Plinio Corrêa de Oliveira

 

Entusiasmo: o que é? Como obtê-lo?

 

 

 

 

 

 

 

 

Santo do Dia, 29 de setembro de 1979, sábado

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A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.


 

Eu não posso deixar – depois de ter passado um Sábado sem fazer reunião para os senhores – de dizer quanta saudade me fizeram os senhores no Sábado passado. Quanto eu me lembrei, não só da “Reunião de Recortes” à tarde, mas também da reunião no Auditório São Miguel com toda a movimentação, com toda a vida, para dizer numa palavra com todo o entusiasmo que de vez em quando - mas com frequência – por aqui perpassa. E eu me encontro, portanto, perto de um braseiro de entusiasmo no momento em que este convívio retoma e que, sobre o entusiasmo, eu devo dizer aos senhores uma palavra.

Enquanto (se) marca o trecho da Suma Teológica que estava combinado para nós tratarmos nesta noite, eu dou uma introdução que - sem ter diretamente a elevação dos textos de São Tomás de Aquino - tem, entretanto, uma certa utilidade. E é a diferenciação entre o sentido verdadeiro da palavra entusiasmo e o sentido corrente da palavra entusiasmo.

Todos os senhores ouviram falar de entusiasmo. Mas se antes de começarem estes comentários sobre a caridade, nós tivéssemos posto os senhores numa sala com – vamos dizer que haja aqui umas 250 pessoas presentes, talvez um pouco mais – 250 pessoas, cada uma com uma mesinha, uma folha em branco, ou cinco folhas em branco, lápis e dito: “escrevam aqui o que é que lhes parece que é o entusiasmo”, e depois a gente tivesse examinado. Eu tenho impressão que sairiam as definições as mais vagas, as mais contraditórias umas com as outras, e que indicavam que a palavra entusiasmo conhecida tinha um certo núcleo de realidade mas em torno desse núcleo toda forma de exageros, de omissões, de diversificações impostas pelos sentidos da palavra entusiasmo que os senhores ouviram na linguagem corrente. Esse núcleo teria apenas uma vaga relação com o verdadeiro sentido da palavra entusiasmo.

Assim como o nome verdadeiro do entusiasmo é a perfeição da caridade, então, assim como sobre a caridade nós ouvimos toda a espécie de noções erradas – como foi aqui há pouco lembrado – também sobre a palavra entusiasmo ouvimos noções erradas.

E este erro de um lado e de outro cria — num ponto que é nevrálgico para a nossa formação espiritual e, portanto, intelectual e cultural também — cria uma confusão como quem tirasse literalmente, mas ao pé da letra tomasse um globo e borrasse o lugar onde passa a linha equatorial. Então, todas as localizações do globo ficavam incertas e todas as partes do globo começam a dançar. Ou se por exemplo, apagasse os polos. Bem, se não sabe onde está o polo norte, onde está o polo sul, a gente poderia pôr o globo, por exemplo, com os polos de lado e a América girando assim na mesma. Quer dizer, dava em qualquer coisa.

Ora, nós, ao pé da letra, somos então assim mentalidades muitas vezes extrapoladas, quer dizer, ficam fora da respectiva polarização. E me parece que traçar a diferença entre o sentido comum da palavra entusiasmo e os outros sentidos vale a pena.

Mas parece que este meu propósito está em contradição consigo mesmo. Porque, se eu estou dizendo que os senhores traçariam as mais variadas linhas para definir o que é entusiasmo, como é que eu posso — se os senhores ao mesmo tempo - eu estou dizendo que empregam a palavra entusiasmo no sentido corrente no seu sentido corrente – como é eu posso imaginar que se encontra um sentido corrente quando eu acabo de afirmar que os senhores, ao dar o sentido corrente, dariam os mais diversos sentidos? Então não há um sentido corrente único para encontrar, e eu estou me pondo diante de uma tarefa impraticável. Não sei se eu acabo de pôr bem a dificuldade da qual eu estou.

Bem, eu digo isso porque me parece que o jogo do raciocínio é agradável. Ele é alegre e ele é elegante. Quando a gente segue os problemas na vertigem das questões que põe e depois traça a reta que resolve, há aqui um jogo que é belo como um desfile, ou solene como uma cerimônia religiosa. E a conclusão é estática e firme como uma figura de heráldica. De maneira que vale realmente a pena a gente seguir o fio do raciocínio até o fim.

Então, vamos aqui ao caso.

Nós descobriremos um fato curioso: que, por mais diversos que fossem os sentidos que os senhores pusessem no papel, nós descobriríamos neles um resíduo comum e que desse resíduo, do qual eu falei há pouco, cada aplicação que os senhores veriam, seria apenas um aspecto desse resíduo. Não era apenas um resíduo, mas era um núcleo que se exterioriza sob uma certa forma na imaginação de um, sob outra na imaginação de outro; sob outra forma ainda na imaginação de um terceiro, mas que tem um mesmo sentido. Mas que nós descobriríamos essa coisa muito curiosa: que o mundo, ao qual nós iríamos pedir esta palavra do vocabulário corrente, não gosta de definir os seus conceitos, ele vive dentro da ambiguidade, lhe agradam as palavras ocas, fofas, sem conteúdo definido, para que eles – sem dizerem expressamente – digam aquilo que expressamente eles não ousariam dizer. E aí nós veremos os mil esconderijos do espírito do mundo dentro da indefinição. E a gente agarraria, de dentro dos seus antros, como a gente faz com a água que pode estar nos mil meandros de uma esponja: a gente aperta e a água sai. A gente toma no sentido esponjoso comum e aperta e a gente vai ver o que sai: se é água, não é água limpa. Vamos examinar um pouquinho o que é o entusiasmo.

Aplicações correntes da palavra entusiasmo:

“Fulano tem entusiasmo pelo emprego”. Os senhores terão ouvido falar. Por exemplo, fulano vai se formar em medicina, o pai alegre com a carreira que o filho vai fazer pode dizer “ele vai se formar em medicina”, e em vez de dizer “ele tem muito interesse pela matéria e pode dar um grande médico” — ele não quer usar uma fórmula “mega” [orgulhosa] mas ele quer “megalar” [se gabar], então ele diz “meu filho tem um entusiasmo pela carreira como não se imagina” quer dizer, ele vai ser um leão: vai estudar, vai praticar, vai ganhar dinheiro, vai se tornar célebre. Entusiasmo, por aquilo ele tem entusiasmo.

Um outro pode dizer: “meu filho está noivo. Ele tem um entusiasmo pela noiva uma coisa extraordinária”. Pode-se dizer.

Um outro pode dizer: “Meu filho voltou dos Estados Unidos com um entusiasmo...” o que quer dizer: “ele viu a civilização norte-americana e ficou entusiasmado com ela, ofereceu-lhe um tipo humano, um estilo de vida e uma localização para a vida, um cenário de vida que encheu a ele de alegria e de bem estar. E então, entusiasmo. Meu filho tem entusiasmo, voltou dos Estados Unidos com um entusiasmo!” Pode-se dizer isso perfeitamente.

Mas pode-se dizer também uma outra coisa, uma senhora pode dizer: “Eu faço para o meu filho, meu irmão, meu marido, qualquer coisa, todos os sábados, tal prato, porque ele é um entusiasta desse prato. E quando eu esqueço de fazer, ele reclama, ele fica triste. Pelo entusiasmo, eu faço esse prato para ele.”

Bem e pode-se também dizer outra coisa, dizer: “Arrebentou uma guerra e meu ancestral foi entusiasmado para essa guerra!”

Eu tive um parente, era parente, não era meu antepassado, ele era primo-irmão de meus avós, era um hominho assim, dessa altura, eu ainda me lembro dele, eu o conheci bem velho, pequenino e com uma barbinha assim em ponta, em forma de cavanhaque, muito risonho, mas com uns olhinhos pretos que entravam, que examinavam, o catatau era perspicaz... isso ele era. Mas ao mesmo tempo muito amável, quando ele sorria, o sorriso parecia escorrer pela barba e gotejar açúcar, bem, era uma pessoa digna de atenção.

