Plinio Corrêa de Oliveira

 

Aos que "têm fome e sede de Justiça",

de honestidade e de magnanimidade:

o exemplo do cavaleiro Bayard

 

 

 

 

 

 

 

Santo do Dia, 18 de maio de 1991, sábado

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A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.


 

* Respirando os ares puros do heroísmo

Meus caros, ao ouvir aqui a narração tão bem proclamada, e tão adequadamente acompanhada do ponto de vista musical, da morte de Bayard, eu me senti mais ou menos como um pássaro que estivesse preso no porão de uma torre e que, de repente, consegue escapar e voar mais alto.

Esse pássaro teria nostalgia de luz, teria nostalgia de ar, teria nostalgias de espaços, teria nostalgia de azul, teria nostalgias de voos enormes atravessando distâncias colossais num só bater de asas. Ele estava preso, tudo nele estava no escuro, estava na sombra, estava como quê manietado, ele estava no lugar que não lhe era próprio, que era o contrário dele, e, de repente, ele consegue voar, e ele vai para as alturas onde sua alma se sente em casa.

É assim que habituados aos horrores de nossos dias, a baixeza de nossos dias, a baixeza de nossos inimigos, considerando tudo isso, de repente, eu ver que um homem morre assim, que morre no esplendor do sacrifício, no esplendor da coragem, do amor à sua pátria, do amor ao seu rei, sobretudo do amor a Deus Nosso Senhor, e ver o encontro de Bayard com o marquês de Pescara, e ver um leão que saúda outra leão, uma águia que voa na presença da outra.

Uma grande alma que sentindo-se em contato com outra grande alma não tem o movimento vil da inveja, nem da rivalidade, mas tem aquela admiração que o igual tem pelo seu igual quando ambos são de alto nível, então é evidente que a minha alma respira e que eu me sinto libertado desse miserável fim de século XX, com os miseráveis homens que conduzem miseráveis atividades e miseráveis lutas, por miseráveis fins, por metas e por métodos miseráveis, eu me sinto libertado de tudo isso e eu me encontro, ainda que por instante, pela feeria da voz de filhos, projetado numa situação onde afinal de contas minha alma respira.

* Bayard, um homem contrário ao espírito de seu tempo, que prolongava a Idade Média em meio à Renascença: o maravilhoso do Céu contra o mero gozo da vida

Os senhores compreendem quanto agrado haveria de me causar de ver cantado, de ver recitado, de ver assistido, de ver admirado com séculos de distância por filhos meus, incontáveis, aquilo que quando eu mesmo tinha a ventura de ser filho, eu tinha sorrateado para ler bem.

Bayard – vamos falar um pouco dele – Bayard e o século XX, Bayard e os homens de hoje.

O que é que caracteriza bem a alma de Bayard, e qual era a situação de Bayard no seu tempo?

Resumindo o mais possível o tema, eu diria o seguinte: a Idade Média tinha terminado, a cavalaria estava nos seus últimos estertores, porque a mentalidade da Renascença, a mentalidade Humanista, a mentalidade que tinha pouca fé, deitava todo o seu empenho no gozo desta vida, e para o qual o maravilhoso do Céu se tinha fechado, tinha pouco ou nenhuma importância. Enquanto as delícias da terra se abriam, uma humanidade, portanto, que decaía porque o homem vale na medida em que é alto o ideal em que ele põe seus olhos. E quando o ideal é o Céu, quando o ideal era Nosso Senhor Jesus Cristo, quando o ideal era Maria Santíssima, era a Santa Igreja Católica, o homem tinha diante de si o mais alto do mais alto que ele possa cogitar. Tão alto que nenhum homem podia inventar aquilo.

Não há um literato que pudesse imaginar a vida de Cristo, não há um literato que pudesse imaginar as coisas que Ele disse. Imaginar os fatos que Ele fez, imaginar depois o triunfo dEle grandioso em Jerusalém, e dias depois a catástrofe do julgamento, da opção preferindo Barrabás a Nosso Senhor Jesus Cristo e de tudo o mais que veio depois. E depois, a glória da Ressurreição, e para além da glória da Ressurreição, a glória ainda maior da Ascensão, e à medida que Ele ia subindo, como de um cone a luz ia descendo sobre a Terra até abarcar, quando Ele estava bem no alto, abarcar a Terra inteira, e aos pés dEle, Nossa Senhora rezando, dividida entre a tristeza das saudades, a alegria da glória e da justiça que Deus fazia a Ele, e da esperança de encontrá-lO no céu, recolhida numa oração de uma sublimidade incomparável. E Ele olhando para Ela mais do que para ninguém, na aparência distanciando-se dEla de um modo irreparável, mas na realidade profunda ainda presente nEla, porque Nossa Senhora depois que comungou pela primeira vez na Ceia, nunca mais Nosso Senhor deixou de estar presente nEla. Ela estava em estado de comunhão permanente, e assim ficou até o momento de morrer.

