Plinio Corrêa de Oliveira

 

Eu quero mais as consolações de Deus ou

o Deus das consolações?

A parábola do rei e seu filho adotivo

 

 

 

 

 

Auditório São Miguel, 17 de agosto de 1985, sábado, Santo do Dia

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A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.


 

Nós temos a honra de estar assistindo aqui a nossa reunião um sacerdote, eminentemente ortodoxo, muito amigo nosso, que retificará alguma coisa que possa não estar preciso do que vos vou dizer a respeito de um tema que colocastes na linha da resposta, e a respeito do qual eu não tive tempo de refletir de um modo inteiramente acabado. Mas a palavra dele, estudos dele, a ciência dele, estarão em condições de retificar o que possa haver na minha exposição de eventualmente falho, contra o meu desejo, contra a minha vontade.

A preparação foi longamente feita, mas essa é a preparação da pergunta, não é a preparação da resposta. E a resposta precisa ter – e infelizmente já é muito tarde — também a sua preparação. Nós vamos imaginar um caso concreto.

Os srs. imaginem um rei que vai passando pela sua cidade. Esse rei, infelizmente, não tem filhos. Toda sua família está extinta, ele não tem mais quem o continue.

Por uma dessas coincidências que existem na natureza há, entretanto, um menino que ele não conhece e que é muito parecido com a família dele. Não tem o menor parentesco, mas é parecido. Tem alguma coisa de extraordinário, pouco comum. Ele passa por uma esquina, há um engarrafamento de trânsito, o carro dele é obrigado a parar, ele presta atenção maquinalmente nas pessoas que estão por ali, olha aquele menino e diz: curioso, esse menino parece da casa real. “Menino, vem cá”.

O menino não esperava por essa. Aproxima-se maravilhado e ao mesmo tempo, tímido. Tira o seu gorrinho: “majestade, no que posso servir-vos?” O rei diz: senta aqui ao meu lado que eu quero conversar. Quem é seu pai, quem é sua mãe? Quem é você? O que você faz? Que estudos tem? etc., etc.

Durante esse tempo o trânsito não desengarrafa, mas o menino não está prestando atenção no trânsito. Ele só está prestando atenção no rei.  E o rei também não está prestando atenção no trânsito, só está prestando atenção no menino.

Ele vê que o menino tem muita promessa, promete muito, dá muito futuro. E que seria interessante que ele adotasse aquele menino como seu filho.

Ele diz ao menino: esteja a tantas horas no palácio, e leve seus pais, eu quero conversar com os três.

Horas depois os três vão ao palácio, o rei os recebe com indulgência, é gente modesta. Gente que anda no meio daquilo tudo achando o chão tão bonito que até tem medo de pisar. Fazendo comentários, porque há várias salas para atravessar. Passam por cima de um tapete persa precioso, e diz o marido para a mulher: “está vendo este tapete? É tão bonito que até parece com o que tem na casa do sub-prefeito do nosso distrito. Que tapete maravilhoso”.

De fato, o tapetinho do sub-prefeito do distrito é um tapete comprado num pegue-pague qualquer. O tapete [do rei] foi comprado numa casa de antiguidades e pertenceu ao Xá da Pérsia...

Afinal chegam diante do rei. O rei o chama para conversa e diz: “bem, para esse menino eu tenho tal desígnio. Se os senhores me derem o menino, eu o adoto como filho. Os srs. terão a honra que nunca imaginaram, os srs. um dia serão o pai e a mãe do rei. Eu morro, ele sobe. Os pais são os senhores. Os srs. estão de acordo com isso? Me dêem o menino e eu o educo e eu exerço o pátrio poder sobre ele. Essa é a condição”.

Os pais, maravilhados, com prole numerosa, já não sabiam o que fazer com tantos meninos dentro de casa. Colocar um... e tão bem instalado, que alto negócio. Depois, dali viria torrentes de dinheiro para educar bem todos os outros, para fazer a carreira de todos. Depois, a “megalada” [manifestação de orgulho; neologismo proveniente da palavra “mega”, grande; n.d.c.] no bairro. Aquela noite mesmo, quando chegassem em casa, quando perguntassem pelo menino, “ah, agora está com o rei, agora é filho do rei”. – Como, filho do rei? – contam toda a história. Então uma megalada no bairro, estão todos contentíssimos.

