Plinio Corrêa de Oliveira

 

Ó Bom Jesus paciente e sofredor,

tende piedade de mim e santificai-me inteiramente!

 

 

 

 

 

Auditório São Miguel, Santo do Dia, 7 de abril de 1984

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A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.


 

É muito oportuna a meditação da flagelação de Nosso Senhor Jesus Cristo neste momento em que, como foi lembrado aqui, a Santa Igreja caminha para o Domingo da Paixão, depois para o Domingo de Ramos e para as santas e, por assim dizer, lúgubres tristezas da Semana Santa.

Assim nós podemos começar a meditar esse Mistério da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo: o primeiro mistério em que nós vemos, no Rosário, sofrer verdadeiramente o Seu Corpo Santíssimo.

Na Agonia, que é o primeiro mistério doloroso, Sua Alma Santíssima sofreu inenarravelmente. A repercussão desse sofrimento de alma sobre o Corpo ocasionou o suor de Sangue que nós analisamos na última reunião. E com esse suor de Sangue, com reflexos que os tormentos da alma têm sobre os tormentos do Corpo. Mas, em si, o Corpo Sagrado de Nosso Senhor Jesus Cristo ainda não fora atingido: era à maneira de corolário, diretamente não fora atingido.

O primeiro mistério em que nós contemplamos o Corpo d’Ele atingido é a flagelação. Segue-se à Flagelação, a Coroação de Espinhos, Nosso Senhor com a Cruz às costas e a Crucifixão. Assim, nesses quatro pontos sucessivos, a Paixão inteira de Nosso Senhor, de Alma e de Corpo, está expressa. Mas acontece que o sofrimento da Alma não cessou de nenhum modo, quando começaram os sofrimentos do Corpo. Pelo contrário foram num crescendo, cada vez mais. a Paixão de Sua Alma foi-se desenvolvendo à medida em que a Paixão do Corpo se desenvolvia também e chegou, exatamente, ao ápice, quando Ele disse ao expirar: “Consummatum est!” Aí a Sua dor de Alma tinha chegado ao auge…

Como considerar esse Mistério da Flagelação de Nosso Senhor Jesus Cristo dentro dessa perspectiva?

[...]

Tudo quanto há no Universo valia menos do que Nosso Senhor Jesus Cristo. Os senhores podem imaginar o comprazimento de Nosso Senhor Jesus Cristo, comprazimento santíssimo, sem nem de longe se assemelhar àquilo que nós achamos de egoísmo e que é uma paixão tão vil e tão imunda em nós, sabendo-se como era, conhecendo-se como era e a natureza humana dizendo dentro dEle à natureza divina, dizendo às Três Pessoas da Santíssima Trindade: “Eu sou o Vosso Espelho mais exato em toda a Criação. Glória a Vós!”

Mas porque Nosso Senhor Jesus Cristo é o Homem-Deus, porque Deus se ama infinitamente a Si próprio, porque o Homem-Deus no que Ele tinha de humano amava infinitamente o que Ele tinha de divino, por causa, precisamente, disso Ele tinha gosto em que, por amor de Deus (mão era por uma vaidade; isso está inteiramente afastado) os homens contemplassem esse reflexo de Deus e O adorassem. Para Ele era uma razão de alegria, quando Ele se apresentava às multidões e as multidões iam ao encalço d’Ele. Tanto ao encalço d’Ele que era preciso os Apóstolos O protegeram para não chegarem perto demais.

Nós temos a cena d’Ele, contada pelo Evangelho, pregando para o povo de dentro de uma barca, para não deixar o povo chegar perto, para Ele poder falar. Como Ele tinha a voz perfeita e de que suavidade, de que força, de que grandeza, de que riqueza de inflexões, de que capacidade de atingir qualquer distância, porque era assim, Ele da barca podia falar admiravelmente as coisas mais fulgurantes ou mais doces, ouvidas a qualquer distância. Ele via assim as multidões que O seguiam.

Ele passava por algum lugar e via alguma pessoa que estava sofrendo, estava sozinha, numa estrada, num caminho, Ele parava e dizia: Vem cá, faço um milagre! Ele via com isso as almas que se abriam para Ele. Ele tinha nisso a felicidade que Deus tem na Sua própria Glória. A alegria que Deus tem vendo que a criatura que Ele criou e chamou para amá-Lo se abre para Ele tocada pela graça e diz: “Meu Senhor e Meu Deus!”

