jesus, proclamado por Leão XIII como padroeiro especial de toda a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, São José quis nos reservar para este dia, esta alegria.  Tanto mais que o Sr. Azeredo, expressamente, tomou a iniciativa de me dizer que ele não deu um passo para que houvesse a coincidência das datas, ele deixou as coisas correrem normalmente. A coincidência das datas foi determinada pelo curso natural e no caso concreto pode-se dizer, portanto, providencial das coisas.  E há um como que um sorriso, e um sorriso que é como que uma promessa de que tudo isso vai ser protegido por São José e protegido por Nossa Senhora.

Vamos ver agora, nos outros países aonde também está caminhando celeremente a tradução, ou os preparativos da edição, vamos ver quando é que sai.  Mas tudo leva a crer que quando o livro de Portugal começar a sair no comércio, os livros de Espanha, de Itália, da França e Alemanha, estarão prontos já para entrar na tipografia ou para passar da tipografia para o comércio também.  De maneira que devemos ter uma ação conjunta de fatores pesando sobre a situação européia num sentido conservador e contra-revolucionário, na época em que isto mais necessário é.

Recomendo, portanto, muito aos senhores, que considerem esta campanha do livro como patrocinada especialmente por São José, e que todos peçamos a ele que neste sentido favoreça de um modo todo particular a nossa campanha.  É o que eu tinha que dizer.  Não sei se alguém quer perguntar alguma coisa a esse respeito.

(Sr. Poli:  Uma outra observação é que o livro foi concluído pelo Senhor Doutor Plinio, como está na página 6, no dia 19 de março de 1992. Portanto no dia de São José do ano passado.) [aplausos]

Essas palmas se devem especialmente a São José. Se nós tivéssemos aqui o turíbulo, nós poderíamos, em vez de palmas, pôr incenso e pedir para a fanfarra [tocar] alguma coisa em louvor a ele.  Mas não houve também [tempo], a notícia foi tão inesperada, e jorrou num dia tão cheio de outras preocupações e ocupações, que não houve tempo para preparar nada disso.

Dr. Camargo, faz favor.

* São José, único santo filho de David (exceção feita de Nosso Senhor), herdeiro do trono de Israel e da mais ilustre dinastia da História

(Dr. Camargo: São José é o único santo filho de David.)

Aliás, é muito bonito, segundo São Pedro Julião Eymard – eu já disse isso aqui – segundo São Pedro Julião Eymard, São José ocupava no mundo judaico a posição que D. Luiz tem no mundo brasileiro. Quer dizer, ele era o primogênito da linhagem de David, com direito ao trono. Bem, depois nasceu o Menino Jesus que tem direito a tudo, é mais do que tudo etc., etc.  Mas leva a que os genealogistas antigos dissessem com muita propriedade que São José e em geral a Casa de David é a mais ilustre dinastia da História.  Não tem dúvida, porque pode imaginar uma dinastia de vinte reis sucessivos, todos eles com os méritos iguais a Carlos Magno, o que é isto em comparação à dinastia em que o Verbo se fez carne e habitou entre nós? Não tem comparação com nada, é absolutamente superior a tudo.

Vamos então agora passar ao comentário do livro da Nobreza.

"5. A monarquia absoluta, hipertrofia da realeza rumo ao Estado totalitário populista

b) Só lhe resta então apoiar-se em burocracias civis e militares – as pesadas "muletas" da realeza absoluta

Com efeito, desligados cada vez mais de nexos vitais com todos os corpos intermediários que constituíam a Nação, esses monarcas absolutos já não tinham os seus apoios naturais, ou tinham-nos debilitados pelo estado de asfixia crescente em que o seu próprio absolutismo os punha.

Incapaz assim de se manter de pé, de andar e de lutar com o apoio dos seus elementos constitutivos naturais – os grupos intermediários – a monarquia absoluta era obrigada a apoiar-se em redes de burocracias cada vez maiores. Esses organismos burocráticos eram as pesadas muletas, reluzentes mas frágeis, dessa realeza de fins do século XVIII. Com efeito, o funcionalismo, quanto maior, tanto mais é pesado. E quanto mais pesado, tanto mais onera aqueles mesmos que, para estarem de pé e andarem, são obrigados a carregá-lo.