Essas considerações, que levam filhos meus do século XX a exclamar “fenomenal!”, essas exclamações diziam pouco para os homens da Renascença. Eles julgavam que realizavam um grande progresso voltando a atenção deles para as artes dos gregos e dos romanos, eles caíam vertiginosamente do Coração de Cristo e do Coração de Maria, eles caiam para Apolo, para Vênus, a deusa do amor impuro, e para outros demônios. Diz bem São Paulo – eu acho que é ele que diz: [omnes dirigentium demonia sunt (?)]: “todos os deuses dos povos pagãos são demônios”. Caíam para esses demônios, e os horizontes de beleza iam se toldando, iam se fechando.

Pois bem, nessa época em que quase tudo se fechava assim, alguns eram homens de valor, eram homens que não cediam diante da pressão geral do neopaganismo, de gozo da vida, de relaxamento de costumes, de imoralidade, de pouca fé, e permaneciam mais ou menos como um cabo que no mar entra mar a dentro, fundo, fundo, fundo; dir-se-ia que esse cabo desafia o mar e na sua mais extrema ponta ainda tem o rochedo proclamando: "mar! tu não me intimidas, porque tu és água em quantidade, mas eu sou pedra"!

Assim era Bayard; homem de fé que prolongava em certo sentido a Idade Média em pleno período da Renascença. Homem que compreendia que a vida não era feita para gozar, que a vida não era feita para aproveitar, para sugar as vantagens que ela traz, mas era feita para ter os olhos em algo de muito mais alto, e por esse mais alto sacrificar a sua própria vida.

O homem quando nasce, recebe de Deus a vida, quando ele é concebido, ele recebe de Deus a vida, quando nasce, a sua gestação está completa, ele entra na terra levando como numa taça os anos de vida que ele tem que viver segundo o plano de Deus. E o bonito é imaginar que nesta hora o Anjo da guarda dado a cada homem oferece a Deus aquela taça: "Senhor, que esses anos de vida que este meu protegido tem que viver, sejam para Vós; ele ainda não tem a razão, mas ele tem em mim um protetor. Eu Vos ofereço a vida dele".

* O cavaleiro não quer saber como vai viver, vai gozar, ele quer saber como é que ele vai morrer, como é que ele vai lutar

Eram considerações deste gênero mais ou menos que povoavam as almas de um cavaleiro. Ele não queria saber como é que ele iria viver, iria gozar; ele queria saber como é que ele ia morrer, como é que ele ia lutar. A grande vida para ele era a vida que era coroada por uma grande morte, era uma vida de grande virtude, de grande sacrifício que chegasse ao último holocausto. Aí ele tinha vivido, ele era um cavaleiro.

Ele, Bayard, representava, portanto, uma montanha de fé, uma montanha de medievalidade que entrava pelas águas adentro da primeira Revolução, que era do Protestantismo e do Renascimento, e ele era um homem de pedra que enfrentava tudo isso, que lutou com um modo tão perfeito que os próprios contemporâneos o definiram:

"O cavaleiro...": sumo elogio que se pode fazer de um homem, o guerreiro santo, cuja mais alta atuação se dá na guerra santa, sacrificando a sua vida, expondo sua vida em louvor de Deus e de Nossa Senhora, e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana, e da Civilização Cristã, ele é, portanto, o cavaleiro. "O cavaleiro sans peur"; não tem medo. "Sans reproche", ao qual não há censura para fazer.

* Coragem tem o homem sem mácula ("sans reproche")

No dia de sua morte, Bayard lutou, e lutou numa luta contra os espanhóis; triste luta daquela época infeliz em que em vez de espanhóis e franceses se unirem com os outros povos católicos para estraçalharem o protestantismo, para acabarem com a Renascença, pelo contrário, os católicos franceses e os católicos espanhóis, o rei da França e o rei da Espanha mais preocupados em ganhar terrenos, em ganharem importância, em tirar o que era do outro para pôr no próprio bolso, do que em dar tudo a Deus, nesta guerra, portanto, que era uma guerra que de um lado ou doutro tinha “reproche”, e quando começa o “reproche”, quando o homem começa a ficar censurável, ele vai perdendo a coragem. Não tem por onde escapar! O homem que não tem mácula na alma, este homem tem coragem.