Eles acertam na mesma hora. E o rei ao dormir, dá ordem aos seus mordomos: “levem esse menino para o quarto de dormir do meu filho verdadeiro, que pereceu quando tinha a idade dele. Está tudo preparado, fechado, para receber um menino nas mesmas condições. Ponham-no na cama, vistam-no com aquelas roupas, dêem-lhe aquelas delícias, sirvam-no como serviam o meu filho. Eu quero que ele seja beneficiado com toda a largueza da munificência real”.

O menino vai se educando, vai ficando meninote, vai ficando mais esporudo, etc., etc. e dá-se bem com o rei.

A coisa vai correndo bem, mas na cabeça do rei nasce uma pergunta — os srs. me dirão se acham essa pergunta explicável, ou não: “esse menino me quererá verdadeiramente bem? Ele me será grato por tudo quando recebe? Ele será digno, por aí, de dirigir um dia o meu reino? Ou é um ingratarrão que está aí, e ele me agrada porque é interesse dele no momento, mas no fundo ele não me tem maior amizade?

Eu vou fazer uma prova. Eu quero provar esse menino. E vou submetê-lo a uma prova dura. Eu tenho dado a ele tanta coisa boa, mas eu vou submetê-lo a uma prova dura. Porque lhe dei muita coisa boa eu tenho o direito de submetê-lo a uma prova dura. Porque quero dar-lhe coisas melhores ainda, quero submetê-lo a uma prova dura. A prova dura é o que dá sentido àquilo que está sendo feito por ele. Se esse menino não for sujeito a uma prova, a minha generosidade é tontice. Se esse menino for sujeito a uma prova e corresponder bem, então a minha generosidade é munificência”.

- Podem procurar no dicionário. Munificência... uma palavra um pouco diferente, magnificência, é a capacidade de fazer coisas caras, ricas, grandes.

“Eu farei por esse menino, coisas magníficas, coisas muníficas, coisas miríficas, mas eu darei a esse menino muita coisa. Mas que prova é preciso fazer?”

Ele chama o menino e lhe diz: “eu queria lhe dizer que nossa situação parece maravilhosa, e você tem diante de si a certeza de herdar um trono, herdar uma situação portanto magnífica. Mas você precisa se preparar porque a vida é feita de surpresas e a história está cheia de casos de reis que foram derrubados inesperadamente do trono. Aqui está uma enciclopédia sobre reis destronados. E você vai estudar essa enciclopédia para conhecer o papel da traição na história da queda dos reis. E para você apreender como a condição de rei parece estável mas de fato é instável. Parece firme e de fato é mutável. É preciso que você tome nota bem disso. Estude que eu vou lhe fazer um exame. Depois ainda terei outra coisa para lhe comunicar. Mas veja a vida em cor séria, e veja bem todo o esforço que é preciso ter para gente se manter como rei. Se for mole, cai e perde o poder.

“Eu estou aqui este tempo todo, essa gente me obedece, é verdade. Mas que olho é preciso ter tido para chegar a esse ponto. As coisas não são fáceis. Seu pai leva uma vida muito mais sossegada. É uma vida pobre, ele tem uma lavanderia pequena, mas ele não tem preocupação, ele leva uma vida desocupada.

“Se você quiser, se o “métier”, a profissão de rei lhe parecer muito dura, eu lhe dou o dinheiro para você ter uma lavanderia dez vezes maior do que a de seu pai, mas você não será rei. Você leva a vida sossegada de um qualquer. Você não terá preocupação — não terá glória — nem sequer terá as honras da condição régia, você se enfurna no anonimato, mas goza das delícias do anonimato. O homem unânime... que homem feliz, a quem ninguém ama, mas a quem ninguém odeia, que tem algum dinheiro para viver e que leva tranqüilo sua vida.

“Você já pensou nas vantagens do anonimato? Passeie um pouco pela cidade, olhe aquele, aquela, aquela outra, aquele outro... olhe para os meninos de sua idade, que são anônimos, que vão passando em automoveizinhos etc., e que vivem uma vida gostosa. Ninguém sabe quem eles são, são meninos riquinhos, mas ninguém se incomoda com eles, gozam a vida só. Você, não. Você quando sai de automóvel, você já aprendeu como é que tem que se postar, como tem de olhar, como tem de fazer. Já saiu máfia no jornal contra você porque você estava brincando com os dedos enquanto andava de automóvel. Assim não faz um príncipe. Um príncipe não faz aquilo, não faz aquilo outro. Você já notou que vida dura você vai ter? Meça o peso do fardo que vai nas suas costas. Você vai carregar ouro: saiba. Carregar ouro muitas vezes é carregar um rochedo nas costas a vida inteira. É meu caso”.

O menino pensa um pouco, diz obrigado, eu vou ler o livro. Aqui está o livro. [O rei] dá um prazo.