Ele, para provar aos homens que Ele era Homem-Deus e para dar aos Homens uma noção de quem era El que era missão d’Ele na pregação ensinar quem era Ele, Ele tinha como instrumentos: primeiro – e que instrumento incomparável - a Si próprio! Depois tinha o que Ele dizia: doutrina incomparável, simplicíssima, delicadíssima, fortíssima, lógica inquebrantável, verdade intocável, irrepreensível, perfeita, os homens até no fim do mundo estudarão o que está no Evangelho, nos sermões d’Ele e os homens não chegarão até ao fundo… Além disso, Ele tinha os benefícios que Ele fazia; todos os milagres que Ele praticava para curar, para aconselhar, para ajudar, etc., etc., que mereceram que São Paulo fizesse d’ele este elogio tão simples e tão grandioso: “pertransit benefaciendo - passou pelo mundo e fez o bem”. Foi o que Ele fez! Em todos os lados, de todos os jeitos, o bem! o bem! o bem!… de todo o lado o bem, o bem mesmo quando Ele punia! E quando Ele tomou de um látego na mão e expulsou os vendilhões do Templo, Ele tem que ter sentido alegria, força, tristeza em que os vendilhões fossem assim. Mais ainda: com a Bondade d’Ele para com os vendilhões. Ele deve ter aterrorizado os vendilhões, mas dado a graça do temor, para ver se eles se convertiam. O Seu braço fortíssimo, Seu braço divino atingia e metia em fuga, mas a sua graça procurava levantar, ao mesmo tempo, para se unirem a Ele através do temor de Deus. Era esta a ação d’Ele.

Milagres em que quantidade! Milagres físicos (pessoas que Ele curou); milagres morais (pessoa péssimas, pessoas perdidas, pessoas completamente desviadas pelos recantos da vida e que, entretanto, conhecendo a Ele se voltavam para Ele e, de um momento para o outro ficavam livres.

Mais ainda, talvez mais terrível: pessoas tão embotadas no mal que O conheciam, convertiam-se por pouco tempo e caíam no pecado de novo; Ele ia atrás pegava e trazia para o bem. Ricos como Lázaro; pobres como as multidões que O acompanhavam; poderosos como Nicodemos e José de Arimatéia, tudo mais… tudo seguia a Ele encantado com Ele… Isto era o lado de alegria que a vida deu a Ele!

Não era o lado principal, o lado principal era diferente. Não era o sol dessa glorificação geral. O lado principal era uma lâmpada, uma lâmpada acesa na Casa de Nazaré: o Coração Sapiencial e Imaculado de Maria!!! Cujo amor excita o amor de todos os homens que houve, há e haverá até ao fim do mundo, que dava a Ele o contentamento enorme: “Minha Mãe!…”

Bem, dir-se-ia que vindo à Terra o Homem-Deus, diante de provas tão claras, de manifestações de uma superioridade divina, a todo o momento e à toda a hora, diante de tudo isto, os homens do povo eleito, do povo judeu, que estava separando o salvador, especialmente porque sabia que esse salvador nasceria deles e se haveria de reconhecer o Messias, e haveria de aclamá-Lo com glória e haveria de pô-Lo no píncaro do gênero humano. Porque se o povo judeu tivesse reconhecido o Messias, com a força de Nosso Senhor Jesus Cristo… romanos, gregos, persas, egípcios… Nada! Nada seria nada! Eles ascenderiam a um cume extraordinário!

Pois bem, aqui começa o mistério: a maldade humana. Esse povo que existia para isto, que gemia porque o Messias não vinha. Quando o Messias veio se pôs desde logo a persegui-Lo e se cindiu… Uma fração pequena do povo começou a adorá-Lo a partir dos pastores que estavam em Belém que tiveram o anúncio do nascimento d’Ele.