Ele já tinha dado uma prova da entusiasmabilidade dele da seguinte maneira: em mil novecentos e oitenta e tanto, eu não me lembro em que data – algum tempo depois da guerra do Paraguai, D. Pedro II foi à Europa para descansar das fadigas da guerra do Paraguai. Ele obteve uma licença do Parlamento, porque o Imperador não podia viajar sem licença do Parlamento, ele obteve licença do Parlamento do Império e foi deixando como regente, na ausência dele, a Princesa Isabel. Foi a segunda regência da princesa Isabel. Depois, ele esteve mal à morte em Milão e depois quando voltou, os estudantes do Rio de Janeiro resolveram fazer uma manifestação para ele.

E quando o navio entrasse pela Barra do Rio – espetáculo que todo o mundo assiste acordado, por mais cedo que seja, porque ver a aurora fazer-se no Rio, ainda mais no Rio pequeno daquele tempo, sem o ingurgitamento de arranha-céus do Rio de hoje, é uma verdadeira maravilha pelo que dizem – então, o navio do imperador entraria bem cedo e o povo já estava enchendo as ruas para vivar o Imperador. Mas um grupo de estudantes resolveu fazer uma coisa que era especialmente própria a homenagear o Imperador.

Não havia naquele tempo esse carro elétrico no Pão de Açúcar. E alguns estudantes, mas uns poucos, resolveram galgar o Pão de Açúcar, pregando pregos na própria pedra e subindo assim, até uma altura de onde uma faixa descesse até a base do morro — podem imaginar o tamanho do tecido, com certeza eram várias peças costuradas, e com uns dizeres que eu não sei precisamente quais eram, por exemplo, “Viva o Imperador!”

Os senhores percebem bem o entusiasmo que uma tarefa dessas deveria supor. Evidente. Por que? Porque é um risco e um problema. Já com todos os pregos postos, escalar já é um problema, os senhores imaginem ir pondo os pregos e ir subindo. Com certeza, cravavam o prego e punham uma plataforma pendurada em cordas, onde ficavam dois ou três ajudando o que pregasse o prego, iam se revezando, devia ser uma coisa dessas.

Os senhores podem também imaginar o entusiasmo diante da ideia de fazer esse feito. Porque o feito em si é um feito árduo, é um feito que exige coragem, jeito; é uma alta meta e exige coragem e jeito. E dá oportunidade à personalidade de se aplicar, de se desenvolver contra o difícil. De maneira que, quando o indivíduo acaba a tarefa, desce e contempla a faixa de saudação ao Imperador, a pessoa diz: “sim senhor, eu cresci, eu galguei o Pão de Açúcar!”

E o Imperador quando entrar com a corte dele pela barra do Rio, dirá: “Que rapazes fizeram isso? preciso saber-lhe os nomes...”

“Todos os jornais do Rio de Janeiro” - um ou dois naquele tempo, ou três ou quatro – “vão dar a notícia e os nomes. E na nossa faculdade nós vamos ser ovacionados”... Entusiasmo. Seria bem o caso de se falar em entusiasmo.

 Este mesmo rapaz, antes, durante a guerra do Paraguai, ele estava assistindo com a família, da janela da casa, passar a tropa que ia descer para o Paraná, Rio Grande do sul, Santa Catarina, até na parte da Argentina e entrar no Paraguai, era o trajeto mais ou menos, então ele estava assistindo passar a tropa e o povo aplaudindo, etc., etc., etc., de repente ele pula — era dessas casas térreas como havia antigamente com janela direto para a rua, e sem se despedir de ninguém, entra na fileira, diz “Até logo” e lá vai para a guerra. Se dirá: “Um rapaz entusiasmado. Ele sentiu entusiasmo!”

Bem, há diferença entre as duas fórmulas de entusiasmo. Entre a do rapaz que galga – eu exemplifiquei com um parente meu porque é o que eu conheço, todo mundo tem parentes assim, não estou dizendo que isso é nada de excepcional, mas aconteceu, é um homem que eu conheci, um senhor que eu conheci.

Os primeiros casos são casos que têm isso de comum que é uma coisa da qual o homem faz uma alta ideia – formar-se e exercer uma profissão cujo “pulchrum” ele sente muito, no caso que eu imaginei, a medicina, mas poderia também ser o Direito. Então, para os gostos daquele tempo, ser orador. Era o supra sumo do homem era ser um grande orador. Então ser um grande orador! bacharel que fala, que diz coisas etc., isso era um colosso.

Bem, então, alcançar uma coisa dessas, o indivíduo sentia uma grande alegria em alcançar uma coisa dessas que era uma realização de sua pessoa, um desdobramento de sua pessoa de maneira a ela chegar aos limites do possível para o homem comum.

Mas isso, então, do homem, em raiz, chegar à sua totalidade normal, era objeto de um entusiasmo. Por exemplo, era hábito – para ainda falar do segundo reinado e da primeira República – era hábito, quando o rapaz se formava, se era um rapaz do interior, quando ele vinha de São Paulo com a família, depois da formatura, era recebido na estação – não havia estrada de rodagem – era recebido na estação, com banda de música presença do prefeito, vereador, delegado de polícia, comandante de destacamento militar, o vigário naturalmente, a parentela toda e o povo. E a banda tocando, ele era saudado, por exemplo, pelo prefeito no cais da estação e depois, a banda tocando, iam todos para casa aonde havia o regime chamado “da boca livre”: a família punha comida até acabar de gente, e ia todo mundo que queria comer lá. E ele ia com o anel profissional, não é? Rubi para advogado, os senhores sabem; safira para engenheiro; esmeralda para médico, e assim por diante.

Era anel de ouro e houve tempo até em que o anel se usava no dedo do indicador direito, de maneira que quando o sujeito argumentava, as pedras faiscavam. Não era qualquer coisa... Dentro da casa ainda os discursos, porque ainda no tempo da I República, era comum festas de família, casamentos, batizados, aniversários, etc., duas, três saudações homenageando. Então, tudo isso entusiasmava o sujeito. Ele chegava aos limites de si mesmo.

Então nós temos ideia de algo que está em estado embrionário e que chega ao limite de si mesmo e que, por isso, dá uma grande alegria. Isto é entusiasmo. Aqui está uma noção de entusiasmo.

Agora, há uma forma mais alta de entusiasmo, que é quando o indivíduo não se contenta em chegar ao limite de si mesmo mas ele quer superar-se a si próprio e fazer algo que é tal que ele chegou ao que ele só arrancaria de si com um notável esforço sobre si. E, então, é o entusiasmo desse meu parente. Ele quer fazer uma coisa extraordinária e galga o Pão de Açúcar. Exige um notável esforço de si, um esforço dolorido por onde o indivíduo tira de si o que poucos tiram de si. Nem todos têm dotes para fazer isso. Ele tinha. Mas esses dotes só são utilizáveis quando o indivíduo faz força contra si e, mais ou menos, é como um homem que bate no próprio peito e de cada pancada sai luz.

Então, quanto mais bate, mais luz lhe sai do peito e brilha pelos olhos. Isso então é uma forma de entusiasmo, ele faz uma coisa que todo mundo diz: “Mas como você foi capaz. Que coisa extraordinária”. A vida inteira aquilo marca a existência do indivíduo. Ele foi dos poucos que subiram o Pão de Açúcar!...

Bem, os senhores, então vendo que a segunda modalidade de entusiasmo ainda é mais nobre do que a primeira. Porque, se é nobre querer ser tudo quanto se pode ser, quanto comumente se é, é muito mais nobre ser aquilo que a gente quase não consegue ser, de tão difícil que é. E ser o que muito poucos são. Fazer o que muito poucos fazem. É tomar uma estatura muito maior do que a média. E é, portanto, algo de mais entusiasmante. É um dos muitos sentidos da palavra entusiasmo.

O entusiasmo tem ainda um outro sentido, que é o sentido seguinte: quando uma pessoa, e eu disse há pouco, gosta muito de um doce ou quer muito casar com uma moça ou qualquer outra coisa assim, é um determinado deleite que a pessoa tem e que a pessoa deseja muito satisfazer. E a satisfação desse deleite, quando ele for satisfeito, dá uma alegria tão intensa que produz o entusiasmo. O desejo desse deleite produz entusiasmo.