Terminado o prazo, o rei pergunta: - você leu?

Diz o menino: li, sim.

- E qual é a conclusão que você tirou disso?

A coisa é dura, não pensei que fosse dura assim. Eu conhecia só um lado da coisa. Mas eu acho que as vantagens são tantas que vale a pena carregar o fardo. Eu, ainda, no total, prefiro herdar o trono. Eu quero ser rei.

O rei diz a ele: “bem, não é bem a resposta que eu esperava de você. Vamos ver: eu lhe dou um prazo “x” para ver se você advinha qual é a resposta. Se você adivinhar, você merece reinar; se não adivinhar, perde seu direito, porque então tudo o que eu fiz por você não valeu nada”.

O menino, que acaba de declarar que quer ser rei, vê de repente tudo aquilo lhe escapar das mãos. Como vai inventar a resposta? Como poderá saber o que dizer?

Proibido de consultar os pais, porque de repente o pai ou mãe inventa uma resposta, vai perguntar para uma pessoa que sabe viver e sopra a resposta.

O rei diz: “durante esses dias você não fala com ninguém, não sai do palácio. Fabrique a resposta. Vamos ver que espécie de sentimentos você tem”.

O rei estaria agindo bem?

Era o normal, não é isso?

Agora, o menino saberia claramente o que ele devia responder? Ponha-se cada um na posição do menino. O que responderia para o rei? – eu não vou ter a indiscrição de perguntar. É uma pergunta dura.

Mas eu pergunto o seguinte: — não vou perguntar o que responderiam, mas os que sabem o que responderiam, levantam o braço. Um. Um e meio. Dois ... dez, onze. Aqui no fundo, como é? Os enjolríssimos... 12 está bom.

O rei evidentemente qual seria a resposta. Qual é a resposta que o rei teria o direito de esperar? A resposta perfeita seria a seguinte: “meu senhor e meu pai, não se trata de saber o que eu ache agradável, trata-se de saber de que forma eu posso retribuir tudo o que vós me fizestes. Trata-se de saber se eu optando pela condição de rei vos ajudarei na vossa velhice; trata-se de saber se eu optando pela condição de rei eu terei bastante amor à gloria, à elevação dos princípios, à altivez, à civilização cristã, a Nosso Senhor Jesus Cristo e a Nossa Senhora de maneira que eu faça do meu metier de rei um serviço de Deus.

“Eu vejo tantos santos entre vossos antepassados, a vossa capela é consagrada a São Luis, aqui nesta sala vós tendes uma imagem de Santo Henrique, imperador do Sacro Império e vosso antepassado também, como São Luis. Mais adiante, no vosso escritório, há uma armadura magnífica que pertenceu a São Fernando de Castela, vosso antepassado também. Tudo isto se extinguiu em vós porque não houve descendência. Cabe-me a mim a glória de restaurar tudo isto, continuando o fio que se rompeu.

“Meu pai, meu senhor, não se trata de ter uma vida gostosa; trata-se de saber se eu estarei à altura dessa missão. Ensinai-me a ser cada vez mais piedoso, ensinai-me a ser cada vez mais dedicado a vós que fostes a mão de Deus para mim.

“A felicidade, eu a quero, certamente para o momento em que eu expirar e que eu possa dizer a Deus quando comparecer na presença dEle: Senhor, Vós me destes o ser, Vós me destes a realeza, aqui estão a minha vida e a realeza que eu exerci, tudo foi para a Vossa glória. Vós me destes um pai que foi o rei, tudo eu fiz por ele para fazer por Vós. Não temo encontrá-lo na vossa corte onde ele me precedeu porque eu sei que o olhar amoroso dele pousará sobre mim e dirá: meu filho, agora mais meu filho do que nunca, senta-se à minha direita, meu filho. Vamos contemplar juntos a Deus Nosso Senhor, o Senhor dos senhores, o Rei dos reis, Dominus dominantium, que domina todos aqueles que exercem domínio.

“Isto será o que convirá fazer. Eu posso sofrer muito, eu posso ser mal compreendido, eu posso ser perseguido, eu posso ser destronado, eu posso ser glorificado, eu posso ficar célebre, pouco importa: o caminho é se eu segui a via do dever, da gratidão a vós e do serviço de Deus”.

No momento em que o menino diga isso, o rei dirá: a minha dinastia renasceu.

Não parece aos srs.  que de todo em todo este rei agiu bem?

