Plinio Corrêa de Oliveira

 

"Nenhuma heresia foi tão perigosa

para a Igreja

quanto a indiferença"

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Santo do Dia, 16 de fevereiro de 1980, sábado

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A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.



 

   

...O ponto nevrálgico era ainda na minha casa, a monarquia e a república; mas era muito mais uma coisa que eu fui o primeiro a levantar no meu ambiente doméstico, mas que eu já encontrei levantada largamente na cidade de São Paulo mas em estado de derrota, para não dizer de debandada,  e era a questão seguinte: católico ou não católico.

Toda senhora deveria ser católica. E o Cândido Figueiredo, autor de um Dicionário muito conhecido no meu tempo, um grande literato e lexicógrafo português, uma vez perguntaram a ele qual era o feminino da palavra ateu. E ele disse: é “à toa”. Quer dizer, a mulher não é atéia, ela é “à toa”; mulher atéia é igual a “à toa”. Isso ninguém discutia.

Que criança, até fazer 10, 12 anos deve rezar, fazer primeira Comunhão, aprender Catecismo, crer em Deus, também ninguém discutia. Mas começava a grande luta nesse ponto: a partir dos 12 anos, mais ou menos, o homem – era o problema – deve continuar católico? E por detrás desse problema tinha outro: o homem deve continuar puro? E por detrás desse problema tinha outro – e era o problema delicado que estava envolvido nesse: se do homem se exige, quando solteiro que seja tão puro quanto a mulher e quando casado, que ele seja tão fiel quanto a mulher, então a castidade e a pureza são valores e têm razão de ser. Mas se do homem não se exige a pureza e o jovem puro vai levar ao altar, ou vem do altar par ao leito nupcial com uma moça pura e ele é impuro, que união é essa da pureza com a impureza?

Se a mulher é fiel e o marido infiel, que sentido tem a fidelidade conjugal? No fundo, que sentido tem a família? Porque se se exige a pureza do marido e da mulher, a família tem razão de ser –– afirma-se o caráter pecaminoso de toda relação sexual fora do matrimônio; afirma-se então a santidade do vínculo exclusivo entre esposo e esposa; afirma-se então a pureza do lar. E o moço e a moça, no lar paterno, no lar materno, ainda puros até o dia do casamento, estão à altura da pureza do vínculo que une seus pais.

Então, isso se chama família. Família é o conjunto de pessoas não apenas ligadas pelo sangue, porque então bicho também tem família; mas é o conjunto de pessoas ligadas pelo sangue, mas por uma ligação pura, e que estão relacionadas entre si pela virtude da pureza. Quer dizer, exatamente pelo fato de serem todos puros se distinguem do lugar do antro de perdição onde se pratica a impureza.

E quando se estabelece a equiparação entre a pureza e a impureza, e um rapaz tanto pode ser puro quanto impuro; a moça tanto pode ser pura quanto impura, qual é a diferença entre a casa de prostituição e a família? Mas se não há diferença entre a casa de prostituição e a família, não deixa de haver casa de prostituição, então não há é família. E numa casa onde a mãe é impura, o pai é impuro e os filhos vão onde querem, e as filhas também, aquilo já não é mais uma família, é uma coabitação de gente impura em torno da própria impureza. Como se pode dizer que o lar é um santuário, quando o lar se transforma num cocho, para não dizer num chiqueiro? Onde está o Sacramento do Matrimônio ali? Onde está a graça de Deus?

Ora, essa questão traz atrás de si uma outra, e assim as questões são como longos trens com vários vagões, e há uma questão locomotiva que puxa todas as outras –– a questão que vem por detrás de todas é esta: Se o homem não tem o direito de dizer de uma mulher “esta é minha e de ninguém”; e ela não tem o direito de dizer do homem  “este é meu e de ninguém”, e o jovem ou a jovem não têm o direito de dizer “eu não sou de ninguém enquanto eu não me der, e quando eu me der, será para a vida inteira só para aquele, ou só para aquela” ––  a conclusão é que o homem não é capaz de exercer o direito sobre outra pessoa, ele não é capaz de separar a outra pessoa do convívio humano e dizer: “eu pertenço só a ti, e tu pertences só a mim”.

Mas se ele não tem em si, na sua natureza, o fundamento para tomar uma atitude dessas, sabem qual é o resultado? Ele também não é capaz de ser proprietário. Se não há para mim o direito de ser o titular da esposa  - eu não tenho o direito de ser titular nem do gládio, nem da almofada, nem da mesa. A palavra “meu” se pronuncia na sua plenitude quando eu digo “meu pai”,  “minha mãe”, “minha esposa”, “meu esposo”, “meu irmão”. Depois, como corolário vem: minha cadeira, minha mesa, minha água, meu colega, o que quiserem.

O “meu” só tem um sentido mais alto do que este e é quando se diz “meu Deus”. Mas aí não quer dizer o Deus que é meu –– a palavra, de tanto subir, vira, e ela quer dizer o Deus a quem eu pertenço. Ela muda de sentido, e eu, de proprietário, passo à propriedade. Tanto subo, tanto subo, tanto subo, que chego aos pés daquEle que pode olhar para mim e dizer: “Eu sou o teu dono, sou teu senhor” E eu digo: É verdade, e eu Vos adoro.

Eu falava há pouco de questões em locomotivas, em trem. Não sei se percebem que essas são várias questões uma ligada à outra, uma ligada à outra, e que tinha no momento, como ponto de partida, esse ponto único, porque todo o testo não se discutia. Deve ou não deve um rapaz ser casto? Essa era a questão ardente, a questão candente.

Mas percebendo ou não percebendo; querendo ou não querendo ver, todo mundo sentia que toda a série de outras questões vinha atrás. E que essa questão, pela qual todas as outras se introduziam no campo da dúvida e da luta, essa questão era a questão locomotiva, a questão por onde tomava vida uma série de outras questões que eram teóricas, mas que em geral, optando pela impureza as pessoas optavam de um modo coerentemente negativo contra a família, contra a propriedade, contra Deus e portanto.... E essa batalha residual, essa batalha em torno de um ponto de moral, essa batalha arrastava a moral inteira, ela arrastava todo o futuro do mundo. E era essa a batalha em que se encontrava o entrechoque vivo de ideias no momento em que eu entrei para a vida.

