Plinio Corrêa de Oliveira

 

A Catedral de Orvieto:

síntese magnífica entre cor e forma

Como se pode ficar cego para a beleza

e a verdade?

 

 

 

Auditório São Miguel, 23 de janeiro de 1981, sexta-feira

  Bookmark and Share

 

A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.


 

 

(...) fazer uma viagem para o passado e analisarmos um edifício que há muito tempo eu tinha vontade de analisar com os senhores.

Quem admira monumentos góticos, se compraz – é o caso unânime nosso – em ver não só as linhas do monumento, a altaneria etc., etc., mas em ver a pedra com que esses monumentos são feitos. Em geral granito, granito cinzento, granito com uma cor portanto meio indefinida, constituindo massas enormes, fortes, que parecem jorrar da terra, como se um chafariz brutal jorrasse granitos na Pré-História. Assim nós temos as catedrais, os castelos, as torres que emergem do chão, e que impressionam quem olha as coisas da Idade Média.

Algumas vezes eu ouvi conversas entre pessoas de uma meia cultura, e de um gosto que eu qualificaria de mediano, a respeito do seguinte: se as catedrais seriam mais bonitas se fossem pintadas. Porque o granito, de si, é como que incolor. Se há uma cor que pareça com a não cor, é o granito. Há uma beleza própria do granito cinzento. É uma maravilha, não há que discutir. Mas, poder-se-ia perguntar se numa catedral são cabíveis outras formas de beleza. E, admitindo que o fossem, poder-se-ia perguntar qual das formas de beleza é maior. São coisas todas elas cabíveis.

E eu ouvi mais de uma vez pessoas fanáticas do purismo gótico, mas tendo entendido pouco o estilo gótico, afirmarem: "Nunca! Pintar seria uma blasfêmia!  Aquilo deve ser de granito, não pode ser de uma outra coisa, perderia completamente..." etc., etc. Eu concordo em que o granito é muito próprio para isso com sua cor atual. E que é uma forma de beleza que seria uma lástima que desaparecesse; não haveria lágrimas suficientes para chorar o desaparecimento...

Mas, daí a dizer que é a única forma de beleza possível e que constitui uma blasfêmia imaginar que isso seja pintado, contraria - antes de tudo - a realidade histórica.  Porque estudos acurados tem demonstrado, em Notre-Dame, em outros monumentos, que as estátuas de outrora eram pintadas. E que foi com a decadência do gótico, quer dizer, com a decadência do gosto que o povo tinha pelo gótico, com as chuvas, as tempestades, as neves etc., etc., aos poucos as tintas foram caindo e não foram renovadas. Mas para várias dessas figuras foi possível até reconstituir um pouco da pintura como seria.

Ora, os homens que conceberam essas maravilhas, as tendo concebido com cores, é um pouco rápido ir dizendo que é uma blasfêmia, e que esses sonhos, e que esses hinos de entusiasmo foram concebidos na atmosfera de uma blasfêmia. Quer dizer, não se pode admitir.

Recentemente ainda, foi feito o encontro, no subsolo de um Banco de Paris — eu creio que os senhores sabem disso — das cabeças dos reis que ficavam no pórtico de Notre-Dame, formando uma galeria. Reis do Antigo Testamento, todos eles colocados em fila, uma fila ou duas filas, um andar — exprimamo-nos assim — ou dois andares, em tamanho creio eu que natural.

Durante a Revolução Francesa, como eram reis, os bandidos decapitaram, e essas cabeças foram jogadas no chão; ficaram os corpos sem cabeça. E uma alma piedosa arranjou um jeito de, durante a noite, tomar essas cabeças e enterrar fundo na terra. Esse homem morreu. Era daquele tempo, evidentemente morreu. Essa boa ação, o Anjo da guarda dele terá alegado, no momento em que ele foi julgado. E certamente terá tido um peso não pequeno, na avaliação que o Divino Juiz fez da vida dele. Peçamos a Nossa Senhora, formemos nossos desejos que essa avaliação tenha sido favorável e que a alma dele já repouse em paz.