Imaginem os srs.  que em determinado momento o rei sujeita a outra prova este filho. O rei começa a fingir que já não tem a mesma amizade a ele, já não o compreende bem, olha-o com certa indiferença, até com certa distância. Dá-lhe audiências curtas. Começa a ter, assim, uma atitude de quem está zupando a ele, atento a outras coisas. Tem umas conversas na presença dele onde começa a falar do caso de reis viúvos que não tinham filhos e se casaram e tiveram de outro casamento outra prole. Começa a se lamentar: quem sabe se eu me caso e me nascem filhos naturais.

[Isso] diante daquele que ele adotou.

O que ele adotou começa a se sentir rejeitado. Pensa o seguinte: eu recebi tanto que ainda que ele me tire o que ele me deu eu o servirei a vida inteira.

Qual das duas provas é mais cruel? É a segunda?

Depois disso, numa noite o rei manda chamar o rapaz: “vem cá, eu estou precisando de uma missão confidencial, você vai à Rússia e vai levar a um preso na Lubianka tal mensagem minha, e para isso você tem que se fazer prender, você tem que chegar na Rússia e dizer que é meu filho, fazer-se prender para entrar na Lubianka, e lá você entrega meu recado”.

Ele tem uma surpresa, não uma vacilação e diz: meu senhor e meu pai, se me permitirdes de vos tratar ainda desta maneira, minha vida é vossa.

O rei para ele: “e se lá tu ouvires falar que eu me casei e tive um filho, reza por mim e pelo meu filho, o rei será ele”.

O filho adotivo: meu pai, certamente farei isto com todo empenho. A que horas devo partir, com quem devo falar? Dai-me as vossas ordens que neste momento eu vou.

São duas horas da manhã. [O rei diz]: “tu tens uma hora ou uma hora e meia para estar pronto. Dentro de uma hora e meia vá embora. Nós já estamos despedidos. Eu já tenho tratado muito com você, já conheço a você, me diga rapidamente até logo e vá embora, nós já estamos despedidos”.

O rapaz se inclina e sai.

Na hora certa ele se apresenta disfarçado diante da guarda do palácio, vai embora com as instruções que o rei deu, a guarda do palácio não deve saber que ele saiu. Ele se apresenta, a guarda do palácio barra as alabardas e diz: proibido sair. A ordem do rei é de voltar para o quarto dele.

Ele volta e o rei o recebe com todo agrado. Está assegurada a sucessão do trono nesse reino mítico e maravilhoso.

* * *

A vocação de quem é chamado para a TFP tem muito de parecido com isso. Não há um rei, mas há alguém em que o brilho do rei brilha mais — o rei faz brilhar o seu brilho mais com quem o substitui, que é Nossa Senhora, do que se estivesse presente Ele mesmo. É nossa Rainha que preside a TFP.

Nossa Rainha o chama em que condições? Cada um dos srs.  foi chamado em que condições? Qual foi a vida de cada um dos srs.  antes de entrar na TFP? Eu queria saber.

Meus caros, num salão, no “Salão Umberto”, com os aplausos encantados do auditório, eu os chamei de meus filhos. Meus filhos... toda a conduta de Deus conosco é assim: a cada um dos srs. — a mim também — Ele foi chamar em condições, em circunstâncias etc., algumas vezes ... com todo afeto; outras vezes parecendo não ter sido preparadas nenhuma... uma surpresa. “Como é que eu fui, de repente, pego pela graça e tomei esse caminho?” Não se sabe. Que circunstâncias variadas...

E se nós somos de um ambiente que preparou a nossa vocação quanta graça de Deus, que antes mesmo de nós nascermos, estava preparando a eclosão de nossa vocação. Se, pelo contrário, nós viemos de um ambiente inesperado, quanta graça de Deus, que passou por um lugar onde Ele é odiado, parou e disse: aqui escolherei um filho, um guerreiro, um príncipe.

Os srs.  não sabiam. Mas começam uns certos movimentos interiores na alma dos srs. Eu descrevi esses movimentos na reunião de hoje à tarde — um bom número dos srs.  estava presente, não é necessário que eu entre em muitos pormenores. Mas é um senso moral mais vivo que lhes faz começar a estranhar o modo de proceder da vizinha em frente, o modo de proceder do colega no colégio, o modo de proceder de um ator que os srs.  veem representar na televisão, e isso e aquilo.