Mas que batalha! Que acusação contra aquele que quisesse dizer-se puro, que ódio, que carga de perseguição, que desprezo, que cerco, que esmagamento! Era preciso ter visto isso. Dizia-se que aquele que era puro só podia manter a pureza por uma incapacidade física, porque do contrário a pureza não era praticável, e que portanto o homem puro, ou não era um verdadeiro varão, ou se era um verdadeiro varão era um hipócrita porque escondia determinadas coisas, parecendo que tinha uma virtude que, de fato, ele não praticava. Era a primeira acusação.

Logo depois vinha a acusação de ser um indivíduo meio efeminado.

Logo depois vinha a acusação de ser um homem que dentro em breve morreria, porque se dizia que a pureza produzia a tuberculose. E lá ia daí para frente.

Isso, entretanto, produzia um entrechoque violento. Porque eram discussões aos berros, quando não eram as pancadas, sendo que quando eu entrei na liça, a discussão estava moribunda, na expressão de Corneille, “la bataille cessa manque de combatants”, a batalha cessou por falta de quem combatesse.

Alguns se percebia que eram puros, mas quietos, encovados, enquistados nas paredes, com vontade de desaparecer, com cara de quem pedia perdão por existir, às vezes ostentando atos de impureza que não tinham praticado, para se fazer perdoar a pureza que estava escrita na face dele.

E assim mesmo ainda vinha quem dissesse: “Olha, eu não acredito nada; você não fez nada disso. Se você é o que você diz, apareça hoje à noite em tal casa de prostituição, que eu quero te encontrar lá. Quero ver se você é homem. Vá lá.” O sujeito não ia, no dia seguinte gargalhada: “Você não foi. Teve dor de cabeça, ou então mamãe não deixou. É isto”. Era o choque violento. Acompanhado do contrachoque.

E não só do contrachoque violento, mas do contrachoque preventivo. Quer dizer, de atitudes tais que a outra parte compreendia que era melhor não levantar o assunto. Mas não era indiferença, era medo. É o que se chama hoje armas dissuasórias. Era o modo pelo qual um entendia o outro e o outro entendia um. E certos assuntos não se levantavam, porque sairia uma explosão de uma tal natureza que não era da vantagem do outro lado levantar, o outro lado acabaria com a melhor; mas era vantagem para ele não consentir em que seu domínio pacífico fosse rompido por esse escândalo: um homem que chega e diz “eu sou puro, aguentem como entenderem, façam como quiserem, eu sou puro, tomem esta na cara!” (aplausos)

(...) Era tal a atmosfera de horror à igreja protestante que eu me lembro, em pequeno, ficava no meu caminho uma igrejola protestante que existia lá pela rua Helvécia, eu me lembro de dois episódios do meu tempo de infância diante da igreja protestante: uma delas era eu passando e retendo a respiração, porque eu não queria respirar o vento que tivesse soprado dentro da igreja protestante. 

Mas eu comecei a sentir essas polêmicas diminuírem, e essa atmosfera de indiferença começar a invadir o mundo. Isso marca uma época na história do pensamento contemporâneo no Ocidente com a entrada do cinema norte-americano, que era Hollywood –– que quer dizer ... por irrisão e por escárnio –– o grande centro cinematográfico do mundo era norte-americano. E o filme norte-americano era o filme por excelência. Os filmes europeus só se desenvolveram muito mais tarde, os atores eram norte-americanos, as cenas norte-americanas. Era o período do prestígio máximo da América do Norte no mundo. A guerra européia estava mais ou menos empatada. Franceses, ingleses, italianos de um lado; alemães, austríacos, turcos, e algumas naçõezinhas dos Balcãs de outro lado.

O que de fato decidiu a guerra foi a entrada dos Estados Unidos. Quando contra os impérios centrais estafados, como também a Tríplice Entente (Inglaterra, França e Itália) estafada também, entra de repente de um lado desembarcando em navios modelos tropas bem nutridas, jovens carregando alimentos em quantidade, superarmas, essa entrada deslocou a balança e determinou a vitória do lado dos Estados Unidos.

Mas então, de repente, o mundo teve a noção de que o eixo se deslocara, que o eixo, pelo menos, se bipartira, e que enquanto a Europa fora o centro do mundo, passava o mundo a ser pelo menos bipolar, e a América do Norte era o outro eixo do mundo, o outro centro do mundo. E todo mundo passou a olhar essa América do Norte que entrava. Entrava como grande potência decisiva, mas entrava também como sempre acontece na história dos povos, quando entra um povo como vitorioso, o tipo humano que ele representa, o estilo de vida que ele ostenta, e por detrás as ideias que inspiram esse estilo de vida, passam a soprar sua influência sobre o mundo.

Então os Estados Unidos tinham todo o prestígio dessa vitória. Mas o prestígio dessa vitória soprado pelo cinema norte-americano que propagava o estilo de vida norte-americano, a mentalidade norte-americana, a preocupação norte-americana da existência, a american way of life numa palavra.

E a coisa era apresentada assim: Europa, velho continente, respeitável, com coisas lindas, onde sem dúvida se faz um turismo super agradável; mas a Europa avó veneranda que os fatos estão aposentando. Diante do gigante jovem norte-americano ela faz o papel da sexagenária ou de septuagenária parkinsoniana que anda tremendo, que não é mais capaz de resolver seus problemas a não ser na medida em que o colosso norte-americano opte por um grupo, ou opte por outro grupo. A qual se apresenta como uma septuagenária nimbada pelas glórias do passado, mas incapaz de dominar o presente, e sobretudo incapaz de produzir o futuro.

A Europa da história, a Europa dos museus, a Europa de antes da Revolução Francesa, a Europa do Ancien Regime, a Europa das coisas belas que não existem mais, dos contos de fada que não têm mais lugar de ser. É substituída pelos Estados Unidos, ahhh! a nação da riqueza sem fim, das fábricas quilométricas que produzem em série artigos incontáveis, e esparramam uma prosperidade ainda não imaginada, em que para manter em ritmo essa máquina de economia se constroem arranha-céus – naquele tempo era muito – de 30, 40 andares. O frêmito do mundo, quando o Empire State Building chegou a contar 80 andares! Que colosso! Era como o colosso da ilha de Rodes, uma das sete maravilhas do mundo.

Mas ao mesmo tempo que era assim, era um povo alegre, que não tinha passado por uma tragédia como a Grande Guerra mundial; que tinha diante de si décadas ou séculos de riqueza crescente; um povo com um exército ultra mecanizado, com poucos heróis mas muitas máquinas, e por causa disso capaz de achatar qualquer povo heroico, facilmente e  sem maiores dificuldades. Com o dólar, o onipotente dólar, que compra tudo, que liquida tudo.