* O mais vil dos ladrões: aquele que busca as admirações e os elogios que não merece

A partir do momento em que a mácula aparece, todo o tecido de sua alma amolece, e ele vai ficando um poltrão. Ele começa sendo um fanfarrão e não mais um herói.

O herói não se gaba do que faz; faz aquilo de que ele depois poderia se gabar, mas não gaba porque é humilde. Isto é o verdadeiro herói. O fanfarrão é o contrário: gaba-se do que não faz, é orgulhoso e mentiroso, é impostor, ele se jacta daquilo que ele não merece, e para ele, ele não quer merecer os elogios que ele recebe, ele quer receber os elogios ainda que não os mereça.

É um ladrão de admirações! é um ladrão de solidariedades! é um ladrão de amizades!... um modo de roubar mais vil que ser um ladrão que tira do bolso do outro um dinheiro. Porque uma coisa é tirar do bolso do outro um dinheiro. É muito censurável, mas outra coisa é eu saber que eu não mereço a confiança e estima de alguém, mas eu sei uns jogos por onde eu posso cativar a atenção e a admiração daquele coitado. Roubo para fins meus, para fazer dele um seguidor meu, para me glorificar e mais nada. Isto é uma infâmia multiplicada pela infâmia.

* A sublime morte de um grande cavaleiro

Bayard, não! Ele era aclamado como “le chevalier sans peur et sans reproche” por todo o mundo. E os senhores ouviram aqui, contado tão bem, ele é atingindo mortalmente, o sangue que ele verte começa a cair, ele sente que daqui a pouco ele vai morrer; ele é conduzido – vejam a beleza da coisa, e foi assim, não é que o literato tenha inventado, foi assim – foi conduzido para dentro da sombra de um carvalho.

O carvalho é uma madeira nobre, é uma madeira bonita, é uma madeira resistente, a árvore carvalho é uma árvore de contornos bonitos, em um certo sentido da palavra, é o protótipo da árvore que merece servir de tenda para um herói que vai morrer. Bayard é conduzido para lá. Ele compreende que a sua vida vai chegando ao fim, e ele então vê aqueles cavaleiros em torno dele, que estão acompanhando com o coração lanceado de dor o herói que vai morrer, a luz que vai se apagar, as trevas da Renascença vão ficar mais densas depois que essa luz sair de lá...!

Os senhores podem imaginar o que é que é a depressão de um soldado, de um oficial jovem, de alma nobre, que vê que vai morrer aquele homem que era o sol de seu exército, e que depois tudo é escuridão, estão reunidos em torno dele, contemplam, quiçá rezam, ele vai agonizando, ele sente que a morte chega, ele oscula a espada, ele recomenda ao seus: "afastai-vos para continuar a luta, não adianta estarem vendo minha morte, deixem-me morrer sozinho, continuem no campo da honra que é o campo de batalha".

É o último lance que ele faz em relação aos homens, cumprindo o seu dever: "ide, deixai-me só, eu à vossa frente combati e venci toda espécie de vitórias, agora não estarei à vossa frente, estarei só, eu vos ofereço a luta pelo nosso rei, eu vou morrer agora sozinho, fica comigo apenas o meu pajem".

O pajem é uma espécie de escudeiro que servia meio de filho, meio de secretário do general. E que combatia ao lado dele na batalha. Cuidava de suas armas, seu cavalo etc., etc., manda ficar só com o pajem e...

A Idade Média, pelo sopro do Divino Espírito Santo, tinha preparado esta solução lindíssima: quando uma alma ia se apresentar diante de Deus, e que queria, naturalmente, se confessar, sentia que tinha faltas de que era preciso arrepender-se; e a verdade é, diz a Escritura, que “o justo peca sete vezes por dia”. Podem ser pecados do tamanho de um grão de poeira, mas eles existem, e convém confessá-los ainda que não se tenha perdido o estado de graça, é bom submeter ao poder das chaves a contrição da gente e obter uma absolvição sacramental.