Assim, a realeza absoluta e burocrática veio devorando ao longo dos tempos o Estado paterno, familiar e orgânico.

Mencionaremos em seguida alguns exemplos históricos que ilustram como tal processo ocorreu em certos países da Europa.

* Sociedade orgânica e sociedade mecânica: o que é uma e outra?

Os senhores têm aqui uma idéia que tem como pressuposto a noção de sociedade orgânica por oposição à sociedade mecânica. E, portanto, de organismo vivo, - sociedade orgânica, - em relação à máquina que é mecânica. São dois tipos de sociedades. Nós vivemos numa sociedade cada vez mais mecânica e cada vez menos orgânica. O que é que vem a ser uma sociedade orgânica? O que é que vem a ser uma sociedade viva?  O que é que vem a ser, por oposição a isto, uma sociedade mecânica? 

Como eu tenho má memória, eu com freqüência me esqueço do que é que eu escrevi nos próprios livros, de maneira que este livro não saiu ainda do prelo, - nós acabamos de festejar a entrada dele no prelo, esse livro não saindo do prelo e - eu não me lembro bem que exemplos eu dou. Mas acho que dar um pouquinho da doutrina do assunto antes de ver os exemplos, só pode tornar mais claro o valor didático do exemplo. De maneira que vamos entrar na questão.

* Organicidade: algo de nativo, resultante de condições psicológicas hereditárias, pode despertar num determinado povo, gostos e sensibilidades artísticas particulares

Os senhores imaginem o seguinte: uma determinada região, uma região geográfica, num Estado do Brasil, por exemplo, seja ele qual for. Ou numa província de tal ou tal outro país. Por uma série de razões, se desenvolve muito nessa província o pendor dos habitantes para a música. E por exemplo, para organizar coros de fanfarras coletivos, coros musicais, etc., etc.

Quais são as circunstâncias que podem favorecer isto ou que podem despertar isto?

Pode despertar isto, propriamente, algo de nativo que resulta de condições psicológicas hereditárias que fazem com que em determinado povo, e sobretudo em determinada região aonde um certo povo habite, o gosto pela música seja particularmente acentuado. Isto cada um de nós pode sentir em si, alguns terão um pendor maior por exemplo para a música de tal instrumento, outros para música de tal outro instrumento, ou então para tal tipo de música, ou tal outro tipo de música.

Deixando de lado a música, alguns podem ser muito sensíveis às formas artísticas, e outros muito mais sensíveis às cores do que as formas, etc. O que leva a cada indivíduo a ter esses pendores, é algo de orgânico, de psicológico que é acentuado depois por circunstâncias extrínsecas.

* Os granitos que revestem a fachada de certas casas do Jardim São Bento

No meu caso concreto, por exemplo, eu sou muito mais sensível às cores do que às formas, de maneira tal que por exemplo, se eu vejo uma casa construída com formas bonitas, eu me agrado. Mas se essa casa for construída com pedras bonitas, ainda que não sejam pedras caras, mas por exemplo um bonito granito, por causa da cor que algum granito possa ter, eu me regalo em olhar aquela fachada cuja forma até me desagrade.

Por exemplo, há uma casa, um cachotão, simplesmente, construído sobre um terreno em declive, de maneira que a porta de entrada da casa não fica num nível muito acima do chão, mas como o chão tem um declive muito acentuado, o resto da casa já fica no ar; e então o arquiteto achou bonito levantar umas colunas que tendem ao elefantisíaco, umas colunaças mal encaradas e preguiçosas, e já se sabe o que é guardado lá: é o tabernáculo da casa moderna, é o lugar onde se guarda a máquina.  Não se guarda um filho, não se guardam os pais, nem se guarda nada, guarda-se o automóvel da família. É o lado mecânico da vida da família levado ao auge da importância.

Em várias casas do Jardim São Bento, a gente nota isso: no andar térreo é a garagem para o automóvel. Os donos da casa têm que subir uma escadinha em zigue-zague, ou qualquer coisa, posta do lado de fora em que eles tomam sol, tomam chuva, quando ficam velhos pode tomar tombos, podem cair, podem até morrer, pouco importa, no andar térreo está guardado o automóvel.  Que a velha dona da casa possa tomar um tombo e cair naquela escada pouco incomoda, o automóvel não terá que ir para a oficina. O automóvel se guarda durante muito tempo. É o ídolo da casa moderna.