Então, por exemplo, a depenagem da Europa: gente que comprava castelos inteiros, mandava numerar as pedras e transportar de navio para a América e remontar o castelo nos Estados Unidos numerado pedra por pedra. De maneira que um castelo, por exemplo, que havia resistido aos árabes em tal ou tal epopeia ia agora espreguiçar-se ao sol manso da foz do Mississipi ou do Missouri. Quer dizer, completamente mudado.

Os Estados Unidos, que não tinham ideologia. Igreja separada do Estado, várias opiniões religiosas, várias opiniões políticas, mas indiferença – e aqui entramos no nosso tema – indiferença diante dessas opiniões. Católicos e protestantes não discutiam entre si; republicanos do sul ou do norte há muito tempo tinham deixado de guerrear a propósito de uma escravidão já abolida; as ideologias pareciam coisas velhas e que não tinham importância nenhuma. Prático era fazer o dinheiro  para gozar a vida. Finalidade: gozar a vida –– meio de gozar a vida: o trabalho. Então, trabalho para prazer; prazer: fim da vida.

E as fitas norte-americanas apresentavam isso assim: a vida do milionário, do nababo que tinha ganho rios de dinheiro porque tinha inventado um novo tipo de abridor de garrafa; tinha tirado uma patente e então se tornava um creso, e comprava na Europa coroas de rei, espadas de heróis, trajes de príncipes para enfeitar as vitrines do palácio que ele montava para si. E assim se fazia o depenador da Europa. Precisava de um médico? Contratava o médico. –– “Quanto o senhor ganha por mês? Tanto? Está bem. Eu sofro do fígado e quero ter o senhor para meu médico exclusivo. Eu lhe dou cinco vezes o que o senhor ganha. Venha trabalhar para mim. De dia e de noite nos laboratórios o senhor vai estudar minha doença, para prolongar minha vida”. O médico dizia sim e ficava uma espécie de attaché dele, era o encarregado dos assuntos hepáticos, como ele tinha um encarregado dos assuntos bancários. E o homem considerava seu próprio corpo como uma empresa. Os especialistas para tocar a empresa-corpo: um cardiologista, um hepatologista etc., etc., como havia um outro que era especialista em câmbio, um outro especialista em reajuste de máquinas, para seu parque industrial, seu conjunto financeiro. Isso pago assim, de achatar, de fazer sumir qualquer grandeza anterior.

Mas se fosse só isso, não era nada. A gente via filmes da burguesia média: que calma, que conforto, que abundância, que tranquilidade de vida! Filmes do povinho; ainda ali, em ponto mais miúdo, que aconchego, que vida alegre, que tempo disponível. Tudo no ritmo das danças novas, das músicas novas, do jazz band do right time etc., que davam a extravagância, o brilho da novidade do dia.

Músicas de sons extravagantes, com palavras extravagantes, anunciando uma alegria nova, uma riqueza extravagante para um mundo que punha de lado ideologia e todo o resto, em que começava a primeira impressão de indiferença. Não há mais filosofias, não há mais pensamentos; isso é para umas faculdades poeirentas, onde têm uns homens que estudam essas coisas. É bom que estudem para a Europa não vir nos dizer que não temos gente capaz disso. Contratamos uns europeus fossilizados em filosofia ou em arte para estudarem essas coisas para alguns norte-americanos meio maníacos e détraqués. Mas a massa do povo? Essa não liga para nada. Ela ri, ela é otimista, ela pratica a indiferença em relação a tudo, a não ser ao grande ídolo: o prazer!

Eu assisti isso penetrar, como uma forma nova de alegria, uma forma nova de riso. O modo, por  exemplo, de tocar os automóveis já era um modo de ebriedade dessa alegria. O “Fordezinho-bigode”, famoso, era desse tempo –– os senhores devem ter visto em revistas, museu. O automóvel tinha o apelido de “peixe frito”, chamava-se Orverland, uma coisa assim, não me lembro bem da marca, era um rival do Ford-bigode, que os rapazes tocavam, aceleravam o motor e davam um arranco pelas ruas vazias e de pouco movimento e sem risco de São Paulo faziam loucuras incruentas, saiam correndo, buzinavam, pintavam o caneco. Mas para extasiar a extravagância dessa alegria de viver trasbordante, dessa alegria de viver maluca. E o silenciamento de todas as questões sérias, o silenciamento das preocupações, o silenciamento de tudo, para dar origem a uma alegria alvar.

Esse foi um turbilhão que eu vi aparecer e que eu vi caminhar contra o meu peito. E vi caminhar porque eu percebia perfeitamente que era o oposto de minha mentalidade, era o oposto do meu dever, era o oposto da fé católica que prescreve exatamente o contrário, mas que de tal maneira criava a incompreensão em torno de mim, que era um verdadeiro problema de coexistência. Porque entre os de minha idade, ou era rir, brincar e não dizer nada que merecesse maior ponderação, ou era ser tido como um extravagante, um esquisitão.

Eu então percebi, analisando, que isso tinha por detrás uma filosofia, e que essa filosofia chamava-se materialismo. Vejam bem o fingimento, de propósito essa onda não afirmava o seguinte: não há alma, há só matéria; ela dizia uma coisa um pouco diferente e que dava no imensamente diferente, ela dizia: “não é o caso de perguntar se há alma;  uma vez que há matéria e meu corpo de matéria encontra toda alegria na posse de coisas materiais, o resto não é problema; eu gozo e me refocilo. E nem é possível saber se há alma ou não há alma, e no fundo se há Deus  ou não há Deus, e nem interessa. Eu tenho diante de mim o prazer imediato, delicioso e sensível. Eu tenho diante de mim o dinheiro e o gozo. Gozo com o dinheiro que tenho e o resto a mim pouco me importa.”

Os senhores estão vendo que é um materialismo hipócrita de quem não ousa dizer que é ateu, mas que toma todas as posições que alguém tomaria se fosse ateu. E é, de fato, um primeiro passo num ateísmo tão profundo, que toma a inexistência de Deus como algo líquido, como algo que nem se discute mais. E um comunista era relativamente simpático se confrontado com um indiferente deste, porque o comunista discutia com a gente se Deus existe.

Um desses, diante dessa pergunta, diria: “Como? Você é jovem, você pertence à classe rica e você pensa numa coisa dessas? Não senhor, vá se divertir, vá dançar, pegue uma “fassura”, nisso é que se pensa na sua idade, não se pensa em outra coisa, deixe de ser cretino”.

Aliás, eu acredito que isso não passou inteiramente e que restos disso, acrescidos e deteriorados de toda forma, devem ainda continuar hoje.