Começam a fazer com que os srs.  vão estranhando o mundo moderno. Os srs.  não percebem, mas é a voz da graça que está falando no fundo da alma dos srs. É a graça, participação criada da vida incriada de Deus que lateja dentro dos srs.  e diz: olhem que péssimo; olhem o contrário que bonito, que linda tal coisa, que linda tal outra coisa, como é bela tal coisa, vejam tal tradição, vejam tal passado, vejam esta ogiva, vejam aquela carruagem, ouçam aquela música... ó que tempos precederam a vocês; ó que tempos ameaçam, porque isto está mal mas ainda será pior, ó que situação. Meu filho, meu filho, não queres alterar isto? Meu filho, não queres lutar?

E começa a aparecer na nossa alma aquela oposição.

Como eu me lembro desses movimentos da graça na minha alma. Eu não sabia que eram movimentos da graça, pensavam que eram pensamentos assim... mas eu hoje sei que são movimentos da graça que me tiraram das garras da Revolução e me convidaram para o serviço da Cristandade e da Santa Igreja Católica. E isto só a graça faz. Levar alguém por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo e a Nossa Senhora a um bom propósito, só a graça faz. Era a graça que me fazia pensar nisto, naquilo, naquilo outro e que ia preparando a minha alma para um dia pensar o livro Revolução e Contra-Revolução [RCR]. E anos depois escrever a RCR. E cuidar de fundar uma associação para a qual inúmeras almas chamadas pelo mesmo fogo RCR haveriam de caminhar.

E assim, cada um dos srs.  individualmente, foi chamado. No seu próprio país, nas suas próprias condições de vida. Às vezes, — eu não quero ser indiscreto — mas no fundo de uma queda moral. Caíram e em determinado momento olharam para si próprios e disseram: Mas o que sou eu? O que eu fiz?

Tiveram horror de si mesmos. E no momento desse horror de si mesmos, Deus estava falando aos srs.  e chamando os srs.  para amarem a Ele.

Meus caros, eu estou claro?

É assim, não é de outro jeito.

Depois, tal cena na vida de cada um, tal momento em que tomou a decisão: entrarei e servirei!

Como tudo foi preparado para essa decisão, como foi passo a passo, como a graça nos ajudou, mesmo quando hesitávamos, mesmo quando éramos tentados a voltar as costas, apavorados. Vinha um afago, vinha uma bondade, vinha uma coisa qualquer e nós caminhávamos mais para a frente. Mas nós não sabíamos, nem para onde caminhávamos.

Até o momento em que no nosso horizonte passou a TFP. Flâmulas, estandarte, cânticos, campanha, slogans: Tradição, Família, Propriedade.

Uma pulsação no coração: eu nunca ouvi ninguém falar disso, nunca vi ninguém conjugar assim essas palavras para formar um todo harmônico. Que brilho nisso, que maravilha!

O Sr. CA, que é nosso apóstolo na Inglaterra, me disse que o leão — diz-se “leãozinho”... ele é grande demais para ser diminutivo — [ele usa] o nosso leão na lapela. Eu me senti arrepiado com o que ele contou: que nosso leão é tão bonito, que a Inglaterra que tem como símbolo o leão, o leão britânico, as pessoas — apesar disso — em metrô, em casas de chá, na rua, param e perguntam de onde é esse leão tão bonito? Onde posso eu encontrar um leão assim?

Houve um momento em que os srs.  conheceram a TFP, e os srs.  disseram: que leão tão bonito! Na TFP os srs.  ouviram pronunciar uma palavra, essa palavra os srs.  a procuravam talvez sem o saber: castidade. Mais branca, mais alva do que uma pérola, mais doce do que o mel, mais luminosa do que a lua de um luar do sertão. Castidade, castidade.

Perguntaram o que é. Lhes falaram de pureza, os srs.  se encantaram: “Ó, a pureza; ó maravilha, quero-a para a vida inteira”!

Mas os srs.  ouviram falar de outras coisas: os srs.  ouviram falar de Revolução, de Contra-Revolução. Entenderam que sua vida era uma batalha, que sua vida era uma luta, mas que essa luta era cheia de glória. A beleza da luta nasceu para os srs.  como um sol.

Tudo isso foi acompanhado de entusiasmo, de alegria, de embevecimento. Os srs.  viviam tendo a impressão que viviam num paraíso. Encontrar a TFP e viver nela, esse período em que tudo é alegria e consolação, é de fato viver num paraíso.

Conta a Escritura que quando entardecia, no sopro da brisa vespertina, Deus descia para conversar com Adão no paraíso. A gente diria que de vez em quando Nossa Senhora desce nessa época e fala. Ela nos promete tanta coisa...