Então, vamos dizer, a gente ouve falar de um lugar — eu sou gastrônomo, de maneira que os exemplos que veem à cabeça são frequentemente gastronômicos. Mas eu não sei se os senhores concordam comigo nesse gosto, mas uma das coisas, duas das coisas mais delicadas que a natureza brasileira produz são: primeiro, manga; eu reputo a fruta rainha, a manga. Naturalmente, podemos estar em desacordo, é opinião pessoal. Sobretudo super manga, manga a bem dizer de comer com colherinha de chá. Essa aí é manga inimitável, a manga fabulosa. Uma manga é uma fábula gastronômica. Eu sei que isso pode parecer exagerado a não brasileiros que há aqui. Se eu pudesse, eu oferecia uma manga excelente a cada um para eles se darem conta de como a manga é uma coisa ótima.

Mas há uma coisa muito diferente da manga. A manga tem uma pluralidade de sabores, a manga é para o paladar o que o órgão é para o ouvido. A manga tem uma pluralidade de sabores maravilhosa. A única coisa que a manga tem de diferente do órgão é que a manga é tão gostosa que, por assim dizer, ela exaspera. A gente quer comer tanto que come demais. O órgão, nunca a gente ouve demais, e por mais que a gente goste é fácil largar se o dever chama. Não é fácil largar a manga se o médico diz: “não pode comer”. São duas coisas, e há aqui um valo profundo entre uma coisa e outra. Mas eu não tenho tempo de examinar este valo. Eu o indico de passagem para não nos confundir, mas eu apenas aludo a isso. A manga tem toda espécie de sabores.

Mas há uma fruta no Brasil que tem um sabor só, discreto, pouco definido, mas tem para mim uma força de atração extraordinária: é o coco verde. Aquela geleia de coco verde — é uma coisa contrária da manga. A manga pode ser comparada a uma orquestra tocando; o coco verde um instrumento sozinho que toca, um cravo, uma flauta, mas que toca sozinho, ali também há um imponderável fenomenal!

Bem, imaginem que alguém me dissesse: “Dr. Plinio, por uma disposição médica x, y e z, o senhor quando terminar essa reunião, o senhor que está com tanta fome no momento – eu estou com fome – o senhor quando terminar essa reunião, vai poder comer mangas e cocos verdes à vontade, com todos os do auditório, impunemente para a sua saúde. Está preparada uma distribuição régia lá”.

A hipótese me entusiasmaria. Entusiasmaria por que?  O extremo deleite que essas coisas me provocam – para ser inteiramente positivo, eu deveria colocar junto com elas uma coisa que parece aos “frutólogos” um horror, mas é assim: a cereja não crua, a ótima conserva de cereja, seca ou molhada, mas é uma coisa magnífica... Teria isso lá. Bem, eu já começaria a sentir todos os sintomas do entusiasmo.

Primeiro, a ideia magnífica de como estão arranjados, e que aspecto têm, o prazer que dá chegar e olhar. Segundo lugar, a degustação promíscua, de cá, de lá, de acolá, exclamações, “mas que magnífico” etc., até à saciedade final. O repouso e uma pequena conversa que se extingue mais ou menos como as brasas se apagam depois de uma fogueira. E depois todo mundo vai dormir tranquilo. Eu já teria vontade de tudo. Seria o entusiasmo.

O que é? Não é mais uma alta finalidade em que a gente se realiza inteiro, mas é uma finalidade delectável, na qual a pessoa tem a sensação do deleite muito intensa, e por assim dizer do super deleite, a pessoa pode arrebentar de super deleite. E, então por causa disso, nós chamamos também isso de entusiasmo.

Bem, do ponto de vista do amor próprio, por exemplo receber uma condecoração. Imaginem, por exemplo receber a mais alta condecoração que há no mundo, que é o “Tosão de Ouro”. Receber o “Tosão de Ouro”, ajoelhado aos pés de quem a pode conferir, é uma alta coisa: A pessoa sai depois, o colar de ouro com o cordeiro:  - O que é? – Ah, é o “Tosão de ouro”, não sabia? (é todo de ouro o tosão). – Ah! “Tosão de ouro”? (esse analfabeto não sabe o que é e finge que sabe o que é) Hum, mas que coisa importante, hein? quanto pesa esse ouro? – Aaaah, pense no valor histórico! Senta aí, vou te contar, ta-ta-ta-ta. O mais recente cavaleiro do “Tosão de ouro” sou eu!”

Embriaguez, quer dizer, o amor próprio colocado numa posição paroxística, enorme. Olha lá, o “Tosão de ouro”!...

Então, é alguma coisa que chega também à sua plenitude.  Todos esses sentidos, então, têm isso de comum que são estados de plenitude que o indivíduo consegue, maiores ou menores, e ele obtêm de si uma realização completa, sendo que a palavra “completa” tem vários graus, vários sentidos e comporta até o superlativo “completíssimo”. Tem aí todas as várias modalidades de entusiasmo. Todas correspondem a isto e tem no fundo, como raiz, um desejo muito grande, um desejo muito forte que acaba sendo satisfeito. Quaisquer que sejam, nesse enorme leque de entusiasmos que eu desdobrei para os senhores verem, quais sejam as várias pouco importa, o conceito gira como num leque, em torno de um pino central. E o pino central é esse.

Isso está bem claro para todos? Ou foi um pouco confuso? Eu estaria disposto a repetir.

 Bem, agora eu pergunto a título de teste: aqueles para quem o entusiasmo realmente se reduz a isso na linguagem corrente levantem o braço para eu ter uma ideia.

Bem. São Tomás de Aquino diz que os Serafins ardem como chamas diante de Deus e são a mais alta falange dos Anjos, o mais alto coro dos Anjos e, como nós veremos daqui a pouco, o mais entusiasmado dos coros dos Anjos.

Pergunta-se: que relação há entre o entusiasmo dos Serafins e este sentido da palavra entusiasmo? Que diferença há? Por que é que são a mesma coisa? Pode-se fazer uma chave: entusiasmo e vai desde o Serafim até o glutão? Ou o vaidoso, que está estourando de amor próprio como uma rã porque ele conseguiu “megalar” aos olhos dos outros? Pode-se colocar tudo isto numa mesma chave? Ou há entusiasmos tão diferentes que é mais ou menos como, não sei, como o amor paterno. Uma coisa é o amor paterno do pai para seus filhos, outro é o “amor paterno” do bicho para com a sua cria. Aquilo não é amor, é um instinto paterno. O pai tem instinto paterno, mas tem muito mais do que isto, tem o amor paterno, que é humano. E fazem duas espécies diferentes que não mesma chave. O animal não tem amor, o animal tem instinto. Nós temos instinto, mas o instinto é completamente dominado e serve de base apenas, de pista de voo para o amor. É mais ou menos como o aeroporto não se confunde com a aeronáutica, e nem pista de voo é avião, assim o instinto também não é amor. O amor é uma coisa muito mais alta do que isso.

Então, pode-se dizer que há essas duas modalidades de entusiasmo ou é uma modalidade só? No caso de não haver, o que é que caracteriza o entusiasmo do Serafim? O que é que vem a ser nesse sentido a palavra entusiasmo?

E daí uma outra pergunta: é só por Deus que o homem pode entusiasmar-se? Então é só no Céu que a gente tem entusiasmo? Ou entusiasmo pode existir também na terra?

Então, se o entusiasmo existe na terra, é verdade que o entusiasmo na terra, quando é à maneira dos Serafins, é uma antecâmara do Céu?

São perguntas que cabem.

Nós devemos agora examinar o entusiasmo dos Serafins. Depois — eu até talvez nem consulte São Tomás agora, porque eu estou vendo que eu me enredei por um caminho longo do qual eu não sairei tão breve, e eu tenho que acabar isso — nós devemos dar a diferença entre as duas coisas, para perguntar se pode haver uma chave.