Eu pergunto, os que conheceram restos dessa mentalidade... Ihhhh, vai mar alto...

Mas os senhores estão percebendo que é uma filosofia que criava um primeiro grau de indiferença. Havia, é bem verdade, de mistura com isso, uma ilusão. E a ilusão era a seguinte: todos são bons. A gente não deve desconfiar de ninguém. Há na humanidade duas faixas de pessoas que não prestam, mas essas pessoas praticam ações de tal maneira péssimas e calamitosas que elas por si mesmas são excluídas do corpo social e empurradas para fora. De maneira que no corpo social não existem pessoas ruins.

Quais são essas duas classes de pessoas? São no Ocidente, o mundo do crime. Todo mundo sabia que havia criminosos, mas os criminosos eram como as prostitutas, formavam um mundo à parte. Havia, por exemplo, bairros de prostituição, então todas as mulheres que moravam lá eram prostitutas. Fora daquele bairro não se tolerava a prostituição profissional. Assim também havia bairros de bandidos. E nesses bairros moravam os bandidos que a noite saíam e iam roubar etc., etc., e no outro dia voltavam para o bairro. A polícia de vez em quando dava uma batida, levava alguns presos! Quando ela pegava algum roubando ou matando durante a noite ele prendia também, mas polícia que começava a ficar super técnica, super eficaz e capaz de pegar de todos os lados qualquer ladrão.

De maneira que o número de ladrões ia decaindo e de assassinos também, e formavam uma faixa tão pequena de pessoas que esse fenômeno estranho começou a aparecer nessa época de otimismo: as portas das casas começaram a ser cada vez mais débeis, as grades dos portões das ruas cada vez mais baixos, em muitas casas os portões eram apenas para não deixar entrar cachorro e coisas assim. Em outras casas não havia portão, havia uma faixazinha com diferença de calçamento de jardins e o calçamento da rua: então se via onde terminava a propriedade do dono e onde começava a rua. Mais nada. Com um tranco se derrubava uma porta. Não havia ladrões.

Eu me lembro de minha casa, meu pai enormemente cauto, tinha uma corrente de ferro com um cadeado, e quando eu chegava a noite – em geral eu era o último a chegar – a porta tinha dois trincos, não fechava só a porta à chave: eu tinha obrigação de tirar a chave da fechadura porque o ladrão podia fazer a chave cair e pagar. Depois passar a corrente nos dois trincos e pôr o cadeado; e depois passar a chave no cadeado. E assim a casa podia dormir tranquila. E às vezes meu pai se levantava a noite para ver se de fato eu tinha fechado a porta direito.

Mas isso era uma coisa dos antigos temos, e cheirava um pouco a porta de fortaleza de castelo feudal que se levantava, com duas torres ao lado. Claro que não tinha comparação com isso, mas eu quero dizer que era um estado de espírito que cheirava um pouco a isso, que parecia uma reminiscência feudal. Em todas as outras casas que eu conhecia não tinha mais nada disso, era assim de qualquer jeito, não entra ladrão; e se entrar é uma vez só, rouba alguma coisinha, também coitado, deixa levar, no dia seguinte a gente compra outra etc., etc.

Essa faixa dos maus tinha quase desaparecido. Quando não se transformava em objeto de turismo: em Paris havia uma forma de banditismo, não sei se ouviram falar dos apaches e apachinette. Era uma coisa famosa no meu tempo como é o avião famoso no tempo dos senhores. O que eram os apaches? O apache era o elemento masculino, a apachinete era o elemento feminino. Era uma classe de bandidos que moravam nos bueiros enormes de Paris: não nos bueiros que conduzem o esgoto, mas por causa do Sena, por razões que eu ignoro, há muita água subterrânea em Paris, e para a sanidade da cidade é preciso canalizar. Então, não é uma água nem suja nem limpa, é uma água meio suja e meio limpa que circula em bueiros, em encanamentos colossais, de metros e metros, e com calçadas para os empregados que vão consertar de vez em quando os encanamentos poderem parar para consertar. E até com iluminação, porque naquilo se entrava –– eu não sei se ainda existe hoje, ou se inventaram algumas pedrinhas deste tamanho que chupa toda a umidade da terra e que tornou os bueiros inúteis. Era luz elétrica. Durante o dia, nunca entrava lá luz do sol nenhuma, e de quando em quando  uma luz elétrica. E os bandidos moravam lá.

E bem a la francesa, nos lugares onde havia encruzilhada etc., eles montavam sobre estacas, plataformas de madeira, e serviam bebidas, serviam até comida e comida de luxo. De maneira que os turistas ricos, as pessoas muito ricas, iam aos lugares dos criminosos ver dançar os apaches com as apachinettes. Eles cantavam uns cantos pitorescos e dançavam umas danças imorais. E era a distração dos ricos, que eles não roubavam para poder ter clientela; que eles roubavam mais no preço do que se tirasse dinheiro do próprio bolso. Aliás o rico quando ia levava pouco dinheiro. Sequestro nem passava pela cabeça.

Isso é para dar uma ideia aos senhores de que o mundo dos bandidos estava confinado a uma faixa. E essa faixa era transformada em turismo.

Havia também outro tipo de bandido interessante: era o bandido norte-americano, perito em abrir portas –– era o país da técnica –– em arrombar, saltar janelas, abrir cofres, que entrava e fazia coisas, que saía correndo com um pano aqui, para não poder ser fotografado. Mas que todo mundo entendia que era um entre um milhão de habitantes, uma coisa assim.

Havia, como auge do crime, o Al Capone. Era um gangster famoso, já nos anos 30, quando os Estados Unidos começaram a fermentar. Mas os Estados Unidos tinham um gangster que era único no mundo, e isso era também minoria. Todo mundo levava a vida alegre e distendida, todo mundo era bom... Ou seja, de todo mundo que anda solto na rua e que não esteja na cadeia, ou que não vai parar na cadeia se devia supor que era bom, e todas as ações desse eram tidas como mais ou menos indiferentes. Fizesse a ação que fizesse, havia uma espécie de indiferença moral. Se não foi parar na cadeia e não é um criminoso, é um homem bom. E, portanto, junto com a indiferença ideológica, vinha uma indiferença moral. Qualquer coisa se tolera, qualquer coisa se permite. Por quê? Porque não foram parar na cadeia. Quem vai parar na cadeia é ruim, quem não vai parar na cadeia é bom. E tudo se aprova.