O fato é que ele não falou a ninguém e morreu. Há anos atrás, fazendo escavações no subsolo desse Banco, para novas construções, ou sei lá para o que, de repente, nessa profundidade – olhe que esses subsolos são muito fundos – notaram uma escultura. Mandaram mobilizar um departamento de belas artes ou coisa que o dera, na França, foram imediatamente lá e encontraram esse tesouro inigualável: as cabeças de todos os reis!

Então se deu esse fato maravilhoso: foram tiradas de dentro para a luz do sol e serem recolocadas sobre as estátuas. Onde estariam as almas dos que decapitaram? 

Bem, foi feita a análise dessas cabeças, e verificaram-se partes ainda pintadas nas cabeças. Então, deve-se conceber a possibilidade e a coerência com o estilo gótico, a coerência de edifícios pintados, quer catedrais, quer, portanto, também edifícios públicos, como Paços municipais, castelos, evidentemente, na medida em que esses castelos não eram fortalezas, mas eram residências.  Por exemplo, a casa de residência do senhor feudal no recinto do castelo, a capela no recinto do castelo podem ter sido pintadas.

Em princípio, as almas "éprises", entusiasmadas de síntese, não poderiam deixar de pensar o seguinte: se a forma é tão linda, não haverá um ornato de cor para essa forma? Por que dissociar a forma de tal maneira da cor?

O cinzento é bonito, primeiro pelo rugoso e pelo batalhador da pedra, não tem dúvida. Mas é bonito também porque o cinzento faz pensar em qualquer cor.  E quando a gente vê uma catedral cinzenta, o subconsciente apresenta, sucessiva e vagamente, várias cores para aquilo. É um dos encantos do cinzento. Como, aliás, eram as antigas fotografias em branco e preto; debaixo de certo ponto de vista, mais poéticas do que as atuais coloridas, porque a gente faz o colorido da fotografia; subconscientemente algo assim sai.

E, portanto, não é verdade que na nossa imaginação fique aquela pedra inteiramente incolor. Aqui os senhores têm, aliás: eu estou falando ao pé do granito. Está longe de ser um granito que tenha sido alvejado, contra o qual se tenham batido, derrotadas as armas de adversários da Cristandade ou da Igreja. Um granito tão bem posto que eu me lembro que Dr. Adolpho, quando esteve comigo antes da inauguração do Auditório, olhando para este granito, me disse: “está tão bem encaixado e as pedras estão tão bem dispostas que eu vou mandar distribuir vinho aos operários que trabalharam nisso”. E realmente, está muito bem posto.

Os senhores olhem para cá: a pedra tem a sua grandeza, o rugoso tem seu esplendor bélico, é verdade. Mas, é ou não é verdade que a gente, subconscientemente, imagina sucessivos coloridos nessas pedras?

* Orvieto, o gótico colorido

É bem vago, mas no fundo é qualquer coisa assim. Então, eu sempre pensei: é lindo a gente ver numa muralha cinzenta... de repente acende-se uma luz dentro da igreja e aparece um vitral. É uma beleza, aquelas pedras preciosas dentro do granito, que beleza! Mas o natural da pedra preciosa não é estar encastoada na pedra bruta. O natural dela é estar numa joia, estar num anel, estar num “pendentif”, estar em brincos, em colares, em diademas, em coroas. Isso é o natural.

Não haveria algo assim para os edifícios góticos?

“Ah! o gótico...” lá vem a cantilena.

Eu acho, neste sentido altamente ilustrativa uma das mais belas catedrais góticas existentes na Itália - precisamente na Itália, onde se costuma dizer que não houve estilo gótico... isto é uma dessas outras fantasias que não tem fundamento na realidade -, uma catedral gótica toda ela colorida, e colorida pelos que a fizeram, em mosaico do lado de fora. E que é um dos edifícios góticos mais belos que eu conheço. Equivale a dizer que, segundo o meu modo de entender, é um dos mais belos edifícios do mundo: é a Catedral de Orvieto!