E para isso eu tenho que dar alguns casos de entusiasmo humano bom, de verdadeiro entusiasmo, para depois ver o que é que tem de comum com o outro entusiasmo que eu acabo de falar, ou o que tem de diferente do outro entusiasmo. Para ver depois o que tem de comum com o entusiasmo dos Serafins.  E aí nós teremos feito a diferenciação entre o entusiasmo no sentido corrente e o entusiasmo naquele sentido em que ele é idêntico à palavra caridade.

Caberia depois — mas provavelmente numa outra conferência — mostrar como a palavra “caridade” não é também o que a linguagem corrente diz.

[...] a Igreja vigiando o vocabulário para impedir exatamente que ele derrape. É uma coisa muito bonita. E os senhores veriam mais: como seria bonita – mais não, além disso veriam uma outra coisa que é menos — como seria bonito que todos nós na TFP tivéssemos um vocabulário aonde nunca a palavra tivesse seu sentido revolucionário. Que bem isso faria às nossas almas e às almas dos outros! Seria uma meta a se definir e a se visar em determinado momento.

Eu agora passo então para a questão do entusiasmo.

Os senhores considerem – eu de propósito não vou tomar exemplos diretamente religiosos, seriam fáceis de encontrar, mas os senhores tomem um – ou eu vou tomar um exemplo religioso, mas assim mesmo é um exemplo religioso que determina um entusiasmo não diretamente religioso, e por causa disso me serve.

É um exemplo um pouco comprido, mas é um movimento de entusiasmo que eu senti em minha alma, há dias atrás, lendo a vida de Santo Antônio Maria Claret e que eu comunico com o frescor ou com o calor do entusiasmo recentemente sentido.

Eu li nas “Memórias” de Santo Antônio Maria Claret, portanto é ele mesmo que conta, é o fundador dos padres Cordimarianos, grande missionário espanhol, catalão do século passado. Ele conta na história dele - eu simplifico um pouco a narração política, que ele estava pregado na Catalunha, e quando ele pregava a Catalunha era objeto da luta de dois bandos opostos. Um do partido político X, que era mais bem liberal, e o outro que era mais bem conservador. Havia, portanto, uma luta entre os dois bandos e que ele por toda a parte onde ele - era mais bem reacionário, era mais bem contra-revolucionário - por toda a parte por onde ele pregava, ele tomava um cuidado extraordinário em não entrar em política e não se comprometer com estes bandos.

E eu achei que a coisa era singular. Porque o verdadeiro era tomar posição, já que estou falando em bando, a posição debandada melhor, a favor do bando melhor contra o bando pior.

E assinalei aquela parte e disse: “vai haver alguma bonita explicação daqui mais adiante”. Porque a Igreja é sempre assim, quando ela tem alguma coisa que a gente não entende a gente deve marcar, porque quando a gente entender ali dentro está um tesouro. Então, a gente deve guardar com cuidado.

Então, bem mais adiante, ele conta vários fatos da vida dele, etc., etc., afinal de contas, fica Arcebispo de Cuba. E Cuba estava começando a ser agitada pelo partido revolucionário norte-americano. Aqueles países hispano-americanos de perto dos Estados Unidos receberam muita influência dos partidos políticos norte-americano. [...]

...do Governador, pedindo para ele como Arcebispo, ir urgentemente à cidade creio que Camaguei, para conter uma revolta que estava começando a arder lá. Conter pela influência moral. E ver se ele servia de intermediário e compunha ambos os grupos. Porque a Espanha, naquele tempo, muito devorada por dissenções internas, não tinha força para manter o seu domínio sobre Cuba e era obrigada a contemporizar para que Cuba não lhe escapasse das mãos. Então, conciliar, era o modo de perpetuar.

 Com essa recomendação, Santo Antônio Claret foi com urgência até Cuba. E conta lá o seguinte: que ele pregou, mas não disse uma palavra sobre política nem sobre a revolta. Ele pregou só as verdades fundamentais da Fé, o Catecismo, e ensinou a rezar, e os Sacramentos. Ele era um grandíssimo pregador, um santo!

Ele conta com toda a naturalidade que, terminada a missão dele - as missões dele parece que costumavam durar 15 dias - os chefes revoltosos vieram procurar a ele, dizendo que tinham perdido a vontade de fazer a revolta, e propor um acordo: que eles entregavam o ouro americano e as armas americanas ao governador espanhol de Cuba, contanto que o governador deixasse eles voltarem para as plantações de onde eles eram originários e não os prendesse.

Santo Antônio Claret transmitiu ao Governador, que com um alívio sem nome aceitou imediatamente. Porque é o acordo ideal.

Agora vem a razão do meu entusiasmo: Como ele soube fazer a Contra-Revolução tendencial a melhor que pode haver. E com isso ele fez Contra-Revolução “B”. Ele conseguiu o que tropa nenhuma conseguiria, e sem falar de política, simplesmente pondo nas almas as boas tendências, nasceu um desagrado pelas más ideias e más ações.

Eu não quero dizer com isso que fazer a República seja uma má ideia. Mas eu acho que, naquela ocasião era uma má ideia fazê-la naquele contexto histórico. Eu não falo aqui em princípio - o ensinamento de Leão XIII é muito claro, mas eu falo daquele contexto histórico. Era uma má ideia. As pessoas deixaram as más ideias sem que ele falasse da coisa; simplesmente pela posição tendencial dele perfeitíssima, santíssima, foi dando uma saturação do ouro, uma saturação da violência, uma saturação da aventura, uma saturação do poder, um gosto de rezar e de viver na calma tranquila e religiosa da plantação. Então “meu inimigo de ontem, meu irmão de hoje, toma as minhas armas e toma o meu ouro, eu vou para meu recolhimento, minha oração e meu sossego...”

Eu acho isto uma vitória muito mais brilhante do que qualquer vitória de César! mas qualquer! A mim me entusiasma esta forma de poder. Não sei se eu cheguei a explicar bem o fenômeno e o que o fenômeno tem de entusiasmante.

É a profundeza da ação - notem que eu não estou falando da santidade da ação, eu estou deixando o aspecto religioso de lado – a profundidade desta ação psicológica, o acerto com que ele conseguiu fazer uma ação dessa natureza, e depois a amplitude do fruto alcançado, o que dá uma ação prudencial magnífica! Isto a mim me entusiasma como operação, sem falar do fim sacrossanto, que isso tinha que era de levar essas almas a Deus através dos caminhos da salvação, que é muito mais ainda do que o que eu estou dizendo agora. Mas só este modo de operar a mim já me entusiasma.

O que quer aí dizer a palavra entusiasmo? Quer dizer que sou eu que chego ao extremo limite de mim mesmo? De nenhum modo. Eu não estou engajado nesta ação. Esta ação passou-se muito antes de eu nascer. As pessoas que estavam engajadas nesta ação ou estavam mortas quando eu nasci, ou já estavam fora do papel da História e eu nunca ouvi falar delas. De Santo Antônio Maria Claret eu só ouvi falar quando soube que ele foi elevado às honras dos altares. Portanto, já tinha corrido o processo de canonização e ele estava morto há muito tempo. Há tempo que a Espanha tinha deixado Cuba, há tempo que tudo aquilo tinha cessado. Estava nos arquivos da história, aquilo não tem nada comigo.  Mas ouvindo falar daquilo, eu me entusiasmo.

Esse entusiasmo é o mesmo entusiasmo meu quando eu chego aos limites de mim mesmo? Sim ou não? Não.

Eu e os limites de mim mesmo, estamos fora disso. É uma coisa que se passou como se deveria ter passado, de acordo com a ordem de coisas que está no Universo, a ordem do homem e a ordem da natureza em geral. E que por ter feito funcionar bem o que eu chamaria mal o “mecanismo da natureza”, tem uma grande beleza.

E eu sou apenas um espectador do lado de fora, mas entusiasmado. E bato palmas. Eu vejo e me alegro por causa daquilo que foi, mas eu não chego ao extremo limite de mim mesmo, eu estou fora daquilo.

Não sei se está clara a diferença entre as duas modalidades de entusiasmo.