Essa casa, portanto, quanto forma, me desagrada em todos os sentidos da palavra. Mas ela é revestida de um granito, que não é uma beleza, mas o Estado de São Paulo tem no seu solo alguns granitos bonitos, e então eu olho para essa fachada, coberta toda ela com certo granito, eu não saberia bem dizer no momento qual é a cor, se é um marrom escuro, um cinza escuro, é uma coisa assim, é uma cor até de que eu não gosto muito, mas ali está bonita, muito bem lapidado, muito liso.  Eu, cada vez que entro e que saio, se estou distraído, meus olhos se fixam – é mecânico – e eu fixo o granito enquanto o automóvel me der possibilidade de estar olhando.

Se eu seguisse o meu pendor, eu diria ao meu caro Gugelmin que andasse mais devagar para eu ver o granito, mas eu quero que ele não faça isto, porque será seguir um pendor que é exagerado, e, portanto, que convém coibir, mas propriamente a tendência de toda minha pessoa para as pedras bonitas, é enorme.

Num outro lado do Jardim São Bento, há uma casa muito comum como aspecto também, mas que é toda forrada do lado de fora de umas pedras que eu não sei se será granito, se é um granito, é um granito não polido, mas daria impressão... ah, talvez isto, talvez um granito sim, mas um granito com uma peculiaridade: é um granito verde claro, cor de alface, é uma cor que eu aprecio. Não há perigo de eu passar lá perto sem eu fixar esta cor, porque esta cor diz muito respeito a mim. Eu gosto.  Primeiro, toda espécie de cor me atrai, cor bonita me atrai mais do que, por exemplo, a música.

De outro lado, aquele tipo de granito é muito raro, granito verde daquele eu não conheço, se é que é granito; está muito mal trabalhado, está tosco, está um horror, mas eu posso imaginar como é que seria uma coisa que se eu tivesse dinheiro eu mandaria lustrar, etc., e fazer uma coisa inteiramente ao meu gosto, ficaria muito do meu agrado.

Ora, donde é que resulta isso?

* Essa propensão pelas cores que resulta de algo psicológico e físico, que brota da própria personalidade, influenciada pelo ambiente em que se formou

Essa propensão pelas cores resulta de alguma coisa que é meio psicológico e meio físico, depende em algo do meu organismo, e a minha mentalidade é muito propensa também a esta forma direta de se pegar certas coisas pelo olhar e com a facilidade com que o olhar proporciona o conhecimento da verdade sem mais escarafunchação nem nada. Olha, vê, conhece e degusta, pan! direto!

Agora, isto provém então de circunstâncias que a Providência determina através de misteriosas leis de hereditariedade, isto provém de uma série de ancestralidades que qualquer um, nobre ou não nobre tem.  É conjugado com aspectos do ambiente de casa, e daí para fora.  Na casa onde eu formei a minha primeira infância, minha adolescência, etc., que foi a casa da rua Barão de Limeira, as coisas todas eram de cores muito agradáveis, e me chamavam muito a atenção por causa disso. E isso me habituou a ter a atenção muito chamada para as cores.

Resultado: já havia um fundo em mim que era propenso a isso, e cuja razão eu não conheço; não depende de um raciocínio, é uma coisa que brota da própria personalidade, brota em alguns sentidos do próprio organismo, e que é espontâneo, e que não há nenhuma razão para combater porque é um modo de ser lícito, honesto, de uma determinada pessoa.  Ela deve ser como Deus a fez, e se Deus a fez gostando de cores, e não há nenhum inconveniente nisto, pegue as cores que estão aí, olhe e goste, porque foram feitas para isso.  É como a lua e as estrelas do céu a esta hora da noite.  A gente sai, olha e gosta, porque foram feitas para isso.