Ela não está no direito de pôr em nossa alma uma prova? Tem sentido que Ela não exponha nossa alma a uma prova? Essa prova tem que vir. E essa prova nós devemos desejá-la. Ela é dura mas nós queremos mostrar a nossa gratidão. E não é só questão de mostrar, é exercitar, praticar. Nós queremos ser gratos, nós queremos ser como foi o filho do rei.

Então, às vezes, se apaga o esplendor da vocação. A gente continua chamado, mas não tem a degustação, as delícias se apagam. Por detrás das nuvens Nossa Senhora acompanha nossa alma com que amor! Ela está dentro de nós pela sua ação, pela sua graça e Ela nos ajuda. Nós também não percebemos. E nós pensamos que estamos andando sozinhos. Pensamos que estamos abandonados. Perguntamos: haverá, para esse abandono em que estou, em que não sinto mais o paraíso de outrora, haverá para isso alguma culpa de minha parte? Ó Deus, se há, Deus foi tão bom para comigo que assim mesmo eu confiarei nEle.

Há uma frase da Escritura que me agrada enormemente: Etiam si ambulavero in umbra mortis, nom timebo mala — ainda que eu caminhe nas vias sombrias da morte, eu não temerei os males porque Deus é meu Pai e Ele me perdoará, porque Nossa Senhora é minha Mãe e rezará por mim. Confiança, confiança, confiança. É justo que Ele me prove. Quem sabe se é uma prova? E quem sabe se eu sendo fiel agora eu faço com que os anjos cantam no Céu. Eu me sinto só, eu me sinto abandonado, mas os anjos cantam no Céu.

Houve uma alma muito piedosa que viveu no século passado chamada Maria Estela — aliás, um nome um pouco esquisito, não é Estela mas Eustela, enfim, isto não lhe tornará nem mais larga, nem mais estreita a porta do Céu. Chamava-se Maria Eustela da Sagrada Eucaristia. Ela era uma moça, tinha pai e mãe vivos, era família de pequeníssima burguesia, talvez de proletariado, digna honesta.

Aquilo tudo se foi desfazendo: morreu o pai, morreu a mãe, ela ficou reduzida à miséria. Afinal de contas ela ficou operária numa fábrica qualquer — era na Inglaterra que se passava esse fato — e morava sozinha num quarto. Tinha que varrer e limpar o quarto de manhã, antes de ir para a fábrica para que quanto ela viesse exausta do trabalho não ter que limpar o quarto. Ela era uma alma limpa e queria um quarto limpo. Queria deixar tudo arranjado antes de sair.

Ela tomava um café pequeno e ia para o trabalho. Nesse dia — e ela não tinha outra coisa senão aquele talher que usava — nesse dia ela faz um movimento qualquer inábil, cai a xícara no chão e ela não tinha mais nem sequer com o que tomar o café da manhã.  

E ela que tinha vindo de aridez em aridez, de desolação em desolação, de tristeza em tristeza, vendo que até isso desaparecia ela disse sozinha: “meu Deus, até lá irá a prova?” Abaixou-se para pegar os cacos. Quando ela reuniu os cacos nas mãos, os cacos se recompuseram. Está dito tudo, não tenho que acrescentar nada.

Há coisas assim na nossa vida espiritual. Nós vamos para a frente etc., e começa o demônio a tentar. Começa a se empalidecer o horizonte de delícias no qual nós caminhávamos no paraíso da nossa vocação. Começa então o demônio a fazer apagar em nosso espírito a recordação de como o mundo era mau. Nós perdemos a noção da Revolução. Nós somos levados a achar que os revolucionários não pecam tanto, que o mundo não peca tanto.

- E a mensagem de Nossa Senhora em Fátima que tanto te impressionou?

Ah, é verdade, tem essa mensagem, mas eu não sei bem como interpretá-la. Quem sabe se tem lá uma saída para essa interpretação, porque tão más as pessoas não são.

- Mas olhe aqui, o aborto entrou; os pais matam os filhos aos milhares, aos milhões todos os dias. Você não acha isso mau?

Olha, eu conheço aqui ao lado um casal que aborta. Sabe que eu acho a senhora uma boa senhora? Eu a vejo até dar esmola! E o marido é simpático para mim, até já me arranjou um bom negócio... foi por causa dele que eu pude comprar um bom automóvel. Eu não vou dizer que esse homem é ruim. Se ele é bom para mim, eu vou dizer que ele é ruim?...

Não sei se os srs.  estão vendo que Deus vai sendo posto de lado. Deus não é mais o ponto de referência de tudo. Se ele é ruim para com Deus, ele é totalmente ruim. Pouco importa que ele seja bom para comigo; para com Deus ele é ruim. Se ele é bom comigo, mas é mau com Deus, eu não o quero porque eu quero a Deus.