Eu poderia apresentar assim “n” exemplos. Uma pessoa que ouve, por exemplo, uma música admirável. Hoje eu ouvi cantar no São Bento uma antífona, uma coisa assim: “Gustate et videte quam dulcis est Dominus” – “Experimentai e vede quão doce é o Senhor”. A mim me entusiasmou. Mas não é porque eu sei que essa doçura é voltada sobre cada homem e, portanto, para mim também. Ainda que, por absurdo, não fosse voltada também para mim, criatura d´Ele, por vê-Lo amar ou outro que não sou eu com tanta doçura, eu diria: “Muito bem!” deve ser!

E tudo quanto está de acordo com sua própria natureza, quer dizer com o ser que Deus deu àquele ser e que opera naquela direção, quando é de um modo bom, provoca de minha parte simpatia; quando é de um modo melhor do que bom, provoca calor; quando é de um modo esplêndido provoca entusiasmo. Mas eu estou de fora.

 Então, eu estou folheando, por exemplo, uma revista... vamos dizer essa revista geográfica que anda por aí, campeã em laicismo...  eu estou folheando a revista e aparece um leão, um exemplar magnífico...

Outro dia me mostraram fotografia de um tipo de onça que eu não sabia que há aqui no Brasil, mas que é – onça é um tigre brasileiro - uma onça preta, bonita, prestigiosa. Vale a pena que exista! Eu gostei de ver. Não tive propriamente entusiasmo, mas gostei de ver. O que há entre eu e esta onça? De minha parte, desejo mantê-la longe, eu não tenho tempo para perder com ela até atrás de uma jaula. Nós temos outras onças com que lutar. Mas eu gostei de ver. Existe aquilo. Aquilo existe e é muito bom de acordo com a sua natureza. Porque a natureza daquilo é ser um animal forte. Eu vejo um grau ótimo de força representado ali, e com beleza. O negrume da onça é o símbolo da ferocidade dos seus desígnios e da sua capacidade de acertar no feroz. O acerto é uma coisa que agrada tanto que até no feroz a gente diz “muito bem! Viva a onça!”

Mas aqui nós sentimos, nas nossas almas, como que um outro teclado, um outro instrumento de música que aparece, que não era o instrumento de música anterior. O instrumento de música anterior, se quiserem, é o piano das delectações e do “ego”: eu fui ao limite de mim mesmo, eu tive gosto com isso, eu fiz, eu aconteci etc., etc., etc.

 No segundo teclado, é uma coisa diferente: a coisa é e porque ela é como ela é, independente de mim, dá-me uma alegria cuja explicação na primeira linha eu não estou encontrando, mas que é fora de mim, que pode ser acima de mim, e em relação à qual meu egoísmo não entra em nada. Eu me alegro porque aquilo é! E porque é como deveria ser. E quando é muitíssimo do jeito como deveria ser, eu fico com mais alegria ainda. É uma outra ordem de coisas.

O que está por detrás disto?

Então, uma bonita música: “Gustate et videte quam suavis est Dominus”. Dom Mayer empregou outro dia uma expressão creio que foi no Eremo do Amparo de Nossa Senhora [outrora sede da TFP brasileira nas proximidades da cidade de Amparo, há cerca de 100 kms de São Paulo, n.d.c.], durante o jantar, que São Paulo fala daqueles que experimentaram “o bom sabor de Cristo”. Ora, há realmente um sabor eucarístico que a língua não sente. E há um sabor de Cristo, a gente lendo no Evangelho, ou vivendo dentro de Igreja, que um não cristão nunca pode ter imaginado o que é, mas que comparado ao sabor dá ao espírito uma ideia de algo tão perfeito que a gente deixa rolar no chão as mangas, os cocos e as cerejas... É outra coisa! outra coisa! outra coisa!

“Gustate et videte”, experimentai, degustai e vede. Mas é já uma outra parte da alma. Eu volto a dizer, é um outro piano, ou é um outro cravo, ou é um outro órgão feito para tocar uma outra música. É uma coisa completamente diversa.

Isto se sente quando se vê nosso estandarte tremular. Quer em campanha, quando a gente vê, que a gente tem impressão que às vezes nosso estandarte está heróico contra a raiva que sopra; mas às vezes, pelo contrário, ele está superior e ondula graciosamente por cima da raiva, como zombando dela e dizendo: “Tu não me atinges porque eu estou demais alto”. A gente tem a vontade de dizer: “ó estandarte”! Independente de qualquer coisa. “Ó estandarte! ó pulchrum! ó maravilha!” É uma coisa que é como deve ser e que leva minha alma para uma ideia que eu preciso examinar. Porque se eu não tomar agora isto com os dedos e não esfarinhar até reduzir tudo a grão farinha para minha clareza, eu fico no que tenho de melhor, inexplicado para mim mesmo. E esta é a frustração: eu ficar inexplicado para mim mesmo. Isto não pode ser!

Então, eu procuro ver uma coisa que me entusiasma, vamos dizer um leão, vamos dizer o estandarte, vamos dizer Santo Antônio Claret – eu estou tomando de propósito coisas das mais diversas - que me entusiasmam e eu chego à seguinte conclusão: que aquilo que é me dá um sentimento de amor quando é como deveria ser. E que quanto mais a coisa é rica em ser, tanto mais eu a amo porque ela é excelentemente. E que quando a coisa é riquíssima, mais ainda eu a amo por causa de uma noção que está por detrás e que é a noção é. Porque aquilo é, eu penso assim.

Vamos dizer que eu esteja passeando pela Rua Dr. Martinico Prado e vejo uma pessoa que estupidamente teve vontade de pegar um objeto comum e destruir. Isso uma vez se passou comigo.

No meu tempo de infância ainda as canetas tinteiro se usavam pouco, eram novidade; as melhores eram as suíças; e das suíças a melhor era uma caneta Mont Blanc e o menino “megalava” quando ele tinha uma caneta suíça Mont Blanc que ele recebia no dia de anos; no dia seguinte, no [colégio] São Luís, ele escrevia diante dos amigos com uma caneta Mont Blanc... ou, então, punha na mesa de trabalho. Na mesa de trabalho dos meninos havia tinteiro. E um dos mil modos comuns de tinteiro era tinteiro de vidro com tampa de uma espécie de matéria plástica do tempo, chamada galarite e uma cavidade recebia tinta vermelha e outra azul ou preta, e depois tinha uma concavidade para colocar borracha e clips e uma coisa comprida assim para caber lápis e caneta. Era um tinteiro.

Eu me lembro de mim trabalhando, a minha casa era alta para uma casa de dois pavimentos, uma casa antiga, então com andares muito altos. E eu olhei para aquele tinteiro e pensei o seguinte: “teria ou não teria sentido eu jogar este tinteiro pela janela agora e quebrar? É um tinteiro barato, mamãe, papai podem facilmente me dar outro, eles vão achar meio esquisito eu quebrar este tinteiro sem razão. Para eles não perceberem que eu quebrei eu terei de descer esta escada e recolher os casos. Até lá eu não vou! Eu não gosto de andar, e sobretudo, sou inábil e sei que vou me machucar recolhendo os cacos e não quero estar debruçado em cima do cimento recolhendo coisas, mexendo com coisas vis. De maneira que eu vou enfrentar a incompreensão deles. É melhor do que mexer com cimento e casos de vidro. Isto eu não farei. Vale a pena ou não?”

E eu fiquei assim nessa história: “Por que estou querendo quebrar? Por que não estou querendo quebrar? Eu estou querendo quebrar porque me agradaria ver a coisa chegar no chão e se espatifar. Por que é que eu estou gostando de ver que uma coisa se espatife? Eu também não sei. Não há nenhuma razão para eu destruir este tinteiro. E, portanto, o mais razoável é que ele fique aqui. Mas o mais gostoso é jogá-lo pela janela. Eu vou jogá-lo pela janela ou vou conservar?”

E me vinha uma noção vaga de que, destruindo aquele tinteiro inteiramente sem razão, eu cometia um pecado. E eu acabei não destruindo o tinteiro.