* Cada coisa criada por Deus, encontrará ao longo da História povos que a admiram de modo especial, para que Sua obra seja glorificada

Então uma pessoa razoável proporciona-se a si própria certos deleites provenientes destes fundos misteriosos de cada individualidade, que estão ligados diretamente ao plano da Providência sobre a pessoa, e ao modo pelo qual Deus quer que sua obra seja glorificada pelo gênero humano. Cada coisa que Deus fez encontrará ao longo da História, povos que a admiraram especialmente, que delas gostaram especialmente, etc., etc., e que por causa disso, de um modo especial aproveitam esses elementos para a arte, e aproveitando para a arte, cantam a glória de Deus.

* Essa apetência boa que o homem sente em si, posta por Deus, ele a deve desenvolver, estimulá-la, de maneira a ser uma fonte de união com o Criador

Não sei se essa noção de organicidade está, portanto, bem expressa. Ela tem qualquer coisa de insondável, de primeiro, de vivo, posto por Deus, que o homem deve conhecer em si e deve até desenvolver. Mas desenvolver não de um modo artificial, mas de um modo vivo, fazendo com que aquela apetência boa se estimule ainda mais. Ela viva ainda mais, e que ela seja para a pessoa, uma fonte de deleite e de união com Deus, como serão para muitas pessoas, as estrelas do céu, os astros, etc.

* Este fundo magnífico e misterioso que existe em cada ser, existe até nos animais e nas plantas

Este fundo magnífico e misterioso que existe em cada ser, que existe até nos animais -- nós vemos animais que são mais propensos para algumas coisas, outros mais propensos para outras, conforme a raça, conforme a espécie, às vezes conforme o indivíduo. Bem, nós vemos algo disso até nas plantas, pelo heliotropismo, por exemplo, do girassol que procura com aquela face um pouco estúpida do girassol, acompanhar o sol. Parece um reflexo idiota do sol. O girassol, por exemplo, ele tem todo um movimento que decorre de sua vida, que é espontâneo, e que se o girassol fosse capaz de compreender, ele procuraria analisar para desenvolver do lado bom, de maneira a dar um arqui-girassol.

* Conhecendo e desenvolvendo a organicidade que existe em si, o indivíduo torna-se, até certo ponto, um servidor de si mesmo

O aperfeiçoamento do gênero humano está muito ligado a isso. Ao conhecer esses “trasfondos” misteriosos que cada um traz consigo, julgá-los de acordo com a moral católica, mas visto que sejam bons, procurar desenvolvê-los de modo temperante mas autêntico, de maneira que eles dêem aquilo que possam dar.

Então toda organicidade, quer dizer, uma coisa que é própria ao organismo vivo – donde vem "organicidade" –, toda a organicidade que existe em cada indivíduo, tem uma série de movimentos que o homem deve conhecer, e de impulsos que ele deve conhecer, analisar e tratar de desenvolver. Nesse sentido, ele é até certo ponto o servidor de si mesmo, ele procura ver o que há em si mesmo de autêntico, de verdadeiro e de bom e procura desenvolver.

* Andará mal o indivíduo que procure combater em si o que ele tem de legítimo, bom e orgânico

Em sentido oposto, ele andará mal se ele procurar combater em si algumas coisas orgânicas, boas, legítimas, porque ele tem um plano. Então, por exemplo, ele fará um raciocínio: "Eu tenho, vamos dizer, um gosto extraordinário pela escultura ou pela pintura.  E, por causa disso, eu daria um grande pintor ou um grande escultor. Mas, em minha época, os grandes pintores e os grandes escultores não são nada em comparação dos grandes ricaços, e eu então vou abafar em mim a tendência para a escultura ou para a pintura, para a qual todo o meu ser tende, para aprender a manusear o dinheiro, para ficar um homem riquíssimo porque desta maneira eu fico mais importante."

Isto é um atentado que o indivíduo comete contra si mesmo, ele se põe numa posição errada, que não vai com seu temperamento, para realizar uma ambição, para dar vazão a uma vaidade que são expressões do lado ruim de sua própria pessoa, e que, portanto, ele deve combater.

Não sei se isto está bem claro, ou não.

* Será orgânico para uma população que tenha toda ela talento para a música de coro e fanfarra, o desenvolver e aperfeiçoar esta tendência

Então, nós podemos imaginar que no vale do rio tal haja uma população que toda ela dê muito para tocar certos instrumentos de uma fanfarra e ao mesmo tempo tenha vozes que são determinadas vozes, não de um certo modo ou de outro, mas determinadas vozes, e que, por causa disso, esse povo que seja um povo trabalhador, mas que nas suas horas vagas, felizmente preservado, suponhamos, da televisão, não tem muito o que fazer, na falta do que fazer, ele tem a tendência a cantar, tem a tendência a tocar música. Isto para ele é orgânico, porque é todo o seu organismo que pede isto.