Eu estava contando outro dia um caso, foi numa das primeiras reuniões sociais que eu fui em minha vida. Era uma casa num terreno já naquele tempo valorizado – hoje valeria uma fábula, como eu nem sei bem exatamente como calcular – e essa casa ocupava uma quadra inteira, eram então quadra de tênis, piscina etc., uma quadra enorme, toda plantada com pinheiros eucaliptos, chorões, jardim magnífico, e a casa construída à maneira de castelo inglês. As herdeiras, uma viúva e duas filhas ricas. As duas filhas ricas se casaram com dois irmãos. Os irmãos liquidaram a fortuna da sogra e da respectiva mulher completamente, em folias, ou seja, em orgias. Quando acabaram, divorciaram-se e jogaram as três na sarjeta como pessoas pobres.

Essas três eram tidas com pena, mas com pouco caso porque tinham ficado pobres. Eu tinha visto a casa delas e como elas eram tratadas no tempo em que eram ricas. Mas tinham ficado pobres? Bagaço. Os outros como tinham guardado um certo dinheiro para si, recebidos bem por todo mundo. Por quê? Não é crime. O Código Penal não proíbe. Eles foram uns desalmados, é verdade, mas afinal de contas recebidos por todo mundo. E certamente um rapaz casto como eu era incomparavelmente mais mal visto do que eles.

Quer dizer, os senhores vendo, somar-se a indiferença ideológico à indiferença moral. Esses homens deveriam ser muito mais censurados, muito mais bloqueados pelo convívio social, do que um outro que roubou dez mil reis da carteira de um sujeito que está na rua. “Não, não há artigo de Código Penal que puna isso, não tem importância. Depois, olha como eles são engraçados, olha como eles são de boa companhia, olha como eles contam casos interessantes. Venha na nossa roda, venha beber conosco, jogar conosco, venham as fassuras, tudo o que quiser, tudo está perfeitamente bem, não tem problema”. Quer dizer, a indiferença moral.

Havia outra fixa da humanidade reputada ruim também. Essa faixa da humanidade era a Rússia. Horror ao comunismo. Um horror todo ele como se tem de feras que estão presas na jaula. Nenhum de nós aqui está se preocupando com o Parque dos Leões, sob o pretexto de que, de repente, o Parque dos leões solta os leões e eles vêm para cá. Ora, isso é coisa de gagá. O leão está trancado lá e não sai, se sair pode dar numa má surpresa, de repente pode aparecer aqui no auditório, pode ter circunstâncias desagradáveis, mas, no total... a Rússia funcionava como a jaula do comunismo. Sabia-se que o pessoal que estava lá era muito ruim; tinham morto o Czar, a Czarina, a família imperial, tinham feito muitas chacinas, depois tinha feito um regime de desordem, imaginem, bens em comum. Nunca ouvi falar disso, muito esquisito. É uma gente ruim. Mas isso nunca se espalhará porque é tão extravagante que é impossível que os homens bons aceitem isso. E como os homens bons são a imensa maioria da humanidade, ninguém aceitará. O comunismo não é um perigo. Outro ponto de desacordo comigo, porque eu achava que o comunismo era um perigo.

E havia o criminoso dos criminosos: era o católico puro e ultramontano. Esse era o grande detestado. Esses homens interrogados, diriam com toda a sinceridade: eu, em matéria de religião, sou indiferente;  mas era só praticar a religião diante de um indiferente desse, que ele virava uma fera. Qual era essa indiferença?

Isso tudo, entretanto, não impediu que lá pelos anos 30, a Europa com a capacidade de recomposição prodigiosa que ela tem – eu nunca vi em parte nenhuma do mundo haver tanta capacidade de dar pancada uns nos outros como na Europa; mas também uma tal capacidade de cicatrizar e de enriquecer de novo, eu nunca vi.

Quando a gente tem a impressão de que a Europa está arrasada e não dá mais nada, a gente passa algum tempo sem prestar atenção nela e, de repente, ela está rica, e muito mais rica do que outros países que mandaram para lá viveres no tempo da desgraça, mandaram uma porção de coisas... É uma substância que não se esgota. Lá pelos anos 30 a Europa estava refeita. E um certo vento cultural, um certo vento de inteligência, um certo vento de ideias, um certo vento de polêmica começou a soprar sobre o Brasil de novo. E ficou o Brasil uma mescla singular de uma grande maioria de indiferentes e uma minoria, não pequena, de pessoas que começavam a tomar preocupações pelas coisas ideológicas de novo, pelas coisas culturais, e a polêmica a reascender. E é claro que eu percebi o fenômeno e me alegrei, e na primeira ocasião que eu tive, me joguei dentro da polêmica. Foi em 1928, quando eu tinha vinte anos, houve o Congresso da mocidade católica e eu conheci o movimento mariano. E o movimento mariano em polêmica com os não católicos. Movimento ativo. E eu me meti na ponta da polêmica, porque era ar fresco que entrava e era algo da modorra, da indiferença que não desaparecia, mas que era obrigada a dar um lugar ao sol aos que discutiam.

Como sempre acontece –– em certos países –– essas correntes diversas, a dos indiferentes e a dos intelectualizados, dos que detestavam discussão e dos que gostavam de discutir – essas duas correntes eram, no fundo, vasos comunicantes. E algo de ideológico passou para os indiferentes. Eles não falavam muito dessas questões, mas ouviam o barulho e tomavam uma certa atitude, pelo menos interna. Um tinha simpatia por um lado, outro simpatizava com o outro lado. Não se dividiam com isso, continuavam indiferentes, mas tinham lá suas simpatias.

Mas também algo da indiferença passava para os intelectuais, e a discussão deles já não era tão viva quanto fora no passado. Quer dizer, cada corrente influenciava um tanto a outra. E formavam um ambiente heterogêneo, mas de heterogeneidades matizadas.

Estávamos nesse ponto quando aparece o golpe de 1935(?), quer dizer, os surtos comunistas, e então a indignação de muita gente, aparece o Integralismo contra o comunismo e aparecem as Congregações Marianas lutando contra o Integralismo e o comunismo. E o clima de indiferença no Brasil passageiramente cessou. E o Brasil todo se acendeu em polêmicas. Muitos dos senhores são brasileiros e sabem que brasileiro quando começa a discutir não gosta de acabar, porque tem mais um argumento, tem mais essa coisa para dizer –– “olha, vou dizer mais tal coisa ... “ –– “não senhor, não dou razão...” e aí a coisa pode pegar bastante e não se sabe onde ela pode ir.