Bem, qual era a razão desta minha ideia de que destruindo uma coisa daquelas sem nenhuma razão eu cometia um pecado? Primeiro, porque aquilo que é, porque é, é bom. E a gente não deve destruir uma coisa que é, por mais modesta que seja como um tinteiro de vidro, a gente não deve destruir porque ela existe. E este é o princípio pelo qual se é conservador. Não se reforma, não altera, não se mexe em nada do que existe, sobretudo não se destrói, não havendo uma razão. Este é o espírito de conservação, e é de acordo com o bom senso.

Mas qual é a razão que há por detrás desse bom senso? Nós precisamos encontrar.

Eu mudo de ideia. E penso em tantos copos de cristal bonitos que eu tenho visto em minha vida, quer em casas particulares, quer em coleções de museus. Os senhores sabem que eu gosto muito de cristal, eu gosto muito dos objetos de uso do homem. Para mim a forma mais requintada da arte é servir o homem nas suas fragilidades e nas suas intimidades. Uma taça que conviva com ele como um amigo e da qual ele se serve para a delicada função de beber, participa em algo dele, lhe dá nobreza e ele enobrece a taça.

Agora, imaginem que uma das bonitas taças que eu tenha visto em minha vida - há duas formas de taça bonita: aquela que é tão fina que parece uma bolha de sabão e a gente tem medo de pegar; e aquela que é tão grossa que parece um pedaço de rocha, aquela fenda funda no cristal, grosso, denso, bonito, cristal da Boemia, magnífico!... Eu vejo alguém, um bêbado, que entra em casa titubeante, esbarra num objeto e quebra uma linda taça de cristal. Depois cai ele no chão e quebra o osso. Eu sou quase mais tentado a ter pena porque quebrou a taça do que o [osso do] bêbado.

Pelo riso dos senhores eu estou vendo que vários participam... Notem que eu disse “quase”, hein?!

Por que a taça de cristal acho uma judiação quebrar? Não é minha, nem eu vou beber nela. Podia ser uma taça que eu não tivesse conhecido. Se alguém agora me dissesse: “Dr. Plinio acaba de se quebrar um taça linda em tal museu assim” – vamos dizer do Brasil ou da Europa, ou da América do Norte, eu diria: “Que pena, eu não sei como é a taça mas eu fico penalizado”. Porque é uma coisa que existe, mas não como o meu tinteiro – meu tinteiro era comum – existe excelentemente. E por isto me dá mais tristeza do que o tinteiro quando quebra.

Agora imaginem que, em vez de quebrar o tinteiro, ou de quebrar a taça, me dissessem que há uma espécie animal bonita que desapareceu. “Dr. Plinio, acaba de morrer o último casal de onças pretas no Brasil”. A minha tristeza seria maior ainda: “Mas como vai ficar o Brasil sem onças pretas? Até ontem eu não sabia que elas existiam. Agora que eu sei que existem eu pergunto: Como pode o Brasil ficar sem onças pretas? Que pena”. Porque existir esta espécie, e ela desaparecer é um desfalque. Ela existia, desapareceu, é um desfalque. É um desfalque no que? No mundo das onças. Mas por que? É um desfalque no universo brasileiro das coisas, é um desfalque no Brasil, é uma ordem de coisas que é e que perdendo um tipo de ser cai, diminui, se empobrece. (...)

Agora, imaginem que eu soubesse que desapareceram os Serafins, não há mais Serafins. Eu diria. “Meu Deus, levai-me”. Talvez eu dissesse: “Levai-me para onde eles foram. Se eles não existem, com que cara vou existir eu na vossa presença? E se Vós aos vossos mais perfeitos, mais amados, Vós não tivestes amor, nem dor, como é que eu vou aparecer na vossa presença sem me sentir exilado e esmagado? Meu Deus, eu vou me liquefazer, morreram, os Serafins, oooh! Não pode ser...!

O fio do pensamento está claro?

Bem, qual é objetivo deste pensamento? É dar o denominador comum que há em todas essas aplicações. Aquilo que é, é digno de amor, pelo fato de ser. É bem ser. E quando aquilo que é tem todas as qualidades que são próprias ao seu ser, aquilo é o esplendor: é a rosa que se abre, é a estrela que brilha e cujo brilho passa espaços vazios e incontáveis para chegar ao olhar de uma criança só para a criança tentar pegar. E quando a criança tenta pegar a estrela e a gente pensa que a estrela foi feita para a criança, a gente tem vontade de levantar a criança dizer: “Homem, que és tu, ó rei das estrelas?” Evidente! Evidente!

Os senhores percebem, aliás, que a vida toda vista assim fica extraordinariamente bonita! Isto é propriamente viver! O resto, o coco, a cereja, a manga, entrarão depois - porque eu vou pôr tudo isto em ordem depois, entrarão depois – mas não entram como se costuma apresentar.

O que há aqui? Há o seguinte: a mais espantosa definição, para mim, que eu vi em minha vida, foi quando eu li já homem maduro, que Deus no Gênesis se definiu a Moisés assim — Ele apareceu a Moisés e Moisés quis saber quem Ele era — Ele se definiu assim: “Eu sou Aquele que é”.

Quer dizer, ser é propriamente Deus. Ele que é, Ele que criou tudo, deu a tudo a natureza que tem e organizou como as coisas são. E é bom que as coisas sejam, porque sendo, de algum modo participam d´Ele.  E quando eu não quero nem sequer que um cabo de vassoura se destrua inutilmente, eu no fundo não quero é que algo que seja deixe de existir. E quando não quero que algo que seja deixe de existir, é porque eu amo “Aquele que é”...

A última razão que explica tudo isto está neste ponto. Quer dizer: é bom ser; quanto mais alto é o ser, mais é bom ser; se é assim, então Aquele que é o ápice do ser é o ápice do bom. E Aquele que é criador de todas as coisas visíveis e invisíveis e que mantendo-se imóvel movimenta tudo, e dirige tudo, Aquele é o Bem Supremo. E quando eu amo cada coisinha que Ele criou, não porque ela é gostosa para mim, mas porque ela é e participa d´Ele, no fundo é Ele que eu amo.

Não sei se isso está claro ou não.

Eu dou um exemplo terreno para me tornar mais claro. Os senhores imaginem que nós ouvíssemos aqui, agora, o minueto de Boccherini - eu me lembro que uma ocasião ouvimos juntos todos. Terminado o minueto, nós pudéssemos ver Boccherini no momento em que ele estava compondo o minueto e passando pela alma dele todas as harmonias que ele estava pondo no minueto. É claro que nós gostaríamos ainda mais do minueto enquanto existia na cabeça de Boccherini do que posto na partitura. Os mil reflexos de alma do Boccherini compondo o minueto eram mais belos do que o minueto. E Boccherini valia mais do que a sua própria música. Por que? Porque a causa é mais excelente do que o efeito. E, portanto, nunca um compositor compôs a sua música em que ele entrasse inteiro. Há sempre um fundo inexpresso que nunca se exprimirá a não ser na presença de Deus. E que é feito para cantar a Deus. E que cada um de nós leva para a sepultura e para a eternidade e que dá num eterno cântico de amor quando nós fomos justos, e dá numa blasfêmia que nos dilacera para todo o sempre se nós fomos injustos. Mas aquilo é a impronta de nossa alma que nós levamos.

Ora, se eu considero o universo como um enorme minueto composto por Deus, e Deus como o Boccherini divino deste minueto, eu compreendo como é que é Deus. Então, se eu imagino Deus em cada um dos dias da criação, a perfeição de Deus que se espelha no que Ele criou: então cada coisa que Ele vai criando é uma perfeição d´Ele que aparece. Então imaginem a perfeição que Ele deixou ver quando Ele criou as águas. E até o fim do mundo os oceanos nas suas maneabilidades e as águas nos seus movimentos vão espelhar essa perfeição que apareceu no primeiro jorro quando Deus mandou que existisse a água. Mas então como era Deus quando Ele criou a água? Assim Ele é eternamente. E olhando o oceano eu ficaria furioso com o químico que acabasse com o mar. Ainda que houvesse muita vantagem, eu não perdoaria a esse bandido de ter acabado com o mar.