Vai aparecendo um certo relaxamento no olhar as coisas do mundo. No olhar até, até, até os companheiros de pecado que a gente largou: “eram engraçados, tinham até tal lado bem intencionado, eu não posso também dizer tanto assim, etc.”. Lá vai a coisa por aí. Pode acontecer.

É o pai, rei, que adotou o filho plebeu, que o encheu de bens, mas agora quer uma prova de gratidão. E no caso concreto quer que o filho diga: “não, o que vale não é o que eu miserável estou vendo neste momento de provação; o que é verdade não é o que aparece aos meus olhos turbados por uma prova interior muito grande, é verdade o que ensina a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, à qual eu quero ser fiel nas mais terríveis aridezes, à qual eu quero ser fiel nas mais terríveis provações, porque eu recebi das mãos da Igreja o Batismo; eu recebi quantas vezes o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo realmente presentes na Sagrada Eucaristia; eu recebi o estado de graça que por miséria eu tinha perdido; eu recebi minha vocação: eu não largo disso. Seja como for, caminharei no escuro e nas trevas, poderei me sentir abandonado por todos e até por Deus, mas Deus não me abandonará. Não morrerá em minha alma a convicção de que a Mãe dEle reza por mim no Céu, que Ela pode tudo e que Ela consegue todos os perdões. Eu vou para a frente”.

É o pagamento da vocação. É por onde o filho cumulado de bens, de graças e de dons paga o que recebeu. E pagando o que recebeu, fica pronto para que Deus lhe peça novas provações, ele dê novas manifestações de heroísmo e na hora da morte Deus o introduza no Céu, dizendo: este é um herói a mais nesse universo de heróis que é o Reino dos Céus.

* * *

Vai começar a campanha. Como é bonita a campanha na hora em que ela é declarada. Como é bonito quando estamos de alabarda na mão, em que nós batemos no chão e dizemos “Praesto Sum” [estou pronto]; como é bonito quando nós nadamos de entusiasmo no Auditório São Miguel; como é bonito quando estamos no auditório de Jasna Gora durante a Reunião de Recortes e todo mundo nos aclama. Como será bonito na hora da partida em que os que ficarão estarão presentes e nos invejarão... seremos como meteoros que saem para a conquista dos espaços celestes.

Mas... mas...

[vira a fita]

Ela seria muito pouco bonita se não houvesse esse “mas”. Os braços abertos grandes como se fosse uma cruz espera-nos no caminho alguém. E esse alguém se chama sacrifício. Nós vamos encontrar gente que vai caçoar de nós, nós vamos encontrar gente que vai nos dizer “não”, nós vamos encontrar gente que vai bater com a porta na nossa cara, nós vamos encontrar gente que vai nos chamar de hereges, que vai nos chamar de subversivos; nós vamos encontrar gente que não quererá comprar o que nós vamos oferecer; nós vamos encontrar gente que será indiferente, que olha para nós e nós diremos: não percebe o comunismo que pode vir?

- O que me incomoda? Contanto que eu tenha aqui esse automóvel para passear mais um pouco, você, o comunismo, tudo o mais não me incomoda. Vá embora, eu estou gozando a vida. Quer que diga mais? Bobo é você, esperto sou eu que seu gozar.

Os srs.  vão entrar em nuvens de poeira, em hotéis cheios de sujeira, vão comer comidas péssimas, vão ter cansaços enormes.

Quando encontrarem tudo isso, lembrem-se bem, lembrem-se bem, nesta hora os srs.  devem pensar: Dr. Plinio previu que isso nos aconteceria. Dr. Plínio nos avisou, ele sabe que coisas dessas nos acontecerão no caminho em que nós entramos, ele está nos estimando especialmente por causa disso. Apesar da enorme diferença de idade ele está nos respeitando; mais ainda, ele está nos admirando. Por quê? Porque estamos nos sacrificando, estamos aceitando a prova.

Sai pela rua [bradando]: "Catolicismo"! Brasil em chamas! A reforma agrária ta, ta, ta... com redobrado entusiasmo, com redobrado furor.

Nesta ocasião saibam: muito mais do que o Dr. Plínio estará achando, infinitamente mais Deus estará contente no mais alto do Céu. Nossa Senhora estará sorrindo e os anjos estarão cantando. Sobre vossas cabeças brilharão as Bem-aventuranças.

Bem, e os que não vão?