Quando não tinha padre a Idade Média tinha conjeturado esta solução linda: um cavaleiro chamava outro cavaleiro e dizia: "eu vou lhe confessar os meus pecados". Naturalmente o outro cavaleiro não podia dar a absolvição, mas o pecador fazia sua confissão humilde, com isso humilhava sua cabeça e arrependia-se, dava uma manifestação de arrependimento. E o que ouvia essa confissão, naturalmente, seria um infame se contasse o que tinha ouvido em circunstâncias tão sagradas. E rezava com o agonizante, acompanhando até à hora da morte.

Os senhores imaginem a impressão desses dois, sob aquele carvalho que deveria ter sido conservado até hoje, e se estivesse conservado, eu indo à Europa, certamente teria ido peregrinar lá. Os senhores imaginem à sombra daquele carvalho, começa se ouvir um tropel, e cantos de guerra, eles percebem: é o inimigo que chega. Bayard não vai morrer livre, ele vai morrer prisioneiro, ele vai morrer sob o pé orgulhoso do adversário heroico que o tinha prostrado por terra.

Mas então Deus sujeitaria a essa última humilhação o “chevalier sans peur et sans reproche”? Deus pode tudo, e pode, para fazer um homem sofrer para o bem da Igreja dEle, pode querer isto dele. Mas às vezes a misericórdia de Deus não nos pede o último sacrifício, e na última hora nos dá o último carinho. Foi o que Deus fez com Bayard que agonizava.

* A luta de um cavaleiro contra outro cavaleiro, que maravilha! Mais parece um torneio entre Anjos do que qualquer outra coisa

Ou seja, o inimigo se aproxima, eles percebem que a atitude do inimigo é inteiramente diversa, que o inimigo admirando o grande Bayard “sans peur et sans reproche”, e percebendo pelo que se passava que ele estava agonizante, vinha tendo à sua testa o general vencedor, que vinha prestar sua homenagem ao vencido. Vinha dizer ao vencido toda sua admiração, era o Marquês de Cardenas, que vinha passo a passo, chapéu baixo, atitude reverente, se apresentar a Bayard, dizer-lhe toda sua admiração, todo seu respeito, e pedir-lhe como favor, que ele desse - ele vencido - desse a ele vencedor a honra de ir para o castelo do vencedor, a honra de aceitar aquela hospedagem, a honra de se deixar tratar pelos médicos dele, que pela admiração que ele tinha a Bayard, e para manter um homem tão admirável em vida para a glória de Deus, e ornato de gênero humano, que ele queria fazer a Bayard, algo que pareceria uma contradição: manter vivo pela ação dos seus médicos, remédios, etc., o herói temível que numa outra luta poderia derrotá-lo a ele.

Com a mentalidade comercial, vil de hoje, dir-se-ia que o marquês de Cardenas devia dizer a ele: "agora, tu não serás mais importuno ao meu rei, morra e desapareça para que as tropas espanholas possam transpor os Pirineus – estavam na Itália – ou possam transpor os Alpes e invadir a França. Morra, e assista, antes de morrer, os nossos exércitos vitoriosos que vão para lá, na direção que tu impedias, e nós vamos te esmagar assim!"

Nada! A cavalaria não quer essas brutalidades! A cavalaria sabe respeitar, a cavalaria sabe admirar, a cavalaria sabe querer bem. E então quis tomar o terrível inimigo e curá-lo para de lado a lado travarem de futuro, [um] em frente ao outro, outras terríveis batalhas.

Eu creio que os senhores notam bem a elevação de alma que vai nisso, e que os senhores compreendem como Bayard deveria ficar comovido vendo esse grande inimigo, e pensar: "que coisa magnífica ter lutado contra um homem como o marquês de Cardenas!" A luta de um cavaleiro contra outro cavaleiro, mas que maravilha! Parece mais um torneio entre Anjos do que qualquer outra coisa.

* Os ecos admiráveis do passado que nasceram do seio da Santa Igreja não se apagarão para sempre: renasce a cavalaria no século XX

Ó cavalaria! Ó ecos admiráveis de uma história que está se apagando! Está se apagando mas as coisas admiráveis do passado que nasceram do seio da Santa Igreja não se apagarão para sempre, elas renascerão! E assim é que depois de todo esse lumen ter se apagado, séculos depois, num continente que naquele tempo ainda estava entregue aos Guaianases, tupiniquins e quantos outros índios haja, num lugar onde talvez acampassem antigamente, ou naquele momento tivesse acampada uma feroz tribo de índios – nós não sabemos o que é que havia aqui naquele tempo... – neste lugar haveria de haver toda uma série de gerações novas que haveriam de aclamar uma glória que todo o mundo pensava que estava morrendo.