Agora, por que? No fundo, sem eu perceber, é porque o mar é. Mas porque que eu amo aquilo que é? Porque eu amo aquele que se definiu a si mesmo: “Eu sou aquele que é”. Esse amor do mar enquanto mar contém em si mesmo, subconsciente e implícito, um amor ao Autor do mar enquanto Autor do mar. Um amor de Deus.

Está claro isto ou não?

Bem, e isto é o que propriamente se chama de entusiasmo. É quando nós somos colocados diante de algo que nessa ordem do ser em que nós somos apenas um elemento, somos apenas uma pedra do mosaico, nós enquanto colocados no mosaico, conhecemos e sentimos a perfeição e o amor do mosaico no qual nós estamos encaixados. Aí vem o amor de Deus. Quer dizer, eu faço parte desse mosaico magnífico. Ainda que eu não fizesse parte e um outro estivesse em meu lugar, eu amaria esse mosaico, porque ele é, porque ele vem desse Ser que é por Si mesmo.

E como entre Deus e eu há uma semelhança, nós somos criados à imagem e semelhança de Deus, e eu sou mais do que uma semelhança de Deus, eu sou, cada um de nós nesta sala é uma imagem de Deus, como eu sou uma imagem de Deus, aquele que é imagem de outrem, não pode deixar de amar o outrem sob pena de se aniquilar a si mesmo. E se eu olhasse para uma fotografia de mim, e a minha fotografia fosse capaz de me ver, se a primeira palavra de minha fotografia não fosse “eu vos amo”, ela se desintegraria. Porque a semelhança teria que determinar nela esse sentido – e é a razão pela qual eu guardo minha fotografia na gaveta e não jogo no lixo. É porque eu amo a minha imagem, amo o meu próprio ser.

E, então, a imagem que ama desinteressadamente aquele de quem ela é imagem, ainda que ela não tenha nenhum proveito, e só porque ela não é senão uma imagem, mas o que existe é Ele – essa é a imagem entusiasmada.

Não sei se estão conseguindo me acompanhar bem.

De tal maneira que o entusiasmo é o ato de sinceridade pelo qual eu sei que eu não sou senão uma imagem, mas que existem seres que têm em grau muito mais excelente do que eu aquilo que eu sou, e por causa disso eu os amo.

Por exemplo, meu Anjo da Guarda. Meu Anjo da Guarda provavelmente, é o arquétipo de mim mesmo. E se eu visse o meu Anjo da Guarda, eu me ajoelharia diante dele e diria: “Que coisa magnífica é ser meu próprio Anjo! Meu Anjo, eu vos venero. Se Vós tivésseis pé, eu vos oscularia os pés”. De tal maneira eu me entusiasmo com aquilo de que eu sou a imagem. Mas meu Anjo é minha imagem apenas enquanto ele é imagem daquele que me criou. Ele é uma imagem de Deus melhor do que eu, e eu vejo nele Deus melhor do que em mim mesmo. Mas há Anjos entre ele e Deus que são mais parecidos ainda com Deus naquela linha. Então desde mim até Deus, por uma fieira de Anjos que chega até Nossa Senhora, Regina e síntese de todos os Anjos, e expira aos pés de Nosso Senhor Jesus Cristo, Homem Deus, há uma continuidade. E nesta continuidade está cada um de nós, a seu modo. Nós olhamos aquilo: Aaah!!

É a imagem que vê aquele de quem ela não é senão uma imagem. E sente aquela forma de felicidade da imagem, que não é a forma de felicidade daquele que é imaginado, mas é a forma de felicidade daquele que não é senão imagem: parecer-se com aquele que é maior. E regozijar-se, rejubilar-se com isso.

Isso é alegria, isso é entusiasmo quando é tanto que o sentido da vida de um homem passa a ser o serviço exclusivo daquilo que está superior a ele, como imagem dele. Ele se dá, ele se entrega, ele não quer outra coisa senão isso: “se eu conseguir esse serviço, acabou-se! eu atendi o que eu queria.

 Os senhores encontram, então, mil aspectos da Igreja, mil aspectos da vida terrena que se parecem com isso.

Indo ao Eremo do Amparo de Nossa Senhora, nós atravessamos lugares onde há capelinhas rurais. E eu me comprazo lembrar do bom tempo constantiniano em que eu estou imaginando uma missa cantada de domingo, em que o vigário está cantando com o coro caipira que canta um latim que não entende, num coro meio bambo de madeira, de andaimes brasileiramente não muito sólidos e presos à parede por toda a espécie de jeitinhos, e que rangem quando a pessoa desce, e o vigário está sentado numa cadeira velha espetada, e tem dois coroinhas ao lado dele em banquinhos, tudo muito simples assim. E se canta ali. Mas canta e a gente olha para aquele vigário e a gente vê a Igreja. E ele é respeitável ali como se fosse um bispo.

A gente então vai ver como é o bispo na catedral: está de mitra, no seu trono, dossel, tem cônego servindo, tem órgão que toca, tem o povo todo, etc., etc., e a gente diz: “curioso, dir-se-ia que é um Papa”.

 A gente vai ver o Papa em São Pedro e vê São Pio X celebrando a missa no altar da Confissão e – como várias vezes foi visto — elevando-se a vários centímetros do chão, no momento da Elevação, depois baixando de novo...

Bem, isto nos leva ao primeiro Papa, São Pedro. Mas isso leva a Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pontífice por excelência. Nesta linha, a gente vai indo, vai indo, vai indo, vai indo, e termina lá.

Quando termina lá, a gente é muito mais do que o homem que subiu o Pão de Açúcar e que fez de lá cair um pedaço de pano. Não tem comparação, não tem comparação! Nossa alma subiu ao alto da Torre de Marfim que ela tinha que galgar. E ela viu tudo quanto ela tinha que ver. No ser de algum modo aqueles que são maiores do que ela.

 Isto se chama entusiasmo, isto se chama dedicação. Porque então, a gente por isto faz qualquer coisa: a gente derrama o sangue, a gente sacrifica a vida, a gente suporta calúnias, a gente até chega a ter paciência, sendo necessário. E paciência com toda forma de absurdo, porque é necessário, porque serve aquele que é maior do que eu.

.... seres que estão todos numa mesma linha cada um mais excelente do que o outro. E o inferior voltado para o de cima como sendo a razão de ser dele, o serviço do que é mais íntegro e mais pleno que está acima.

Mas à procura como a chama da vela cuja parte mais quente é a mais alta, à procura do supremo, que é Deus, a quem mais do que qualquer um se ama porque Ele é mais do que tudo, Ele é absoluto. E com a palavra “absoluto” fica dito tudo. Está acabado!

Isso, então, é o entusiasmo.

A gente dirá: “Dr. Plinio, a sua descrição me faz entender alguma coisa, mas faz-me não entender outra. Porque então é a partir de mim para me entregar ao de cima. Mas eu não sou eu mesmo superior a outros inferiores a mim? Parece que não existe no panorama do senhor. No panorama do senhor só existem os que estão acima do senhor, o senhor fala do entusiasmo. Mas a chama da vela vai para cima, não vai para baixo. E por isso seu entusiasmo só vai para os grandes, não vai para os pequenos. E por causa disso eu não vejo o senhor falar do amor aos pequenos. Como é este seu singular entusiasmo? Então os menores não têm um reflexo nisso?”

Têm. Mas é de uma forma muito bonita. Quando Deus contemplou tudo, Ele viu que cada coisa era boa e o conjunto era melhor. Quando a gente toma os que são menores do que a gente, estão em ordem e vê que cada coisa é boa, a gente tem aquela complacência com ternura, dedicação e proteção que Deus teve para com as criaturas d´Ele. E quando a gente vê que tudo quanto a gente fez forma um bonito conjunto e que o conjunto é melhor, a gente tem impressão que Deus teve diante da criação.

Então, é uma forma de entusiasmo descendente; de si mesmo o entusiasmo é ascendente, mas o entusiasmo comporta uma forma descendente. É a ternura que tem por exemplo o bom pai ou a boa mãe para seus filhos; que tem o pintor para com o quadro que ele pintou. E que tem toda causa para com o efeito que ela produziu. Está absolutamente na mesma linha. E é bem, está certo.