Nesta noite, em que nós não temos a falar sobre o Paraíso, não podemos fazer nada de melhor do que falar de igrejas e de castelos. Então, eu resolvi aproveitar alguns slides da catedral de Orvieto e passar aqui para os senhores. Podemos apagar as luzes e analisar a catedral.

Eu fiquei um pouco quieto, porque eu quis que o impacto da primeira vista fosse bem notado pelos senhores.

Os senhores estão vendo uma feeria de cores sobre uma fachada estritamente gótica. Não há aí o que não seja gótico, e inclusive a rosácea. A única coisa que tem é que a rosácea fica dentro de um quadrado, o qual quadrado não se diria bem exatamente gótico, tem qualquer coisa de clássico, mas que se encaixa tão perfeitamente ali dentro, que a gente não tem o que dizer.

A cor escolhida é a mais esplendorosa das cores: é o ouro. Toda a fachada é sobre fundo dourado. Mas os senhores veem que é um mosaico de tal qualidade, tão rutilante, tão magnifico, que sendo esta igreja, pelo que eu avalio mais ou menos do século XIV, os senhores vejam que ela dá a impressão de terminada ontem. E neste sentido, ela não apresenta a poesia do granito, que fica mais belo à medida que envelhece. O velho granito que desafia a todos os tempos e todas as intempéries, tem sua beleza. Aqui, dir-se-ia que foi feito no ano passado e que só conheceu verões ou primaveras.

A igreja está novinha como se fosse de ontem. E os invernos e as tragédias da História escorregaram sobre ela sem a atingir em nada. Ela está magnífica, esplendorosa, sem alteração.

O granito fala da eternidade na medida em que ele resiste ao tempo e afirma a sua existência contra o tempo. Passa o tempo, o granito fica. O mosaico de Orvieto se reporta à eternidade no sentido de que ignora o tempo. Não resiste a ele porque não tem nada que ver com ele, ele não a atinge.  O mosaico está lá, a Catedral está lá.

Os senhores veem - para que a impressão cromática ainda seja mais viva -, os senhores veem vários grupos nesses mosaicos. A começar em cima, os senhores veem uma cena que me parece ser a da Coroação de Nossa Senhora.

Depois os senhores veem dos dois lados, à direita e à esquerda da rosácea, outro grupo. Nós passamos para o pavimento térreo da catedral, no alto das portas, quer dentro das ogivas, quer fora das ogivas, grupos humanos também. Depois, mais adiante, no tímpano da porta central, mais figuras coloridas também. Os senhores estão vendo que o colorido está por toda parte

(Aparte: é toda a vida de Nossa Senhora)

É toda a vida de Nossa Senhora? Que magnífico! Então se compreende bem que em cima esteja a Coroação.

Os senhores veem que essas cores não são cores de estardalhaço, mas são todas cores muito coloridas. Quem fez isto não tinha o gosto das cores pálidas, discretas – têm sua beleza! - que se perdem umas nas outras, que se confundem ou se fundem umas com as outras, o que tem a sua beleza. Mas não é a beleza do que está aqui. Aqui está a beleza das cores definidas, das cores que têm individualidade própria, que têm vida própria. E os grupos coloridos tais, que cada grupo é uma sinfonia de cor especial. Os senhores vejam a beleza que representa essa distribuição colorida sobre a fachada, com as linhas já tantas vezes elogiadas entre nós, as linhas do gótico.

Aqui os senhores têm bem a ideia do que seria uma síntese entre a forma e a cor. Velha disputa entre os artistas: o que apresenta mais esplendor, a forma ou a cor? Num quadro, o que é mais notável, é o desenho ou é o colorido?