Mas, de outro lado, outra parte, a parte maior, começou a persegui-Lo e veio logo depois o cálculo infame da Herodes: “deve ter nascido o Messias, porque os reis Magos estão dizendo; isto vai pôr sombra em mim; matá-Lo sem culpa, sem se quer O ter visto; matá-lo só porque Ele está no mundo; Ele é o salvador previsto pelos profetas; eu estou acreditando, estou achando pelo menos tão possível que eu até estou amedrontado; e para que eu goze a minha vida, para que eu tenha o gosto de ser rei, eu vou mandar matar a esses…” Manda matar todos os inocentes para evitar que o Inocente por excelência viva.

Desígnios misteriosos de Deus, caminhos que a gente compreende só depois, São José coarctado pela falta de bondade da população de Belém, que não quis receber nem a ele, nem a Nossa Senhora, levou Nossa Senhora para uma gruta fora da povoação. Ele talvez não terá pensado que ele estava levando Nossa Senhora para um refúgio. E todas as crianças que tinham casa morreriam, que o Menino nascido na gruta, Esse não morreria!

Não pensaram nisso, mas Deus…

De outro lado começa Ele a praticar os milagres, a entusiasmar o povo etc., etc. O cálculo de Herodes se repete, exatamente, nas classes que mais O deveriam aclamar, quer dizer, na classe sacerdotal, na classe alta política começa o medo: “o que é este homem que está levando atrás de Si tais multidões? De repetente o que é que fica o nosso poder? Nós diante d’Ele não ficamos nada! É perigoso para nós…” começa então a perseguição.

A perseguição começa muito modernamente por uma espécie de guerra – “psywar” [guerra psicológica] de máfia, calúnias e perguntas embaraçosas… Os fariseus, os saduceus mandam gente falar com Ele e fazer perguntas que O ponham mal à vontade… Pobres coitados!… Se uma formiga quisesse disputar com um animal quimérico que fosse pesado como um elefante e forte como um leão, a formiga estaria mais forte de vencer do que qualquer homem disputando com Nosso Senhor Jesus Cristo!

Perguntas elaboradas nos laboratórios da maldade e da insinceridade, todas retorcidas, todas cheias de ciladas… Posta a pergunta… Em geral, resposta simples, direta, pulverizadora e luminosa!

- “A quem haveremos de pagar tributo: a Deus ou a César?”

- De quem é essa moeda: de Deus ou de César?

- É de César!

- Pois dai a Deus o que é de Deus, e a César o que é de César!”

Não tem mais nada!… Forma-se uma bipartição, uma pressão… O Evangelho conta que corriam máfias [calúnias] a respeito d’Ele: uma máfia era que Ele era glutão; outra máfia era que Ele era mundano ou ambicioso… Ambicioso?! Ele que era tudo! É mais ou menos como imaginar que um leão quisesse fazer carreira transformando-se na abelha mestra de uma colmeia. Quer dizer um leão… Não é nada! Não pensem nisso!… Ambicioso e que por isso Ele comia em casa de gente que tinha dinheiro para bajular as pessoas que tinham dinheiro. Falaram até – suprema calúnia, supremo insulto contra a evidência! – que Ele tinha parte com o demônio. Logo Ele que era direta e esplendorosamente o contrário do demônio... A tal ponto que não é nem exato, nem tão bom dizer que Ele era o contrário do demônio. O demônio era o contrário d’Ele!

Em toda esta perspectiva começa-se a criar uma onda contra Ele. Essa onda vai indo para a frente, vai indo para a frente e leva em primeiro lugar os ruins. Quando foi o momento de levar só os muito ruins, os muito ruins eram uma minoria muito bem colocada, muito poderosa, muito influente - é verdade -, mas era uma minoria.

Mas, depois, a partir da tintura mãe desta maldade da minoria a onda começou a crescer e começou a tomar, “de proche en proche”, de vizinhança em vizinhança, começou a tomar, depois destes, os ambiciosos, começou a tomar os que se vendiam, os que não amavam o mal pelo mal, mas que se amavam tanto que colocados diante de Nosso Senhor Jesus Cristo, que procurando a sua própria glorificação (a deles) começavam a falar mal d’Ele também e diziam d’Ele um mal de que não estavam certos.