Mais ainda! mais ainda! quem sabe se na hora da morte um Anjo sussurrou no ouvido de Bayard: "nada disso morrerá. Tudo isso ressuscitará, e mais ainda, a admiração por tudo isso que está morrendo vai reconquistar as terras que ela está perdendo, a partir de terras que ela está conquistando.... [vira a fita]

...não, é da América, é da Sul-América, é de um lugar longínquo que está no momento entregue às onças, às feras, e à natureza ecológica abandonada a si mesma, é de lá que virá o sopro da admiração cavalheiresca... De lá se irradiarão as capas rubras, de lá saltará o leão dourado; ele voará sobre os mares, ele voará sobre os desertos e as matas, ele voará sobre as grandes cidades contemporâneas mais perigosas e mais inimigas do que os desertos, e os mares, e os ventos, e todas as coisas que agridem aquele que viaja. Esses heróis, filhos de Maria, do século XX, esses que serão chamados para ser cavaleiros “sans peur et sans reproche” nas lutas admiráveis e terríveis da “Bagarre”, esses virão de lá e vão ser eles mesmos esporões do passado dentro do mar sujo do presente.

Eles também dirão aos revolucionários de seu tempo:

"Vós sois a multidão, vós sois o aguaceiro do mar, mas nós somos a pedra! Somos poucos, mas somos altivos! Nossos olhos se voltam para o Céu, nossos olhos estão firmes para enfrentar-vos a vós, e olham humildes para olhar para a Virgem Santíssima; nós cortaremos as vossas águas, nós zombaremos das vossas investidas, e quando vós tiverdes esbravejado noites inteiras contra nós, quando chegar a aurora de cada noite, nós estaremos ali e diremos: do que adiantou?! Nós somos a pedra!"

* Nunca ninguém em nenhum lugar foi herói como foram os heróis verdadeiramente católicos

O Marquês de Cardenas tendo que se resignar de não levar Bayard para seu castelo... Notem que ele poderia levá-lo preso, e impor-lhe um tratamento, mas até lá chegava o respeito! O marquês de Cardenas, ele mesmo, levantou Bayard com o auxílio de outros, deitou-o num leito de emergência que ele conseguiu ali no momento, mas ele queria fazer mais alguma coisa; a sua alma de herói queria prestar uma homenagem desinteressada a esse grande herói.

É que ambos amavam o heroísmo, esta virtude especificamente cristã, porque nunca ninguém em nenhum lugar foi herói como foram os heróis verdadeiramente católicos. E Bayard percebe nas sombras da agonia, nesse lusco-fusco em que a vida se reacende um pouco, ele olha um pouco e se apaga, ele sente o calafrio da morte que o vai agarrando, ele percebe um exército que marcha e nota que é o exército espanhol, que todos os batalhões que passam inclinam os estandartes diante dele, e continuam... é o exército vencedor que exclama: "ó vencido!"

* Cavaleiros do século XX, guerreiros contra inimigos indignos, cuja morte, por isso, pode ser superior à de Bayard, porque mais parecida com a de Nosso Senhor Jesus Cristo

A esse respeito nós temos um comentário a fazer. E o comentário é o seguinte: nós se morrermos durante esta luta que não está sendo uma luta cruenta, mas que dói muito mais, porque é a luta da alma e aquilo que dói na alma, dói muito mais do que quando dói no corpo, se nós morrermos durante essa luta, o adversário não dirá: "ó herói!"

Ele não nos oferecerá remédios, ele nos oferecerá venenos, ele dará um pontapé em nosso corpo pronto a expirar; ele nos caluniará junto àqueles que nos estão vendo, e ele mandará que abram para nós uma cova, mas uma cova num lugar sujo aonde nossos restos desapareçam, porque este é o inimigo que temos diante de nós.

O que é que eles fazem contra nós senão nos caluniar? Quando é que os senhores viram que eles dessem contra nós um argumento que nós não pudéssemos responder na hora, brilhante e frio como o ferro de uma lança? Quando é que eles provaram contra nós alguma coisa que nós tivéssemos que nos envergonhar? Não, é o silêncio e a calúnia murmurada no ouvido do outro, porque é uma calúnia que tem medo de se torcer como um verme à luz do sol. É a calúnia baixa, calúnia indecente, é isto que propriamente é a arma do nosso inimigo contra nós.