Os senhores conhecem as duas grandes escolas italianas divergentes a esse respeito: a escola florentina, toda feita de desenho, pobre intencionalmente em colorido, para que o desenho ressalte; e a escola veneziana, magnifica em coloridos e tendo apenas o desenho necessário para dar pretexto para as cores se mostrarem.

Antes dessas duas escolas se diferenciarem e polemizarem, os senhores têm uma magnífica síntese das duas na catedral de Orvieto.

Eu não queria deixar de trazer esse comentário geral, comum a todos nós, porque eu estou certo de que todos ou quase todos já viram fotografias da catedral de Orvieto. Não sei se há outras fotografias.

Aqui os senhores têm mais uma vez o portal... acho que no alto do portal está a cena da Anunciação, é bem isso?

Os senhores notam aí a quantidade de trabalho em pedra, trabalho de cantaria nas coluninhas, na rosácea, no quadrângulo, nos florões, nos rebordos de todas as linhas de cima. É gente que trabalhava sem pressa de acabar, é gente que trabalhava sem pressa de ser aplaudida, e que morria em paz diante da igreja inacabada, certa de que as gerações futuras haveriam de completá-la.

A mim me parece que esta é uma igreja — há muitas outras, mas esta o é de um modo protuberante — uma igreja inatacável pela beleza. Quer dizer, eu não vejo que seja possível fazer qualquer ataque a esta igreja, qualquer reserva, ter qualquer desacordo em relação a ela. Pode-se preferir outras — depende do gosto individual — mas impugnar esta igreja em algo, eu não vejo que seja possível.

* Como pode o homem desprezar o gótico e se entusiasmar pelo clássico?

Isto nos leva a uma consideração colateral, mas que também tem sua importância no terreno da Revolução “A” [no campo das tendências e das ideias, n.d.c.], no terreno "psy", no terreno da História, é o seguinte: como se pode explicar que esse estilo, em determinado momento, as almas se tenham tornado de tal maneira incompreensivas para ele, que durante séculos não se construíram mais edifícios desse gênero?

Mais ainda: se construíram incontáveis igrejas, mosteiros, abadias, edifícios públicos, residências particulares em estilo clássico, com o surradíssimo arco em semicírculo ou com a surradíssima linha reta dos pórticos clássicos, mas jamais, jamais, jamais o gótico, que ficou relegado e posto de lado durante séculos.

Outro dia, passaram aqui a fita de Pio XII. E nós vimos o desfile de vários painéis, de várias tapeçarias de Rafael, representando anjos, outras figuras assim. E quando passava aquilo, que revelavam um incontestável talento — seria ridículo não reconhecer esse talento — mas revelavam também uma falta de discernimento, de bom gosto em vários aspectos, de chocar, eu me perguntava a mim mesmo: por que esse homem fez todas essas coisas, que parecem ignorar completamente os Anjos de Fra Angélico? Tudo quanto a Idade Média nos deixou em matéria de anjo estava esquecida, em favor daquelas figuras gorduchonas, gozadoras, nada combativas, nada diretivas, nada sacrais, que se punham ali com alguns ornatos próprios ou característicos dos Anjos.

E daí, quando eu vi aspectos da Basílica de São Pedro - belos aspectos, imponentes aspectos - eu pensei: como tudo isso exprime menos a Igreja do que exprime o gótico. Por que não fizeram o gótico? Os senhores imaginem que os recursos empregados na Basílica de São Pedro tivessem sido empregados neste estilo, para fazer um monumento dessa natureza!...

O que houve para, havendo um caminho tão bem trilhado, homens de inegável gênio como os grandes da Renascença, não tenham pensado em continuar esse caminho? Mas tenham se revolvido no pó e no zero, no “néant” [nada] das ruínas clássicas arrancadas debaixo da terra, ou ficando como esqueletos na superfície da terra e tenham restaurado uma antiguidade que o Cristianismo tinha derrubado?