Depois destes maus de 2º grau, uma outra zona moral do povo foi atingida, e foi atingida a zona dos moles. São muitos os que pensam assim contra Ele: “Se eu disser o que eu penso, eu vou ser perseguido; perseguido eu não quero ser; embora contra Ele esteja se fazendo uma injustiça abominável, embora eu verifique que é a ignomínia e que é a infâmia falar d’Ele o que estão falando, é com Ele! Não é comigo… comigo é levar vida fácil, agradável, de maneira que eu me possa instalar bem nesta terra. Eu comprometo a minha carreira tomando o lado d’Ele! Logo, eu vou também falar mal d’Ele… Falar mal… É horrível falar mal. Eu vejo um fulano que é um moloide como eu, não tem coragem de enfrentar os outros, para não ser perseguido fala mal de Ele. Mas eu sou um homem reto, eu não falarei mal d’Ele, eu simplesmente não falarei bem… e quando disserem d’Ele, diante de mim, as coisas mais inverossímeis, eu ficarei quieto. Não direi nada, eu não falo contra Ele, não sou inimigo d’Ele não; no fundo até eu gosto d’Ele… Lá bem fundo, bem escondido, eu gosto dEle… Às vezes rezo para Ele… e Ele me atende… Ele é tão bom que Ele me atende. É razão a mais para eu não tomar o partido d’Ele. Se Ele não me atendesse, eu talvez tivesse vantagem em tomar o partido d’Ele, pois Ele me atenderia. Mas uma vez que Ele me atende até quando eu não tomo o partido d’Ele, eu fico bem com uns e fico bem com Ele. Encontro aí o caminho bom para mim, é onde eu me ponho.”

E depois vem a corte imensa dos imbecis, voluntariamente imbecis, dizer: “não, esse problema eu não tenho bastante inteligência para me situar diante desse problema; se eu visse com clareza qualquer coisa a esse respeito, eu tomaria posição. Mas sabe, Deus me deu uma inteligência pequena, eu não tenho muito jeito de resolver isto; de maneira que eu vou fechar os olhos para isto e vou deixar correr o marfim…”

Essas várias zonas do povo foram sendo atingidas e foi se colocando em torno d’Ele o vazio…

Há uma festa que é a entrada em Jerusalém d’Ele no Domingo de Ramos. É uma grande festa, é uma manifestação de quanto o povo, apesar de tudo, O via e apreciava… mas não era na medida do necessário, não era na medida do justo. Aclamavam-No, é verdade, mas Ele merecia outríssimas aclamações, outríssima adoração! E esta não tinham para com Ele… Fazem-Lhe uma meia festa na qual Ele entra com tristeza.

É por isso que em geral, as pinturas e gravuras que apresentam a entrada d’Ele em Jerusalém, O apresentam entrando, mas entrando com tristeza, entrando com pesar e olhando com um olhar quase severo para a multidão que O aclamava. Para Ele, o interior das almas não oferecia segredo, Ele percebia a insuficiência, a precariedade daquela ovação de que Ele era objeto...

Humildemente, caminhando sentado sobre o burrico, Ele atravessa aquele povo… de vez em quando ainda chamando a todos pela Sua presença, chamando a todos a amarem a Deus, a amarem a Ele, Homem-Deus. Mas, ao mesmo tempo, percebendo as negações, as recusas, a frieza, a hipocrisia deste ou daquele ato de admiração ou de adoração, percebendo tudo isso. Se lamentando, sofrendo, sofrendo… em certo sentido, se fôssemos estudar o sofrimento de Nosso Senhor Jesus Cristo inteiro, não só a Paixão, a gente diria que a partir da primeira ingratidão Ele começou a sofrer. Quando teria sido essa primeira ingratidão? Não se sabe… Ela veio aos tufos, ela veio em quantidade no Domingo de Ramos. Se fosse só isso… Se fosse só isso…

Aproximam-se as festas judaicas da Páscoa e Nosso Senhor fiel à lei judaica e de que Ele era, como Deus, o legislador da Lei judaica, realiza a Ceia na Quinta-feira e está com os Seus apóstolos à mesa.