Resultado. Ao longo do vale do rio tal, numa vertente e na outra do rio tal, os coros, as fanfarras, etc., são numerosos e obedecem a um movimento profundo daquele povo que naquela região geográfica se situa.

* A tendência orgânica e natural de uma região pode ser influenciada pelos aspectos materiais da mesma, embelezados pelo homem

Isto pode ser acentuado por aspectos materiais da região, pelo quadro em que está a região. Há regiões que são muito risonhas, em que a vegetação comporta musgos de um verde claro encantador, em que as árvores dão frutas vermelhas, em que os pássaros cantam de uma determinada maneira, em que as quedas d'água têm um “brouissement” – aquele barulho próprio da água quando cai – que é de uma certa altura, mas não altura exagerada porque a região não tem grandes montanhas, e a água não cai, portanto, de alturas vertiginosas, mas ela cai quase que cantando, pingando as suas gotas sobre a superfície líquida que ela encontra.

Um conjunto de aspectos risonhos do panorama, aspectos que também Deus pôs ali quando criou o mundo. Quer dizer, Deus criou esta harmonia de seres para que o homem a descobrisse, para que o homem a amasse, para que o homem fosse segundo ela, deu talento ao homem para pôr coisas bonitas ali que tornem mais belo o que Deus fez de bonito; Deus quer que o homem complete assim a obra dele. Isso faz com que ao longo daquela região, a música fique influenciada por disposições temperamentais e psicológicas que são meio da região e são meio fruto da obra do homem sobre a região.

Vamos dizer, por exemplo – não sei se se usa ainda na geração novíssima essa expressão: – belvedere. Belvedere em italiano quer dizer, ver coisas bonitas. Um terraço... Vamos dizer que haja por exemplo um ponto do alto do qual se vê um panorama muito bonito. Então ali se plantam algumas árvores bonitas que constituem um quadro agradável. Se faz uma espécie de parapeito para que as pessoas não rolem, mas que dá numa colunata também agradável de ver. Nesse belvedere se reúnem as pessoas para aos domingos à noite cantarem, para aos domingos à noite fazerem música. E, por exemplo, um tipo de música com um instrumento especial que comporte apitos, em que vários apitam enquanto a música toca outros aparelhos.

* Nasce, de modo simpático, do jogo honesto e natural das coisas, uma civilização própria ao povo que ama a música

Tudo meio nascido da espontaneidade, meio provocado pelo ambiente, meio feito da reflexão instintiva, muitas vezes, do homem inculto sobre o ambiente que o cerca e que forma um conjunto de uma obra de cultura que faz com que aquela região elabore certo tipo de música, mas também quando eles vão fazer música, eles elaboram um certo tipo de roupa, e conforme for, um certo tipo de dança que pode perfeitamente ser uma dança inocente.

Os senhores têm todo um começo discreto de civilização que é próprio àquela zona. Isto sai simpaticamente – porque para meu modo de sentir isto é profundamente simpático – isto brota simpaticamente do próprio jogo natural e honesto das coisas vividas por gente casta, que não se mete nas ardências e nas apetências desregradas da impureza, que não se mete nas guloseimas da bebedeira, nem do pecado de gula de alimentos sólidos também, mas que faz tudo isso castamente, que faz isso ordenadamente. Isto se dirá que é a civilização, vamos dizer, dos apitos dourados – se existe um metal dourada naquela zona e se faz apito dourado – do vale do rio tal e tal coisa assim.

É uma coisa espontânea e profundamente conforme à natureza, e à obra de Deus.