Mas se isto suceder, a nossa morte ainda será mais gloriosa. Porque houve Alguém infinitamente mais “sans peur”, a respeito do Qual nem se pode pensar em ”reproche”, que morreu atacado e agredido pelo mais baixo do furor humano, até do furor de satanás: Nosso Senhor Jesus Cristo do alto de Sua Cruz! Ele morreu sob a investida das calúnias, sob o ódio da irreligião, sob o ódio da impiedade, com a preocupação de estraçalhá-lO e fazê-lO sofrer o mais possível.

Em nenhum momento Ele deixou de cumprir a missão dEle. E para provar que Ele desafiava os inimigos até o fim, Ele, o Bom Pastor que pegava a ovelha e levava consigo, lhe perdoava os pecados, ele “sans peur et sans reproche”, disse do alto da Cruz para o bom ladrão, perdoou-lhe os pecados e depois disse: "tu hoje estarás comigo no Paraíso". [Tu hodie mecum eris in paradisum]: "tu hoje estarás comigo no Paraíso".

Mas a dor foi subindo, subindo, e Ele que sabia que daí a pouco Ele estaria no Paraíso, a tal ponto que Ele prometeu ao Bom Ladrão com Ele, quer dizer, Ele ia antes, ia recebê-lo no Paraíso, Ele, entretanto, teve aquele gemido: Elli, Elli lama sabactani - "Meu Deus, meu Deus, por que Me abandonastes?" E depois, inclinando a cabeça, Ele entregou Seu espírito a Deus.

Todo heroísmo humano, todos os Bayards somados da História não são isso. Mas nem de longe são isso! E se, portanto, diante de nossos cadáveres nenhum exército de inimigos cavalheiresco desfilar, se nós não conhecermos a nossa própria vitória, mas nós morrermos esmagados pelo ódio, pela incompreensão, pela calúnia, nós poderemos dizer: "nós vencemos Bayard, porque nossa morte é mais parecida com a de Jesus Cristo do que a dele".

* Porque confiaram e amaram, venceram!

Mas por que negá-lo? Minha esperança vai mais alta. Eu não quero falar aqui a respeito do que acontecerá individualmente a cada um de nós, eu ignoro, ignoro inclusive o que acontecerá a mim, mas eu tenho a firme esperança de que, grosso modo falando, todos nós conheceremos o Reino de Maria. Todos nós assistiremos o desfile glorioso entre todos, como nunca houve na História, o desfile dos que foram fiéis, que passaram por tudo, que pareceram ser desmentidos em suas esperanças pelas provações mais tremendas, mas que confiaram, confiaram, confiaram, e porque confiaram e amaram, venceram! Confiaram em Nossa Senhora contra toda confiança, e quando tudo parecia perdido, eles disseram: "tudo está ganho!"

* Os grandes cavaleiros do passado olhariam com santa inveja a cavalaria que viria

Se for permitido ao homem fazer conjeturas ousadas, seria o caso de dizer: "nesse desfile a Virgem Santíssima estaria presente"...

E se Bayard agonizante tivesse podido prever que haveria uma cavalaria, uma cavalaria sem cavalos, mas com quantos Anjos e com quanta fé, e com quanta união com Nossa Senhora, que seria própria e dentro do cumprimento mais exato dos mandamentos da lei de Deus, entretanto, sustentar esta luta sem precedente no mundo, Bayard talvez dissesse ao morrer: "meu Deus, eu Vos agradeço de ter sido o cavaleiro sans peur et sans reproche. Mas, mas, como eu olho com santa inveja aqueles que um dia virão!"

* Peçamos a Nossa Senhora a graça de sermos cavaleiros arqui “sans peur” e arqui “sans reproche”, para estarmos a altura de lutar por Ela

Rezemos a Nossa Senhora, a Virgem cuja mediação é onipotente, de tal maneira que quando Ela pede, Ela sozinha pedindo, Ela recebe; se todos os Anjos e santos pedirem sem Ela, não recebem; se todos Anjos e santos pedirem com Ela, recebem. Peçamos a Nossa Senhora que Ela nos dê esta graça de estarmos à altura da grande missão, da terrível missão, da admirável missão de ser os cavaleiros arqui “sans peur”, arqui “sans reproche”, os soldados de Maria nos dias que vão vir.

Ave Maria...


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