Ele sabia que um O tinha traído… Era um apóstolo que estava em crise; esse apóstolo era um homem que O tinha amado, que Ele tinha chamado, quer dizer, pela graça. Ele atraiu Judas Iscariotis para junto dEle; mas esse apóstolo, provavelmente, correspondeu mal desde o primeiro momento, foi um apóstolo poca que deu, depois, num apóstolo infame; crise, crise, crise… Confiaram a esse homem a guarda do dinheiro das esmolas e - nos conta o Evangelho - ele era ladrão e, por causa disso, roubava o dinheiro dado aos pobres para gastos consigo, para fazer um “pé de meia” que ele terá querido enriquecer com os 30 dinheiros da traição mais infame da História.

Essa crise - se fosse só ela! - mas todos os apóstolos fervorosos… Reúnem-se, é o banquete… Ele primeiro lava os pés dos apóstolos, perdoa-lhes os pecados, vão para a mesa; Judas sentado ali… Vão para a mesa e Ele dá a Judas aquela ordem misteriosa: “o que tens que fazer, fazei-o logo!”… e Judas saiu de noite e foi consumar o pecado dele.

Ele não mandou Judas pecar, Ele tinha dado a Judas alguma ordem, que Ele mandou Judas cumprir. Mas Judas naquele momento rompeu e saiu… Os senhores podem imaginar com passo aflito, apressado, trinta dinheiros... trinta dinheiros… quero trinta dinheiros!… É melhor não imaginar como é que se fez o pacto e como é que ele se sentiu, quando ele sentiu os trinta dinheiros pesarem na sua sacola… Os senhores conhecem essa história que terminou ignobilmente numa figueira… eu não vou perder o meu tempo com isso… Não vou perder o tempo dos senhores com isso!… eu passo adiante.

Os apóstolos bons estavam lá… Um deles, numa hora de intimidade, fez-Lhe a pergunta depois que Nosso Senhor disse “um de vós há de me trair… com uma tristeza que vinha enchendo a sua alma… Um daquele haveria de O trair. Ele foi tão bom, que Ele não disse outra coisa…” e vós todos haveis de Me abandonar…” Como Ele conhecia a traição, ele conhecia o abandono. Olhando para aqueles… O que é que vai acontecer… Um colocou o ouvido sobre o peito d’Ele num gesto de amizade e de intimidade: era São João. Perguntou quem era. “Este a quem Eu der o pão molhado no vinho”. Ele não quis dizer o nome de Judas, para não perceberem; deu uma resposta rápida. A gente vê que Ele respondeu baixinho. Pegou o pão e ofereceu amavelmente a Judas. Foi isto, evidentemente, antes de Judas sair. Carinhos por cima de Judas até ao último momento…

Quando Judas ainda vem prendê-Lo e O oscula, ainda é uma pergunta com carinho: “Judas, com um ósculo tu trais o Filho do Homem?” Trinta dinheiros… O resto não importa, tem trinta dinheiros…

Nosso Senhor passa pela tristeza dos apóstolos também não O verem. No Horto das Oliveiras quando eles dormiam, todos esses os esplendores de Nosso Senhor Jesus Cristo para eles era um nada. Eles queriam dormir; estavam com sono e queriam “nhonhozar” [viver comodamente] e na hora do perigo todos fugiram, até aquele que pousara o ouvido sobre o peito d’Ele e ouvira o bater do Sagrado Coração de Jesus.

Então, Ele sentia na Paixão d’Ele a glória que Ele tinha dado a Deus. Aquele símbolo de Deus que Ele era, Ele sentia-Se completamente recusado pelos homens, completamente recusado pelo povo eleito. Entretanto, Ele era tão divino, tão incomparável, por que tinha feito isto? Que enorme injustiça! Que impiedade sem conta! Que revolta atrás contra Deus! A tristeza d’Ele, a indignação d’Ele… O sofrimento da Alma d’ele…

É neste ponto que entra exatamente a Flagelação, quer dizer, a Este que era o Homem-Deus, eles tomam… é o primeiro lance, o primeiro mistério considerado no Rosário, mistério de agressão física considerado no rosário; amarraram-Lhe as mãos!

Depois O atam a uma coluna e O entregam para flagelar. E começa a flagelação diante d’Aquele símbolo incomparável de Deus, começa a fustigá-lo com ódio por ódio de Deus. Os senhores dirão: Mas eles não sabiam que Ele era o Homem-Deus. Negavam que fosse o Homem-Deus! Como o Sr. pode dizer que era por ódio de Deus?