* A ruína da sociedade orgânica é o planejamento estatal, que não toma em consideração os mistérios das apetências naturais e hereditárias do homem

Agora, vem um governo e manda sociólogos estudarem esta situação.  E os sociólogos chegam à conclusão de que esta música seria muito mais bonita se não fosse improvisada por artistas espontâneos do lugar, mas mandassem músicos dos conservatórios dramáticos e musicais inspirados em músicos famosos, então tocar tal coisa à maneira de uma sonata, sei lá de que músico, ou à maneira de não sei o quê.  E depois baixam um decreto estabelecendo que as roupas usadas na região não podem ser assim porque consomem muito couro – vamos dizer que sejam roupas de couro –, mas podem ser de tais e tais tecidos fabricados na zona.

E que são muito bonitas de acordo com o que resolveu o departamento de arte da Secretaria de Estado dos Negócios da Cultura. E vem todo um plano de reforma daquela zona. O que é que sai? Estraga a zona, porque ela perde sua naturalidade, e perdendo sua naturalidade, ela é como um automóvel a cujo motor a gasolina não consegue mais chegar. A vida não entra mais nessas concepções, mas é uma coisa artificial, imaginada de acordo com uma lógica que não toma em consideração os mistérios das apetências naturais e hereditárias do homem, e que com isso faz as coisas artificiais dos dias de hoje.

Não sei se isto está claro ou não. Àqueles para quem isto está claro...

* É uma das finalidades da TFP, desde que ela consiga influenciar uma região ou um Estado, é voltar tanto quanto possível à naturalidade boa e razoável da sociedade orgânica

Bem, eu pediria que os senhores tomassem em consideração o seguinte: eu vi que as mãos se levantaram tão rapidamente e com uma tal unanimidade, que eu tive a alegria de constatar que todos nós estamos de acordo em que uma das finalidades da TFP, desde que ela consiga influenciar uma região ou um Estado, é voltar tanto quanto possível à naturalidade. A naturalidade boa, não é o cultivar a naturalidade errada, mas é a naturalidade razoável, boa, e que nós somos os entusiastas da sociedade orgânica.

... faz um assentimento que me faz a idéia de que é mais ou menos isso mesmo.

* Descrevendo um quadro que retrata um caipira brasileiro: revestido de andrajos, aparece nele a bondade e a sutileza que lhe são próprias

Então quando chega lá, a água está completamente pura, limpa, e que há até um clube de natação que nada no Tietê, e que naturalmente engolem a água, etc., etc., sem dano para ninguém, que as impurezas decorrentes daí, daí a pouco já estão no chão também.  E que ao longo de toda sua extensão o rio vai fazendo esse serviço de limpeza, de autolimpeza, e o que é ruim fica para baixo, o que é bom fica para cima. É a natural tendência de aristocratização da natureza que se poderia considerar.

Tinha, nesse quadro, um filete de água que teria que correr, aquele filete, uns 500 quilômetros para deitar para baixo todas as impurezas e ficar água cristalina. Mas, enfim, tinha aquilo.

Perto assim deste filete de água, uma pedra com uma superfície grande e um caipira andando com um certo cuidado, descalço, com os trajes não bonitos dos caipiras, e dirigindo-se para aquele filete de água com um machado na mão, e com manifesto intuito de afiar o machado de encontro à pedra.  Mas que olha supostamente para quem está fora do quadro com um olhar com certa sutileza, com certa acuidade, com uma certa bondade também, uma certa doçura que são aspectos dos mais simpáticos do caipira.

Então, ao lado dessa natureza mal tratada, mal preparada, mal arranjada, esse homem vestido pundorosamente mas de um modo lamentável, com um cabelo assim, não muito abundante, flutuando ao capricho dos ventos, e eventualmente das moscas que se sacodem dentro dele, sei lá o quê é que tem lá dentro daquela grenha, mas que é bom, é simpático, é sutil, tem sua inteligência e que olha com uma certa receptividade para quem vem e que possa precisar dele para qualquer coisa.  Porque o caipira está disposto a servir, ele é naturalmente tendente a ser amigo, a ser acolhedor, a ser afável.  O lado bom e o lado ruim estão expressos ali.

Um tipo de arte desses, é verdadeira arte porque exprime a realidade com muita vida, mas sobretudo é arte porque traça um programa para quem vê. Esse lado é bom, seria bom a gente incentivar: olhe como um bom professor de caipira deveria tratar um menino caipira. Isso é um lado da coisa.