Por exemplo, eu ouvi dizer agora no Eremo do Amparo de Nossa Senhora que São Luís Grignion de Montfort quando morreu, quis que todo o pessoal em volta dele cantasse as canções presumivelmente as que ele mesmo compôs. Ele estava vendo o povo dele cantar os cânticos que ele tinha composto e ensinado. Ele, por assim dizer, compôs as canções e compôs o povo, e viu o povo, ele morrendo, e o povo cantando as canções e dando glória a Quem era mais alto do que ele. Ele estava no ponto de equilíbrio ideal. Com ternura, proteção e afabilidade para com quem era menor e voltado como um Serafim para quem era maior e que estava lentamente arrancando a alma de dentro do corpo para as glórias eternas. É o ponto de equilíbrio como deve ser. Isto é perfeito, está direito.

Alguém dirá: “Está bom, Dr. Plinio falta alguma coisa, falta o elemento colateral”. Não, eu nunca me amo só a mim. Se Deus tivesse criado só a mim e a fileira de Anjos que vai de mim até Ele, Ele não teria podido criar. Porque nós somos pequenos demais para representar a Ele. Ele se exprime no universo. Um ser só, ou uma só família de seres Ele não pode criar. Isto é de doutrina católica. E eu tenho mais proximidade com aquilo em que eu estou; e a proximidade é um título de amor. Mas de fato meu amor abarca todos os seres, todos os Anjos, e Deus que olha no todo diz: “Aquilo tudo é bom, inclusive o Plínio que está lá no meio”.

Quer dizer, esta é a boa ordem. E aí os senhores entenderam o que é o entusiasmo.

Bom, a cereja, a manga etc., o que é que fazem dentro disso? Quando eu as interpreto como seres de um sabor nobre, que de passagem me dão um gosto agradável na boca, mas que sobretudo me falam de alguma excelência de Deus, então esse gosto é legítimo. Mas quando é pela pura comilança, sem nenhum sentido espiritual, é comer como um bicho. E por isso que muito de propósito eu comparei a manga ao órgão. Para se entender como é a gente tem que experimentar a manga. E eu poderia comparar a cereja a uma gota de vida. A cereja tem qualquer coisa por onde ela dá o esplendor da vida, ao mesmo no meu modo de entender, uma coisa toda especial. E o coco eu comparei a um som de corda de harpa, ou de cravo. O coco verde, o outro é um pedaço de madeira, mas o coco verde. E tem sua razão de ser. Quer dizer desde que todos os sentidos tomem uma analogia espiritual, a comilança desaparece e a ordem se põe. A gente deixa de ser bicho e passa a ser homem.

Meus caros, está tudo dito e num tempo enorme, eu levei duas horas, nós podemos dar a reunião, encerrou mesmo, depois a corda acabou. Está encerrado, nós vamos dormir. Agora, vamos rezar.

(Aparte: O senhor poderia dar um pequeno esquema?)

O esquema da reunião, muito resumidamente eu dou. O esquema é dividido em duas partes.

O sentido corrente do entusiasmo e o sentido de entusiasmo não corrente. O sentido corrente eu mostrei que tem um denominador comum, que é o “eu” de si mesmo. Sob várias formas. Algumas formas intrinsecamente melhores, outras formas piores. Vão desde a mera realização de si, às vezes efêmera como é subir o Pão de Açúcar, e outras formas menos nobres, a mera comilança como um bicho. Então, vão de ponta a ponta.

 Eu passei a mostrar que, além disso que é esse denominador comum, que abstrai - não é de todo ruim, mas abstrai do essencial - há uma outra forma de entusiasmo que não tem ponto de partida em mim mesmo. Vamos dizer, tem ponto de partida em mim mesmo mas enquanto o primeiro parte de mim e chega em mim, o segundo parte de mim e chega no mais alto, chega fora de mim e não é o amor de mim mesmo senão enquanto reflexo de um outro que me criou.

E que é, então, propriamente o entusiasmo no sentido verdadeiro da palavra, no sentido mais nobre. O sentido verdadeiro do termo é sempre o seu sentido mais nobre. E, então, o sentido mais nobre da palavra é este entusiasmo voltado para fora de nós.

Para fazer compreender essas várias formas de entusiasmo, eu tinha a dificuldade puramente didática, pedagógica de explicar o problema do ser. Então eu usei primeiro o método experimental. E eu fi-los sentirem vários entusiasmos, assim pela coisa porque é, e está em ordem, sem a explicação do que está por detrás. Depois mostrei que isto se apresenta à primeira vista como inexplicável. E depois mostrei como se explica dizendo o que é o ser. Mas o que é o ser? Aquele que é o Ser por excelência e que se definiu “Eu sou Aquele que é”.

O resto é um jogo de exemplos para fazer compreender melhor aquilo que eu disse, e fazer acompanhar pelas várias etapas o que eu disse. Exemplos que eu procurei até tornar “entretenidos” para que um esquema tão árido pudesse absorver a atenção de um auditório tão jovem. Porque de si o esquema é ultra seco, é ultra abstrato. Mas as coisas foram feitas, o concreto foi feito para tornar respirável o mundo do abstrato, tornar convidativo o mundo do abstrato. E eu usei, portanto, as coisas bem, como elas devem ser usadas para essa finalidade.

E até, falando disso, eu vejo que me falta dizer uma coisinha. É muito rápida mas falta.

No querer galgar o Pão de Açúcar existe algo do entusiasmo da segunda ordem? Quer dizer, do mais nobre?

Conforme o ânimo de quem sobe, pode ser. Quer dizer: “Como é alto o Pão de Açúcar! Como é nobre! Mas a minha alma é feita para coisas altas e nobres, e eu quero ver o mundo do alto daquilo”. Aqui entra no fundo um amor ao ser. É belo que o Pão de Açúcar seja tão alto, porque é belo que alguma coisa que é, seja tão grande e seja tão alta porque o alto tem razão de nobre. Enquanto o chato tem razão de ignóbil, o alto tem razão de nobre. A parte nobre de uma igreja é a sua torre, ou então sua cúpula. E por causa disso eu quero ir lá para melhor, no fundo, degustar o ser. E se eu sei explicar bem as coisas, no fundo, degustar a Deus. Está perfeitamente bem, a Deus através de suas criaturas.

Agora, se é para “megalar” (gabar-se), não. Aí volta para mim mesmo. Eu fui um animal que naquela altura lá, em vez de ver o que Deus fez, fiquei pensando no que os colegas iam dizer de mim quando eu fosse para o pátio da faculdade. Isto é uma besta quadrada. Diante de um panorama em que entrou a inteligência, a bondade, a onipotência de Deus – entraram no panorama – eu fico dependendo do aplauso de um fulaninho que me diga: “muito bem! você então subiu o Pão de Açúcar!?” Oh! ralé! Vil ralé, o que importa?

Me lembra a cena contada na história do cardeal Merry del Val, secretário de Estado de São Pio X. Foi passar as férias na Suíça e diante de um nasceres ou pores de sol em cima do gelo monumentais, ele tirou o chapéu e cantou o “Te Deum”. Agora, o que os outros vão achar do “Te Deum”, oh! arranjem-se como puderem, como souberem, como quiserem! Primeiro está ali uma semelhança de Deus e estou eu. Eu olho para Deus. O resto que se arranje como puder.

Então, ir para a guerra do Paraguai: uma coisa muito nobre se é porque a pátria é em certo sentido, uma plenitude de ser maior do que eu, e se fui lutar por essa plenitude de ser, à procura do ser e de Deus. Mas se é apenas para voltar com uma condecoração e um título para a vida inteira, ah! isso é vil, não tem importância nenhuma!

E a condecoração? A condecoração é nobre? É na medida em que ela mostra aos outros que a graça operou em mim uma coisa de bonito, e eu, usando aquela condecoração, glorifico a Deus. Porque se for para me mostrar a mim mesmo: “olha, eu fiz hein...” então é muito mais bonito ter o nosso distintivo, que quer dizer: “olhe, ria de mim que eu não me importo com você”.

Bom, meus caros, vamos encerrar.


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