Eles viam aquela perfeição que simboliza Deus, que é uma só Pessoa com Deus, e Aquela perfeição eles odiaram!

Odiaram ou não odiaram a Deus? Se um homem toma a fotografia de um dos senhores, ignora que essa fotografia é daquele e não conhece aquele, só conhece a fotografia. [e dizem] Mas que tipo antipático, detestável! Eu vou crivá-lo de punhaladas, depois amarro numa árvore a fotografia dele e dou tiros; depois ainda pego fogo nos molambos de papel que restarem!  Os senhores dirão: Esse homem não me quer, ele me odeia! - Não, não, mas ele não sabia que a fotografia era de você... - Mas ele me viu e me odiou! É claro!... Eles sabiam, portanto, nesse sentido, eles sabiam! Estava Deus ali! E eles viram.

E começa então o diálogo, o contraste pungente entre a mansidão, a bondade, a voluntária incapacidade de defender-se, de um lado; e o ódio brutal, estúpido, cruel, de outro lado.

Nosso Senhor é amarrado. Amarram-Lhe as mãos. Os senhores podem imaginar que Lhe dizem com brutalidade: “dá cá as mãos!” Ele sabia que não com uma mão, mas com um dedo, ele podia expulsar aquela gente toda. No Horto das Oliveiras, os senhores viram. Se Ele dissesse: “Eu não quero dar a Minha mão” e chamasse as cortes do Céu para descerem e para O defenderem, elas viriam imediatamente. Porque Ele não chamava, Ele mandava.

“Entrega as mãos!” Amarram as mãos. Amarram com brutalidade, com cordas toscas, rudes, que arranham; com um modo de amarrar que, com certeza, atormente, prejudica a circulação etc., tolhe os movimentos. Amarram com a ilusão estúpida de que amarrando, Ele estava amarrado. Era só Ele dizer: “corda, rompe-te!” e ela caía no chão e se Ele quisesse se transformava em serpente. Essa serpente atacaria aqueles malvados… Mas Ele queria sofrer.

O extraordinário é que uns O queriam flagelar e outro, o Outro com “O” maiúsculo, queria ser flagelado, sabia que ia ser flagelado e queria ser flagelado. Ele se entregou à Flagelação.

Ato contínuo, já Lhe tinham tirado, com certeza mandaram-No a Ele que tirasse a túnica, que tirasse a Sua vestimenta sagrada e jogaram aquilo num canto. Entretanto, era a túnica inconsútil (quer dizer, que não tem costura, que tinha sido tecida por Nossa Senhora), túnica que não tinha sujeira nenhuma. O Corpo divino só podia a mais alva limpeza. Com o ato de vontade d’Ele nada podia macular esta túnica: a túnica de sua alvura incomparável etc., e tal. Eles pegam e atiram aquilo no chão com raiva. Ele pensa nas mãos de Nossa Senhora que teceram aquilo… Não diz nada! Era mais um sofrimento. Este sofrimento Ele queria sofrer.

Isto posto, levam-No para junto da coluna e com certeza com bofetadas, com empurrões, com gargalhadas, amarram aquela corda que estava nas mãos em alguma argola da coluna, porque é assim que se fazem as flagelações. E começam homens… Que homens? Pode-se imaginar isto, aquilo, aquele outro… Começam homens com açoites tremendos a fustigá-Lo com toda a força e Ele a gemer. Os senhores podem imaginar a doçura desse gemido, a beleza harmoniosa desse gemido! Este Corpo Santíssimo que se contorcia de dor pela brutalidade de castigo que estava… Castigo… Castigo… Pela brutalidade do tormento que estava sofrendo…  Pedaços de carne caíam no chão e eram as carnes do Homem-Deus. O Seu Sangue Salvador que corria aos borbotões… Ele, de pé, digno, digníssimo, manso, inteiramente manso, sem um protesto, sem uma exclamação de dor, apenas falando com o Padre Eterno! Era o Seu refúgio naquela ocasião. E Seu Corpo, de alto da cabeça até à planta dos pés, o Seu Corpo ficou cheio de ferimentos gravíssimos. O Seu Sangue correu. Começou o Martírio do qual haveria de resultar a Redenção do gênero humano.