* O lado ruim do quadro é apresentar como coisa pitoresca os defeitos do caipira, como se não devessem ser corrigidos

Agora, de outro lado, ele é ruim porque quer apresentar os defeitos do caipira como coisa pitoresca porque o caipira é brasileiro. Como se houvesse uma imaculada conceição do brasileiro, e que no brasileiro não houvesse nada para corrigir de bom. É a condição para não se corrigir nunca de nada, é a gente cair nesse embevecimento de si mesmo ou de sua própria família. Não é! Tudo tem defeitos, e a gente tem que estar numa luta contínua contra tudo dentro de si mesmo e fora de si mesmo, do contrário o mal toma conta. Acabou-se!

Mas posto isto, um jeito, uma “souplesse”, uma percepção de como são os outros, uma capacidade de guiá-los para o bem, de fazer isto com estima, com respeito, com afeto que é o próprio de quem toma a vida orgânica e procura melhorá-la na linha de sua própria lógica. E na linha de suas próprias virtudes.

* Com amor corretivo, o não caipira deve tender a corrigir os defeitos do caipira, de acordo com a natureza deste, e não de modo artificial, burocrático

Isto é a boa organicidade bem dirigida por verdadeiros líderes. Por que verdadeiros líderes? Porque eu estou descrevendo esta posição do caipira com essa facilidade porque sou brasileiro, porque tenho em mim coisas que por conaturalidade me fazem compreendê-lo, e não me envergonhar diante dele, porque sei que, como todo homem, se ele tiver quem o eduque ele tomará jeito. E sei que quem tem que educá-lo é o brasileiro não caipira. E, portanto, eu devo ver com amor, mas com amor corretivo, não com amor cúmplice, é com amor corretivo, eu devo ver estes defeitos, e tender a corrigi-los, mas de acordo com a própria natureza deles, e não de um modo assim, de tipo de campo de concentração, de modo artificial, burocrático, etc. Foi o que eu quis exprimir neste trecho de livro que o... [aplausos]

* Certas atitudes de respeito à organicidade podem parecer exageradas. Por exemplo, preferir a espontânea purificação das águas do Tietê àquela feita por máquinas

É preciso ter um modo ser muito matizado e muito equilibrado para fazer essas coisas. Mas, pode-se chegar, sem exagero, a atitudes de respeito para com a organicidade das coisas, que podem parecer, entretanto, exageradas.

Mas, por exemplo, sabendo que um curso de água, no caso concreto o Tietê, mas os cursos de água, me disseram que habitualmente trabalham assim, um curso de água que espontaneamente se limpa a si próprio, e chega limpo a um determinado lugar, se me propusessem de pôr uma máquina super eficaz para meter dentro d'água por meio de jatos, assim tipo spray, desinfetantes fortíssimos, que matassem nesta água todos os micróbios, de maneira que os contágios se tornassem impossíveis. Depois substâncias odoríferas que dessem a essa água um sabor agradável; tintas que dessem a essa água uma cor agradável, e saísse uma água teórica calculada como uma água ideal, uma água nascida no Olimpo dos gregos, que era o céu dos gregos, eu preferiria o Tietê como ele chega em Jaú, simplesmente e a priori pelo fato de que o Tietê chega a Jaú assim espontaneamente.

Se é espontâneo, é uma obra direta de Deus. Se é uma obra direta de Deus, pode ser que o homem intervindo, Deus que quer que a obra dEle seja melhorada pelo homem, que Deus queira que essa intervenção seja melhor do que a espontaneidade. Mas o homem é tão tonto, que existe uma porção de possibilidades dessa intervenção não ser bem feita, e acabar saindo tolice. Enquanto, pelo contrário, se deixar o jogo das coisas jogar-se bem, a água que chega limpa a Jaú, eu confio mais nela, aprecio mais, tenho mais vontade de bebê-la do que essa água filha da técnica.

Esta conseqüência final está clara ou não?

(Claríssima!)

* Num primeiro arranjo o homem pode melhorar aquilo que nasceu espontaneamente, mas ao cabo de algum tempo suas idéias forçadas perdem o contato com a realidade, e a estragam

Como também com a região do rio tal que tem músicos com trajes próprios, apitos próprios, partituras próprias, danças próprias, etc.  Eu compreendo que um sociólogo dê alguma idéia bonita para melhorar aquilo, mas se começam a mexer dentro os sociólogos, um dará uma idéia bonita, e vinte, trinta darão idéias forçadas que perderam o contato com a realidade e me estragam o negócio.