Que estado de espírito é preciso ter para passar por diante uma coisa dessas, e não prestar atenção ou não se encantar, e se evanescer de entusiasmo e de ternura para com os monumentos da era clássica? Eu não compreendo. Eu não quero negar a beleza dos monumentos da era clássica. Está longe de mim dizer que as coisas da Renascença não têm beleza. Eu acabo de afirmar o contrário a propósito da própria Basílica de São Pedro. Mas, comparem uma beleza com a outra.

Agora aqui entra exatamente algo que alonga um pouco nossa exposição, mas nos dá a oportunidade de conversarmos.

Os senhores sabem que o gótico ficou assim sepultado no esquecimento durante todo o período do Ancien Regime, na França. E paralelamente, no período que correspondia, nos outros países, ao período da arte barroca, da arte rococó etc., etc. Mas ficou completamente esquecido e posto de lado. Entretanto, tendo essas incontestáveis belezas... Porque isto é incontestável.

Agora os senhores imaginem que houvesse alguns entusiastas do gótico em Orvieto. E que esses entusiastas do gótico começassem a fazer, por assim dizer, uma “TFP do gótico”. Quer dizer, propaganda em Orvieto da catedral de Orvieto, para que o povo de Orvieto compreendesse a sua catedral, a amasse e passasse a produzir coisas em continuidade do gótico, e não em continuidade com o estilo renascentista. A batalha que teria sido!

Eu imagino os cooperadores e os sócios desta TFP procurando os “medievalizáveis” em Orvieto. Formando grupinhos, para à noite, no reflexo do luar, quando a praça pública — não é bem uma praça onde está a Igreja — o lugar estivesse com pouco movimento, fazerem comentários da igreja, tanto mais que naquele tempo não se tiravam fotografias.

Os senhores imaginem que eles organizassem todo um apostolado de difusão, de simpatia por esse estilo. E que ao cabo de “n” anos de trabalho, eles tivessem conseguido, numa cidade como Orvieto, cinquenta pessoas entusiasmadas pela catedral; e mais umas quinhentas, umas mil pessoas com simpatia pela catedral. E que olhassem para o gótico com uma saudade sonolenta e risonha: "É mesmo... boniiito, não é?" -"Eééée..." E acabou-se. Dir-se-ia que, na história da admiração humana, estava liquidado o gótico.

Está bem, explode a Revolução Francesa, depois da Revolução Francesa vem o Diretório — o Diretório ainda é Revolução, Napoleão ainda é Revolução — depois voltam os Bourbons e a História continua a desfiar. Mais ou menos no tempo — se quiserem forçar a nota, fim de Napoleão — mais ou menos no tempo dos Bourbons, por uma coincidência ou não coincidência, pela Europa inteira começa a renascer o gosto pelo gótico.

Os senhores sabem que o Conselho de Estado de Luís XVI tinha decretado o arrasamento da Catedral de Notre-Dame, para fazer ali uma igreja em estilo grego, como digna ela de ser a Catedral de Paris, e o gótico indigno de simbolizar a Catedral de Paris...

Passando pelo “écran” [tela] da História as figuras de Robespierre, de Danton, de Marat, ouvindo-se nos gongos da História, nos tímpanos da História o "Ça ira" e o "La carmagnole", a "Marseillase" etc., depois de troarem os canhões de Napoleão e derrubarem coisas pela Europa inteira; depois de tudo isso, eis que, das ruínas de tudo isso, emerge um estado de alma simpático ao gótico!

E nós assistimos a restauração de inúmeros monumentos góticos, os estudos góticos florescem, edifícios em estilo gótico que se constroem. E não só se constroem na Europa, mas constroem-se na América. A Catedral de Saint Patrick em Nova York; aquela catedral ou basílica, não me lembro bem, de Quebec, projetada aqui outro dia; muito menos belamente, a Catedral de São Paulo. Quantas igrejinhas os senhores encontram por aí com reminiscências góticas, em terras onde no tempo da Idade Média só havia tupiniquins.

Os senhores estão vendo que é um estado de espírito que renasce, algo que na clave do espírito humano consegue, num só sopro, o que os “orvietistas” não conseguiriam trabalhando durante décadas na cidade de Orvieto.