Terminada a Flagelação, mandaram-No (os tempos eram de mais pudor que os tempos de hoje) pegar a túnica e Ele foi pegar a túnica, que já estava ensanguentada, colocou-a sobre Si. E quando a ia pegar, aqueles homens maldosos empurravam a túnica com o pé, jogavam de um lado para outro. Ele ia de um lado para outro, com toda a paciência e sem protestar, pegar a túnica ali, pegar a túnica acolá, pegar a túnica lá… até que a brincadeira deixou de interessar a eles… Ele pegou a túnica com as dores de movimento que os senhores podem imaginar e Ele revestiu-Se da túnica. Ele sabia que estava pronto para começar a Via Crucis. Entrava em outra sequência enorme de tormentos de toda a ordem. Isto é que Ele estava dando...

Os senhores veem aí atrás uma imagem muito expressiva, muito bonita. Ela é principalmente bonita, se os senhores a olharem de baixo para cima, onde Seu olhar dá toda a expressão do que, segundo o artista, a meu ver com fundamento, era o estado de espírito d’Ele durante a Flagelação: preocupação, dor diante do tormento que vinha, aflição diante do tormento que vinha, a dor de que estava sofrendo todo o Seu Corpo. Mas os senhores notam uma distinção completa, uma mansidão perfeita, uma dignidade de Rei! Nunca Rei nenhum teve uma púrpura igual à d’Ele, púrpura de Seu Sangue infinitamente precioso. Seu Sangue começou a correr…

O que pensar de tudo isto? O que dizer, no total, de tudo isto?

Isso foi o pórtico da Paixão cruenta d’Ele. É apenas o começo, porque depois veio a coroaação de espinhos, veio a Via Sacra, veio toda uma série de sofrimentos até ao alto da Cruz, até ao alto do Calvário…

Ele carregando a Cruz e caindo três vezes sob o peso da Cruz depois ainda O pregaram na Cruz e o Corpo d’Ele ficou doloridamente pendente das mãos, de maneira que aqueles pregos tendiam a rasgar a mão e os pés tentavam se apoiar para não cair e batiam nos cravos que estavam fixados nos pés e aumentavam a dor; a sede ia progredindo n’Ele em razão da quantidade de Sangue que ele tinha perdido...

E as torturas da morte, as sombras da morte começaram a invadi-Lo até ao momento em que Ele disse: “Meu Pai, Meu Pai, porque Me abandonaste?” E depois disse: “Consummatum est”. Pensando o tempo inteiro no gênero humano que Ele salvaria no momento em que Ele completasse a Sua Paixão, dizendo “Consummatum est!” Ali salvou o gênero humano. Mas até ao último instante cuidando dos outros… com um espírito e uma lucidez divina, ordenando todas as coisas. Para São João:

- “Filho, eis aí Tua Mãe!”

- “Maria, eis aí teu filho.”

Para o bom ladrão, São Dimas:

“Hoje estarás comigo no Paraíso!” - A primeira canonização feita: que glória! Que alegria!

Pensando em todos… Ele pensou em nós no momento da Flagelação e no momento em que Ele pensou, como em todos os atos da Paixão, nós todos passamos diante d’Ele; esta triste coleção dos homens passou diante d’Ele.  Ele sofreu por este, sofreu por aquele, sofreu por aquele outro… Sofreu por cada um dos senhores que eu estou vendo aqui, para alcançar para cada um dos senhores, para mim, as graças pelas quais estamos aqui!

E quando cada um dos senhores fizer o histórico de sua vocação, como foi chamado, como é que correspondeu, como é que cambaleou, como se pôs de pé, como se pôs a caminho, lembrem-se que Nosso Senhor Jesus Cristo pensou em tudo isto no momento da Flagelação.

Ele Se lembrou de tudo isso e que talvez, no momento em que tenha pensado em cada um dos nós, em mim que lhes estou falando, por mim ou por qualquer um dos senhores, um pedaço de Sua Carne divina caiu. E Ele, no meio da dor, pensou: “é por aquele filho que há de viver no século XX e que Eu amo, que Eu amo especialmente e que Eu quero que traga outros a Mim. É terrível, mas está bem sofrido!”