Quando entra um arqui indiferenciador dentro do panorama: Getúlio Dornelles Vargas. Ele era presidente do Brasil desde 30, e toda a ação dele foi de favorecer o partido da indiferença e de combater os que tomavam posição. Então, diante de tudo, atitude displicente, atitude de indiferença, deixa estar para ver como é que fica... Tudo se resolve... Ora, a lei... que lei, nada. Um homem pequenino fumando um charuto enorme, batia aqui [no abdômen?]. Não, isso não tem importância, tudo se resolve numa gargalhada cínica, numa brincadeira etc., etc., ele esmaga o comunismo, esmaga o Integralismo e produz o triunfo da indiferença.

Os senhores estão vendo que a indiferença teve uma vida dura no Brasil, mas uma vida dura em que os não indiferentes não percebiam isso claramente. Os indiferentes percebiam. Os não indiferentes faziam o papel do cego, e os indiferentes eram velhacos e criavam um ambiente e tomavam conta da situação. E aparece então a longa era getuliana –– ele governou o Brasil durante 15 anos –– a longa era getuliana que foi uma longa era de indiferença.

Terminada a guerra vem, entretanto, o grande sopro da indiferença ecumênica contemporânea. E essa não é mais brasileira, é internacional. Tem mais uma vez origem norte-americana, mas desta vez domina a Europa, domina o Brasil e está dominando o mundo. O que é essa indiferença? É a indiferença diante da qual nós nos encontramos.

Os norte-americanos foram, mais uma vez eles, os grandes ganhadores da Segunda Guerra mundial. Os europeus se esbaldaram, se espancaram de lado a lado, os norte-americanos entraram para decidir, certos de que do lado onde entrassem eles decidiriam. E pela segunda vez, a guerra foi para o lado para onde eles entraram. Venceu Franklin Delano Roosevelt, o Presidente dos Estados Unidos, um homem com a cara alegre, bonachona, de quem não tinha tomado a sério a guerra na qual tinha entrado. Os senhores comparem aquilo com o perfil narigudo e heróico de De Gaulle, ou com a cara inteligente, de bulldog cintilante de inteligência que tinha o Churchill, comparem isso com o carão do Roosevelt, o Roosevelt não é nada; comparem com a cara de facínora do anãozinho de um metro e meio de altura que era o Stalin, também não era nada. Quer dizer, o jeitão dele era de um homem que olhava para a vida como quem diz: “Tudo se arranja bem. E tudo se arranja bem na seguinte base: se eu confiar no meu adversário lealmente, e meu adversário perceber que eu não quero tratá-lo como vencido, mas como sócio, que eu, norte-americano sou tão rico que posso dar ao meu adversário uma quota de lucro, eu compro o adversário transformando-o em meu amigo. Portanto, a chave da política internacional consiste em comprar. Os homens são bons, ou seja, eles são veniais, com o dólar se compra tudo, com a confiança se arranja tudo. Há um modo de fazer a paz no mundo, este modo se chama cumplicidade. Sejamos grandes cúmplices e acabou-se”.

A cara dele, otimista, como quem diz: “Desgraça não existe”. Os senhores só veem o Roosevelt sentado no meio dos outros, com uma cara de quem tirou o primeiro prêmio na lotaria. Era o símbolo da felicidade ovante e triunfante do indiferente, para o qual não há ideologia e que não acredita na ideologia do outro. O outro também não tem ideologia. “Façamos negócio e tudo se resolve”.

Não sei se este estado de espírito está bem claro para todos.

Então, vem o tratado de paz de Roosevelt com os russos: é o tratado de Yalta, assinado numa praia balneária famosa do tempo dos czares; pega-se um hotel luxuoso que o comunismo tinha reduzido a uma sede de sindicato ou qualquer coisa assim, mandam pôr em ordem, pôr luxo de novo, reúnem os representantes das nações vencedoras e assinam um tratado de paz. Esse tratado de paz é feito assim: há cláusulas expressas e cláusulas não expressas. Nas cláusulas expressas, Alemanha, Áustria, Polônia, Hungria, Iugoslávia, Checoslováquia são entregues aos russos, são domínio comunista. Nós não nos metemos”. De um modo ou de outro é o que está escrito em Yalta. Não está escrito assim mas é isso. Metade da Alemanha, e o resto, está nas mãos do comunismo.

“Nós vamos fazer com os comunistas negócios em que eles lucrem muito, de maneira que possam enriquecer-se, e compreender pela experiência própria as vantagens do capitalismo. E com isso haverá uma distensão entre um lado e outro, e os russos sentirão o pulsar amigo do coração norte-americano. E eles cantarão como canários, em vez de rugir como feras. E o Stalinzinho se abraçará a mim, Roosevelt, como uma criança se abraça à ama de leite. Eu vou nutrir essa gente, vou lhes dar a prova de minha confiança dando-lhes posições fortes de onde possam me atacar. E direi: Meu caro, eu confio em você. Aperte (a mão) o “shake hand” e olhe para os olhos dele, sorrindo. Ele então, conquistado, segura também a minha mão e sorri para mim. Eu o conquistei, ó! que alto negócio eu fiz, que diplomata genial eu sou!”

É a indiferença moral e a indiferença ideológica tratando o comunismo, que é o erro e o crime, como se fosse uma massa de gente amiga, redutível a simpatia pela confiança e pelo dólar; a decretação do fim dos exércitos e das armas, e do império do suborno e da igualdade de todos os homens na mesma sem-vergonhice. Isso foi a coisa.

O mundo colonial acabou e esses povos novos viverão sob a égide norte-americana que fará negócios com eles, que importará deles, que venderá para eles, que lhes ensinará a confiança norte-americana. E que por isso não tem perigo de serem dominados pelo comunismo. Por quê? Porque o comunismo é exatamente a massa que foi ganha pelos sorrisos de Yalta. E então aparece no Ocidente um tipo novo de gente – uma nova moda, que é moda da arqui-indiferença: doutrina, nada; boa vida, nhonhozeira, “bagarre azul” (neologismo utilizado para significar a idolatria do gozo dos prazeres, n.d.c.).

E essa “bagarre azul” foi o que os senhores ainda conheceram, e foi o que empestou a alma dos senhores, que tentou por vagalhões sucessivos conquistar o mundo, na negação implícita de Deus, negação disfarçada de Deus; na negação portanto implícita mas disfarçada de todas as religiões, na negação implícita mas disfarçada de todas as doutrinas, e na afirmação de que só uma coisa tem valor: é o prazer, mais um ídolo novo, que a “bagarre azul” acrescentou ao prazer, o trabalho.

Trabalhar não só por prazer, não, é por trabalhar. Não sabia não? É muito bom trabalhar. Então, o trabalho sem razão, de gente que já trabalhava para acumular dinheiro, para fazer uma fortuna que não adiantava nada porque não aumentava o luxo.