De maneira que é a mesma coisa do que se houvesse um progresso potentíssimo que desse aos homens a possibilidade de modificar a disposição das estrelas no céu, para ficar mais bonita ainda. Eu não quereria, porque os homens começam, fazem um primeiro arranjo um pouco bonitinho, daqui a uns cem anos, o céu virou um horror de mau gosto, de falta de jeito... deixa como Deus pôs lá, aquilo acaba dando certo.

Eu acho que já é muito tarde e que nós podemos deixar isso, portanto, para uma parte de nossa reunião de sábado. Ao menos nós ficamos com uma certa idéia do que é que venha a ser a famosa organicidade.

* A técnica, quando não é indispensável, estraga

Vem aí a comparação: o homem que anda com as suas próprias pernas, anda organicamente. Um homem que mande fazer para si muletas esplêndidas mas que de fato não precisa delas, ou que está condenado a usá-las, anda de um modo artificial. Pode ser para ele um mal menor, mas o verdadeiro é andar de um modo natural. E quem queira chegar para um homem e dizer: "Vendo você andar, eu andei analisando, vejo que você anda bem como todo o mundo, mas se você andar com umas muletas, você fica mais elegante."

Eu digo: Não, esse é um doido, empurra esse conselho de lado porque a técnica quando entra no que ela não é indispensável, a técnica que é quase um mal necessário, não chega a ser isto, a técnica estraga, porque o homem estraga. Vamos pôr as coisas como ela são na sua boa ordem natural.

* Luiz XIV e os reis post-medievais foram perdendo a idéia da organicidade, intervindo cada vez mais nos municípios e nos corpos intermediários

Isto é o que Luís XIV e os reis anteriores a ele, os reis post-medievais – os reis medievais tinham essa idéia da organicidade levado ao auge – os reis post-medievais foram perdendo esta idéia de organicidade, e assim eles intervinham nos municípios, intervinham nos grupos autônomos como Faculdades, como Universidades, como seminários, como dioceses, como tudo mais, mandando isto, mandando fazer aquilo de acordo com ordens que um Colbert qualquer sentado na mesa de trabalho em Versailles inventava que era melhor.

* Os reis acabaram por tirar o apoio natural que tinham nos nobres locais, substituindo-os pelas administrações burocráticas: começa o mundo pesado, técnico, das repartições públicas

Acabava sendo que daí as autoridades orgânicas, quer dizer, os nobres do lugar, nascidos com a história do lugar, que tinham ficado nobres porque eles foram pais e foram pequenos reis do lugar, e o foram porque mereceram ser, na hora da invasão eles foram os primeiros a resistir, foram os primeiros a organizar, foram os primeiros a não perder a cabeça, foram os primeiros a dar a coragem a todo o mundo, e foram os primeiros a morrer por todo o mundo, eles em que a família nobre era uma espécie de arqui-família que espontaneamente conglomerava em torno de si as outras famílias para formarem um todo que se chama uma região, que se chama uma pequena cidade, eles eram postos de lado.

E Luís XIV mandava funcionários precedidos de tocadores de cornetas, elegantíssimos, muito bem vestidos, etc., chegavam a cavalo: "Decrèt de sa majesté le roi!. O rei mandou fazer assim, mandou fazer de tal jeito, etc., etc. Para quem desobedecer à sa majesté le roi, prisão de tanto a tanto tempo. Sir tal que fica nomeado o dirigente civil desta localidade, assim faça obedecer a nossa vontade. Assinado: Luiz, Rei".

É até imponente, mas a comparação que eu dou com as muletas é bem esta. Os reis tiram o apoio natural deles, tiram as pernas deles que são os nobres locais e põem as administrações burocráticas.  E começa o mundo pesado, técnico, das repartições públicas que dão nas estatais, debaixo de cujo peso geme o Brasil, debaixo de cujo peso geme a Rússia, geme todo o mundo que caiu debaixo do peso da burocracia.

Aí está o pensamento resumido. Devemos ver no sábado, os exemplos que estão no livro. [Aplausos]

Salve Regina...


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