Não sei se está claramente apresentado o contraste. Quer dizer, a lógica trabalha, ela luta, ela conquista terreno com argumentos de evidência, porque o belo disso é evidente. Mas há qualquer cegueira no espírito humano, que faz com que isto não se veja, isto não se sinta, isto continue assim.

* O retorno do amor ao gótico no século XIX - uma praça rejeitada

Bem, em certo momento, depois das obras de destruição as mais assombrosas, no espírito humano uma clave se muda, e as pessoas caem entusiasmadas diante disso. A que é que se deve essa mudança de clave, que consegue num sopro aquilo que a luta de beneméritos, durante uma vida inteira conseguiu apenas em ponto - admirável - mas pequeno? A pergunta está bem colocada?

Há no fundo uma pergunta, que é a seguinte:  haverá formas de verdade tão... — eu digo a verdade especulativa, não a verdade da evidência: aqui está uma mesa com uma bandeja, um copo e uma jarra; não é isto, mas verdades pensadas — haverá formas de verdade tão claras que não seja dado ao homem negá-las? Haverá formas de beleza tão admiráveis, que não seja dado ao homem ignorá-las?

Eu li numa ocasião, numa revista francesa que infelizmente não guardei — eu era muito moço e não tinha arquivos organizados — uma revista francesa uma entrevista com um bom número de teólogos de Roma, no pontificado de Leão XIII, pouco antes da Encíclica "Aeterni Patris" [4-8-1879], em que Leão XIII declarou a filosofia de São Tomás de Aquino objeto de estudo necessário em todos os Seminários, e instrumento de expressão do pensamento da doutrina católica em todo o ensinamento católico do mundo.

Foi a glorificação magnífica de São Tomás de Aquino, uma grande obra feita por Leão XIII. Bem, eu li entrevistas de uma revista francesa, com reitores de seminários, professores etc., em Roma, pouco antes da "Aeterni Patris", em que se perguntava que filosofias eles usavam. Usavam quaisquer filosofias. E todos diziam - se não todos quase todos - que em última análise São Tomás era uma panóplia [conjunto das mais diversas armas, n.d.c.] velha que não se utilizava mais. De vez em quando, à mingua de outras armas, pegavam uma espada dessa panóplia. Mas o tempo deles era o tempo — século XIX, 1870 e tantos para 80, não me lembro bem a data da "Aeterni Patris" - era o tempo da arma de fogo, e que as espadas já não valiam mais nada. E assim São Tomás era uma coisa que se conservava nos museus do pensamento.

Quando Leão XIII colocou em evidência, em foco São Tomás, caíram as escamas dos olhos. E todo mundo entendeu a clareza admirável de São Tomás.  Durante séculos, precisamente os séculos em que o gótico esteve enterrado, São Tomás foi sendo soterrado, e acabou que se ignorava São Tomás.

Bem, a beleza... essa não é uma beleza evidente? Não esteve soterrada, enterrada? O que aconteceu? Então é possível a beleza mais rutilante ser ignorada. É possível a verdade mais clara, mais bem alicerçada, formulada com mais cuidado e desenvolvida com mais firmeza de argumentação, é possível ao homem dar as costas para ela?

Se isto não fosse possível, Nosso Senhor Jesus Cristo não poderia ter sido ignorado, e depois crucificado! Porque, o que é a beleza do gótico, o que é a firmeza da verdade que se mostra nos escritos de São Tomás, diante do que é Nosso Senhor Jesus Cristo? Nada é nada. Entretanto, o homem pôde tomar diante dEle a atitude que tomou.

Agora fica o problema: então, não é só a golpe de lógica, não é só a golpe de pulchrum que se consegue mudar o espírito humano.  Há qualquer coisa que muda de clave; o que é?