Eu assisti um creso de São Paulo – Creso era um rei da Lídia, riquíssimo, o homem mais rico de seu tempo, na Antiguidade – um creso de São Paulo, bem entendido um rei industrial, discutir com a esposa. Eles eram riquíssimos e levavam grande nível de vida. Mas a esposa queria quintuplicar o nível de vida. E ele não queria. Então, ela dizia para ele: Você vive como se você tivesse uma quinta parte do dinheiro que você tem, você joga o resto fora porque só te dá trabalho. E não trabalhe.

A meu ver, essa senhora dizia uma coisa muito razoável. Ele dizia: “Não, o trabalho é um valor em si. E ainda que eu não pudesse gozar a vida como eu gozo, eu continuaria a trabalhar do mesmo modo, porque o homem vive para trabalhar, trabalhar, trabalhar”.

É um certo modo de ser, um certo modo execrável de ver as coisas, mas que é assim. E que caracterizou aquela “bagarre azul” que os senhores veem.

Qual foi a lição que isso deu? A lição final foi a ocupação do Afeganistão. Quer dizer, baseado nisso, na indiferença doutrinária, tinha a indiferença quem representava o lado menos ruim, quem representava o lado pior não era indiferente. Era doidamente doutrinário. Ainda outro dia vi um livro comunista, que dizia o seguinte: enganam-se os que pensam que a Rússia faz política para ser uma grande nação. A Rússia não é uma nação, a Rússia é uma igreja, a igreja do ateísmo, e manda na Rússia quem for ateu, e é o partido ateu que leva os interesses da Rússia a serviço da causa do ateísmo no mundo inteiro. Para dizer numa palavra só: a Rússia é uma ideocracia, quer dizer, um lugar onde as ideias mandam.

Comparem isso com o Ocidente, que é exatamente o contrário, é uma plutocracia, onde manda o dinheiro, e os senhores compreendem a debilidade nata do Ocidente. Porque se eu sou a favor desse regime porque eu sou rico, eu não vou dar a minha vida por esse regime, porque eu perco minha fortuna, eu viro cadáver... Se há uma coisa que eu não vou fazer pela plutocracia, ainda que eu fosse rico, é dar minha vida por ela. Por uma ideia a gente dá a vida, mas por uma fortuna dar uma vida? Onde se viu uma coisa dessas? Jamais, “au grand jamais”, absolutamente não. Batalha? Fugir! Bomba de hidrogênio? Jamais! Os russos, são o contrário, enfrentam, tem bomba de hidrogênio etc., etc., uns têm medo e outros não têm medo. Eu já tratei disto aqui. De que lado só pode ser a vitória? Só pode ser do lado dos que não têm medo.

Quer dizer, fazendo o mundo crer na indiferença doutrinária, transformou-se o Ocidente em indiferente, e fez-se do Ocidente o escravo do Oriente. E já está feito. A indiferença entrou, ela se transformou num vício, ela tomou conta de tudo.

Ao mesmo tempo, a indiferença cria confiança. Quem é indiferente –– creio que ontem falei disso –– não liga para as coisas e portanto não é desconfiado. É claro. Pelo contrário, quem ama é desconfiado; quem não ama não é desconfiado. O indiferente não ama, ele não é desconfiado. O resultado: o indiferentismo levou o Ocidente a permitir que os russos constituíssem a serviço do comunismo, o maior império colonial da história. E partidos comunistas, e espiões e tudo o mais, mais ou menos espalhados por toda parte, “psy-war” (guerra psicológica) espalhada de todo lado, tudo isso feito, enquanto o Ocidente indiferente, e crendo na indiferença dos outros, sorria...

Quer dizer, essa indiferença que levou à confiança suicida é a grande causa da situação em que estamos. E a nossa grande cruzada não é contra o comunismo, mas essencialmente contra o comunismo que tem como arma a indiferença. Porque se não fosse a indiferença, o comunismo não era nada. Foi por essa forma de espalhar a indiferença que ele puniu o mundo, tomando conta do mundo, e levou o mundo a posição em que está.

Agora, a invasão do Afeganistão. Primeiro o caso da Pérsia. Não adianta discutir o caso da Pérsia, uma coisa é certa, se não houvesse russos, os norte-americanos tinham escangalhado com a Pérsia. Esse fato é positivo. Por que não escangalharam? Porque os russos estão lá. Portanto, no fundo, o caso persa é ligado ao caso americano.

Agora vem o caso do Afeganistão. A qualquer hora vem qualquer outro caso. Como um câncer eles vão avançando, ao cabo de algum tempo vai embora o braço, e o câncer toma conta do tronco, não tem mais onde cortar, está acabado, o assunto está liquidado.

É o que? É o que o câncer da indiferença está fazendo no Ocidente. É ou não é verdade que se em épocas anteriores da história as ideias representaram um grande papel – então, por exemplo, a heresia ariana, a heresia nestoriana, a  invasão muçulmana, a Reconquista católica, e depois as guerras de religião, enfim, a religião, as ideias políticas, as ideias culturais moveram a história –– há uma nova escola de pensamento que consiste em não pensar, há uma nova filosofia que consiste em não ter filosofia, e há uma nova forma de ateísmo que consiste em não tratar do problema do ateísmo –– e que tem contra a Igreja o maior papel doutrinário da história. A Igreja que teve tantos inimigos declarados, encontra na indiferença a sua maior inimiga em nossos dias. Eu até afirmo: nenhuma heresia foi tão perigosa para a Igreja quanto a indiferença. É claro que a nenhuma devemos execrar mais do que a indiferença.

O perigo não foi só o perigo proveniente do ataque de fora da Igreja, mas foi da infiltração. Porque, de fato, o progressismo é uma posição teológica que afirma que a Igreja deve acertar passo com o mundo de hoje; e que como o mundo de hoje caminha para a indiferença, a Igreja deve ser indiferentista. E o progressismo, no fundo, os senhores definem como a Igreja indiferentista por oposição à Igreja diferentista como somos nós. Porque nós somos os diferentes, que diferenciamos; nós somos a diferença em marcha, a diferenciação em marcha, em vitória, em escalada. Eles são, exatamente, a indiferença.

Os senhores dirão: Mas não vejo como, Dr. Plínio. Eu digo que é fácil ver. A gente vai ver, em tudo aquilo que o progressismo quer mudar a Igreja é para fazer cessar a polêmica entre a Igreja e o mundo moderno. Não há uma mudança que o progressismo queira fazer na Igreja que não represente uma aproximação com o mundo moderno, para fazer cessar a discussão, e para estabelecer um regime como se a Igreja fosse indiferente à sua própria doutrina e aceitasse qualquer coisa para viver na paz. No fundo é isso.