Os srs.  sabem que terminada a Reunião de Recortes o automóvel vai até a camáldula. Eu ali vejo a eles. Eu estava calculando que eles estariam loucos para participar da mesma gesta. Eu disse a eles outra coisa: “olha, dos srs. Deus eu creio que espera mais; Ele espera que cada um dos srs. no seu interior combata redobradamente os próprios defeitos, pratique eximiamente as virtudes que são próprias à vida camaldulense até que as circunstâncias venham a exigir que também os srs. sejam chamados.

“Qual é o papel disso? Se os srs.  lutarem contra si, em si, podem pedir a Nossa Senhora que o mérito dessa luta seja aplicado para sustentar a eles. E com isso os srs. estão no âmago da luta, porque se esses eremitas, nessa itinerância forem exímios na vida interior, combaterem as tentações, combaterem os maus olhares, combaterem os maus pensamentos, combaterem o amor-próprio, o orgulho, combaterem as saudades do tempo em que não eram bons, combaterem os efeitos dessas aridezes que podem vir à vida espiritual, se eles fizerem isso, a vitória está na ponta dos passos deles.

“Mas para que eles o façam é preciso que outros sofram dentro deles, com eles. E esses são os srs.” 

E eu usei uma comparação:

“Imaginem um canhão que vai dar um tiro — o papel do canhão numa guerra é uma beleza, não é? Primeiro, o canhão ele próprio não é desprovido de beleza e depois, sem segundo lugar, prrrummm... que beleza. Mas para que o tiro parta, há dentro do canhão não sei que dispositivos que dão à bala uma parte do embalo que ela recebe. O embalo não vem só da força da detonação, mas de molas e coisas ali dentro que dão o jato.

“O camaldulense que fica na camáldula e que não sai, mas que contribui com seu sacrifício para que o tiro tenha todo o embate, este tem uma parte esplêndida na vitória. Não bate nele a luz do sol que bate na bala que sai bonita como uma jóia, é verdade, mas Deus sabe qual é o papel daquilo que ficou dentro do tubo”.

Há uma porção de enjolras, menores de idade que não podem ir. Eu os estou vendo aqui. Há outros que por razões especiais, trabalhos que fazem etc., não podem ir, eu estou vendo daqui. Lutem por esta forma que é uma forma de luta quintessenciada, procurem ser super-fiéis. Que as coisas sejam tais que os eremitas fiquem pasmos com a própria fidelidade e se digam: a esta hora um irmão meu, na sombra da camáldula, fez alguma coisa de extraordinário, eu aqui estou mais aguerrido [do que nunca].

Não está garantido que, sucessivamente, outros e outros não sejam convidados. Só não serão convidados os menores de idade a quem os pais proibirem ir. Esses não serão convidados.

Está bem, esses tenham a coragem de carregar esse peso da fidelidade dentro de uma vida aparentemente insignificante. Vão ao colégio, vão ao trabalho, levam uma vidinha e recebem aqui os ecos como se fossem os ecos de uma música militar, da gesta dos outros. Resignem-se e façam cada vez mais atos de virtude, cada vez mais rezem. Terão sido uma parte determinante da vitória.

Aí está, meus caros, o que eu tinha que dizer nesta noite. E o tempo foi muito além do que eu devia. Em qualidade está aquém do que eu queria. De qualquer modo está encerrado.

[Fatinho]

Fatinho já contei.

(Sr. Fernando: se não for indiscrição, contar alguma prova que tenha sentido e como fez para enfrentar)

As piores provas talvez tenham sido as da espera. Imaginem que eu tenha um amigo a quem eu tenha que dar dinheiro. Eu tenho dois modos de dar: dar moeda, contada e depois dizer a ele “eu dei a você 150 milhões de cruzeiros; está tudo contadinho, olha ali”.

Outro jeito é pegar canastras cheias de moedas e jogar em cima da mesa dele: “isso é seu, nem quero saber quanto é. Tudo quanto é meu, é seu”.

Quem deu mais generosamente? É o segundo. Assim nós devemos dar a Deus. Eu nunca me perguntaria qual foi o maior sacrifício que fiz, com receio de estar contando as moedas...

Respondo por alto: as longas demoras sem fim talvez tenham sido a pior das coisas. Eu fiz o possível para corresponder bem à prova. E corresponder bem à prova era: em nenhum momento desanimar, em nenhum momento deixar de fazer tudo que tinha que fazer, por pouco que fosse e por mais provável que não desse resultado, e por outro lado procurar em mim a culpa da demora, e nunca imaginar que Deus não estivesse agindo da maneira super-perfeita que é a dEle.


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