Costuma-se dizer nesses manuais que o Romantismo foi a escola que colocou em voga o gótico. Há algo de verdadeiro nessa afirmação, mas há sobretudo algo de ambíguo. Foi isto bem exatamente o que se deu? O que é que foi o Romantismo?

Foi uma escola filosófica, foi uma escola de moral, que deu origem a um sistema de sensibilidade, de gosto artístico nas várias artes. Mas foi só isso o Romantismo?

Eu acho que o Romantismo foi a deformação de uma imensa graça que baixou sobre a Europa e sobre o Ocidente depois da Revolução, para reconduzir os homens ao bom caminho. E que essa graça foi meio assumida e meio desviada pelo Romantismo, que ele é a caricatura dessa graça.

Há um santo, cuja vida o Professor [Fernando Furquim de Almeida] esteve estudando e da qual ele tirou argumentos muito interessantes para isso, São Clemente Maria Hofbauer, se não me engano austríaco. Em todo caso, estudou em Viena. E desenvolveu grande parte de seu apostolado em Viena e Alemanha do Sul, no mundo alemão em geral. Os senhores estão vendo que o nome dele é alemão: Hofbauer.

São Clemente foi um propulsionador dos aspectos bons do Romantismo, em luta contra os aspectos maus do Romantismo. Seria preciso estudar a fundo a vida dele e traços da escola romântica alemã, que o professor estudou bem e que tinha muitos desses lados bons, para nós compreendermos a graça enorme que o Romantismo começou a ser. Desviada, como mais tarde a graça da Contra-Revolução, baixou sobre o mundo no tempo do admirável São Pio X, baixou pelas santas mãos dele sobre o mundo mas foi imediatamente transviada e desviada por artifícios que os senhores  conhecem.

Algo assim se deu com o Romantismo. Esse é um comentário à margem da catedral de Orvieto.

Tem mais slides?

Vejam os senhores que coisa admirável: vista de lado, os senhores percebem essa beleza sob um outro ângulo, um pouco menos vistoso. A luz dos mosaicos não incide tão diretamente sobre quem está olhando, mas por causa disso, com a forma de beleza que não é a evidência viçosa do belo, mas é a discrição nobre do belo, que não se proclama, mas se insinua. E que tem o encanto do que é insinuado, enquanto o outro tem o esplendor do que é proclamado.

Nessas fotografias e em outras que eu tenho visto da Catedral de Orvieto — Orvieto que eu quis tanto e tanto visitar na Europa quando eu lá estive, mas não tive tempo, não me foi possível visitar — nessas fotografias, nas que eu tenho visto, não sei se haverá outras diferentes, sempre me chamou a atenção uma coisa: a fotografia ignora o local onde a chapa foi batida, e procura isolar a catedral completamente do contexto. E eu compreendo, porque ela é tal que, em torno dela ou se constrói gótico ou sai vergonha. Ela não permite vizinhança.

Os senhores têm uma pequena ideia disso considerando ali um toco de edifício, que o ângulo em que a fotografia foi batida tornou necessário que aparecesse. Os senhores veem que coisa mesquinha, vil, depreciativa ou depreciada que é aquilo.  Por quê? Perto desta catedral... ela faz em torno de si um prodigioso "N-a-N-e" [indiferença], como quem diz: "Vós me ignorais? Mais ainda eu vos ignoro; se não me quereis olhar e não quereis reconhecer a minha beleza, ela aqui está de pé para vos julgar. Um dia prestareis conta ao Juiz Eterno deste estado de alma que está no fundo de vós. Quanto a mim, minha conversa é com o sol, com a lua e com Deus!"

Assim, está amplamente comentada a catedral de Orvieto e nós podemos então, passar às nossas ocupações quotidianas, ou seja, rezarmos, irmos dormir uns, rezar outros, trabalhar outros.

Salve Regina, Mater misericórdia...

Nota: Para consultar numerosas conferências de Dr. Plinio a respeito da Idade Média, clique aqui e procure, em tal página, pelas palavras "Idade Média".


Bookmark and Share