Por exemplo, a Igreja e modas. Eu fazia notar isso na reunião da tarde em Jasna Gora: Anuncia-se essa moda topless. Ela parece estar começando a entrar. Há algumas reações na praia. Não vamos analisar essas reações a fundo, digamos que seja de alguns valentões que querem lutar contra isso. Qual é uma autoridade eclesiástica que fale contra o topless? O contrário os senhores ouviram. “Depende do ponto de vista” etc., etc. É a situação...

Quer dizer, entra uma moda imoralíssima, não encontra oposição. Por quê? Porque é preciso viver na boa paz, na pachorra, na “harmonia”, na indiferença.

Antigamente a Igreja exigia Ela só ser reconhecida como oficial pelo Estado e as outras igrejas, não. Hoje, no Concílio Vaticano II, a Igreja declara que ela pede para si o estatuto jurídico de qualquer associação particular. Ela mesma não quer mais ser reconhecida como oficial. É a indiferença...

 

Homogeneizar tudo, indiferentizar tudo ––  homogeneidade e indiferença são expressões sinônimas –– é para lá que ele caminha.

Os senhores estão vendo o que aconteceu? Esse estado de espírito do indiferentismo penetrou na Igreja e está transformando a Igreja. Transformando grandíssima parte da Santa Igreja verdadeira numa Igreja caricata, ou já numa Igreja falsa.

Os senhores compreendem, portanto, como o vagalhão da indiferença foi nocivo à Igreja de um modo inimaginável, e como a grande heresia que está prostrando nosso mundo de hoje não é o comunismo: é a indiferença enquanto abrindo caminho para o comunismo. Não fôssemos nós indiferentes, que o comunismo estava arrasado. Uma vez que nós somos indiferentes, o comunismo pode tudo. O verdadeiro poder é da indiferença. Os senhores compreendem como essa indiferença não pode deixar de ser odiada.

Por quê? Pelo mal que ela é, pelo mal que ela faz. Pelo que ela tem de imponderável, de vaporoso, por onde o que eu estou dizendo aos senhores, os senhores não encontrarão em nenhum lugar. Entretanto, é a coisa mais evidente do mundo.

Alguém me dirá –– e com isto eu termino a reunião, à qual eu dei um caráter intencionalmente peculiar –– “mas Dr. Plínio, o senhor está apresentando a indiferença como, portanto, realmente existente. E o senhor em conferência anterior disse que ela não existia, que não há indiferentes. E agora o senhor apresenta a indiferença como existente. O senhor apresenta como um grande inimigo, para ser grande inimigo precisa existir. Com é então: ou nosso grande inimigo não existe, ou então a indiferença não é nosso grande inimigo. O senhor se saia dessa trapalhada”.

É evidente que esses indiferentes são tanto mais nossos inimigos quanto mais eles são indiferentes. Quer dizer, quanto mais eles são indiferentes para o lado da esquerda, tanto mais eles são batalhadores para o lado da direita. E a indiferença deles é em relação a tudo, exceto em relação ao bem como já era no meu tempo de pequeno, em que todo mundo era indiferente exceto a um rapaz católico e puro. Quer dizer, a mesma coisa que veio trazendo consequências ao longo das décadas, e que veio se marcando assim: para o bem, toda hostilidade possível, nenhuma transigência possível –– uma moça poderá andar de topless, por enquanto, se não for mais, mas que uma moça use uma roupa tradicional daqui a pouco estará chamando tanto a atenção na rua, que ela terá dificuldade em sair à rua.

Existe indiferença? Essa indiferença é uma mentira. Ela é amor para o lado do erro, amor para o lado do mal e mentira para os bobalhões do lado do bem.

Nosso Senhor disse que os filhos das trevas são mais espertos no seu gênero do que os filhos da luz. Ou a gente ama a luz muitíssimo ardentemente, e nesse caso a gente é mais esperto do que qualquer filho das trevas e mais forte do que qualquer filho das trevas, ou a gente ama a luz mais ou menos. Quando a gente ama a luz mais ou menos, fica bobo. E os antigos tinham um provérbio muito interessante: bobo é cavalo do demônio.

E se há tanta gente por aí que acredita nessa indiferença e não se cristaliza com a indiferença, são filhos da luz que não amam a Nossa Senhora, a Igreja e a Deus como deveriam amar. Se eles amassem de fato com toda a alma, como o primeiro Mandamento manda, eles seriam espertíssimos, perceberiam tudo e sairiam para a luta. Mas como isso é um punhadinho, então, os filhos das trevas progridem mentindo para os filhos da luz tíbios, dizendo: Está vendo a mim? Eu sou a indiferença, sorria para mim, hostil eu não sou. Quem sabe se você me conquista sorrindo para mim. Sorria...

O bobo, que ama pouco a Deus e que não quer levar senão uma boa vida, sorri. Sorri e se entrega. E lá vão indo as colônias (ultramarinas)... o comunismo vai tomando conta de tudo, em todos os setores, de todos os lados. Porque o dispositivo que estrangula os bons, o dispositivo da perseguição é assim: o rez do chão é o bom que ama pouco a Deus e por isso é bobo; montado nele tem o indiferente que o odeia mas que finge de indiferente; e montado no indiferente, que se finge de indiferente, tem aquele que odeia de fato e mostra quem é.

E essa espécie de monstro de três andares, ou se quiserem, de tanque de três andares, está derrubando todas as paredes, está liquidando todos os obstáculos, e liquidando o mundo.

Onde atirar com certeza? No comunismo? No bobo? Não, naquilo que é o traço de união entre o comunismo e o bobo e que faz o bobo ser cavalo do comunismo. Vamos dizer que o bobo é o cavalo, a sela é o indiferente e o cavaleiro é o comunismo. Se eu arranjar um jeito de deteriorar a sela, eu ponho o comunismo no chão. O que adianta matar o cavalo?

Eu quero transformar esses filhos tíbios da luz em verdadeiros filhos da luz. Por que acabar com eles? Quero fazê-los amar a Deus, porque amam pouco. Por que acabar com eles? Acabar com o comunista? Se não for o indiferente, ele não pode nada. O poder dele é do indiferente que tapeia os bobos.

Então, qual é a grande missão? É dizer ao bobo: abra os olhos para o indiferente, porque ele não é indiferente...


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