E lembrem-se! E lembrem-se que se um de nós pecar contra Ele, máxime pecado grave, é a mesma coisa do que tomar o pedaço da Carne que Ele deixou cair no Sangue por amor a nós, e Lhe atirar no rosto!

O que é que os senhores diriam de um flagelador tão cruel, que Nosso Senhor dissesse a Ele:

- “Meu filho, por você eu derramei isto, caiu-Me este pedaço de Carne no chão!

E o flagelador dissesse:

- Ah é?!… toma aqui!… Pum! [lança o pedaço de Sua Carne] No rosto…

Era pior do que qualquer açoite! qualquer açoite! Isso fazemos nós, católicos, fazemos sobretudo nós católicos especialmente chamados como somos nós, fazemos quando não somos fiéis a Ele.

Tudo isto deve ser meditado diante de Nosso Senhor Jesus Cristo na coluna, amarrado, com as mãos amarradas… e que sofre, e que sofre, e que sofre!...

O povo brasileiro, creio que também em Portugal se dá isso, tomou o hábito de chamar a Nosso Senhor Jesus Cristo assim manietado e coroado de espinhos: o Bom Jesus! O Bom Jesus! O Bom Jesus! Por quê? Porque Ele está tão Bom, tão Pacífico, tão Misericordioso… Deixou-Se amarrar, deixou-Se flagelar por nós…

É o Bom Jesus que os nossos pecados amarram, mas que nos olha com bondade e até onde nós impedimos que os braços nos toquem, nós não conseguimos impedir que o olhar nos acompanhe: é o Bom Jesus que nos olha!

Daí, tão apropriadamente, tão apropriadamente se cantou aqui o “Anima Christi santifica me!” A oração magnífica de Santo Inácio de Loyola que mereceria ser comentada em cada uma de suas súplicas. Estas súplicas são de tanta riqueza que não dá para comentá-las numa noite só. Eu me detenho na primeira…

Cada alma é diferente da outra. E São Paulo diz: “Stella difert stella! Cada estrela é diferente da outra”. A mim, pessoalmente, não é necessariamente com os senhores, dessas invocações, a que me toca mais é a primeira: “Anima Christi santifica me”. O que é isto?

É pedir a Alma Santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo que por toda a Santidade que há n’Ela, hipostaticamente unida à Segunda Pessoa da Santíssima trindade, exerça uma ação sobre a minha alma. Mais do que curar as minhas doenças, mais do que dar-me esta ou aquela coisa, que eu humanamente poderia desejar, mais do que livrar-me dos meus inimigos, mais do que qualquer coisa: “Anima Christi santifica Me”: Alma de Cristo tornai-me santo, de uma santidade que participa da Vossa! Limpai-me dos meus pecados! enchei-me de virtudes! E fazei de mim um espelho de Vós, mais ou menos com uma gota de água pode ser espelho do Sol, mas como eu desejo isto!

Mais do que tudo: desde que a Alma santíssima de Nosso Senhor Jesus Cristo me santifique, o que eu quero mais da vida?!

Essas jaculatórias de Santo Inácio formam um conjunto que se chama o “Anima Christi”.

Estas jaculatórias de Santo Inácio devem ser rezadas por intermédio de Maria, porque por mais santas que sejam essas jaculatórias, por mais santas que elas sejam, elas não atingem a Nosso Senhor se Nossa Senhora não pedir conosco. Portanto, devemos pedir, por assim dizer, com os lábios d’Ela e por meio do Coração Sapiencial e Imaculado de Maria: “Anima Christi santifica nos”, a todos nós da TFP.

Eu insisti especialmente, até mesmo neste Santo do Dia destinado a contemplar a Flagelação, que é um tormento físico, eu insisti especialmente no tormento da Alma: “Alma de Cristo, santificai-me! Santificai a todos nós! Santificai-nos com a Vossa largueza, com a vossa bondade, perdoando-nos e não tomando em consideração, à vista dessa prece, que nós não merecemos o que nós Vos pedimos, mas Vós sois o Bom Jesus, o Bom Jesus paciente, o Bom Jesus sofredor, que não perdeu a paciência. Tende piedade de mim, Senhor e santificai-me inteiramente!”

É a oração que cabe a cada um do nós e com a qual eu concluo esta meditação e o Santo do Dia de hoje.


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