Plinio Corrêa de Oliveira

 

Qualquer pessoa, em si, tem grandeza

Viver na presença de Deus

para realizar um plano de Deus

 

 

 

 

 

Santo do Dia, 12 de setembro de 1979

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A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.


 

 

[...] Eu queria tratar da matéria do Santo do Dia de hoje, eu queria indicar a forma de interesse que a matéria apresente, para depois entrar no corpo da matéria. Porque do contrário, facilmente, pela própria natureza do tema, a atenção se desviará e fiscalizará o tema por outro- lado e eu não terei obtido o resultado de formação, que é minha intenção proporcionar aos senhores.

Então, vou fixar bem o que eu tenho em vista.

Os senhores sabem que, de acordo com a convicção nossa que vai cada vez mais firmando pé, ao longo de todo o processo RCR [descrito em “Revolução e Contra-Revolução”], portanto desde a Renascença e Humanismo até os dias de hoje, a luta travada entre a Revolução e a Contra-Revolução o tem sido nas condições seguintes: habitualmente a Revolução vence — esse é o primeiro ponto e, portanto, a Contra-Revolução é derrotada;

2) habitualmente a derrotada, a Contra-Revolução, tem mais forças do que a Revolução e, entretanto, é o lado mais fraco que ganha.

3) a razão pela qual isso se dá está, portanto, não na força de ímpeto ou em qualquer outro predicado da Revolução, mas está no amolecimento, na cegueira, no desvio psicológico daqueles que deveriam representar a Contra-Revolução.

Portanto, em conclusão, é sempre a deterioração mental, moral e doutrinária - em boa ordem - mental, doutrinária e moral dos que deveriam lutar na Contra-Revolução, que é a causa principal da derrota deles.

Então, não devemos deitar o melhor de nossa atenção em matéria de RCR, não devermos deitar o melhor de nossa atenção no que está fazendo o adversário; certamente é indispensável, certamente qualquer cochilo nessa matéria pode acarretar desastres sem nome. Mas o grande ponto, não para ganhar esta batalha, aquela ou aquela outra, mas para ganhar a “guerra”, consiste em marchar na devida forma mental, doutrinária e moral, aqueles que devem representar a Contra-Revolução.

Assim, em termos mais concretos, lembro de ter lido há pouco tempo atrás uma biografia — uma biografia agradável, um pouquinho superficial, mas o tema é muito agradável — de Metternich, o grande Chanceler austríaco do período napoleônico e post napoleônico. Metternich, a certa altura de uma carta dele que o livro reproduzia, dizia o seguinte: quando se diz que a Revolução Francesa explodiu nas ruas e levou de roldão a Corte e a monarquia francesa, a afirmação é superficial. Ela primeiro venceu em todas as Cortes da Europa, depois desceu das Cortes para a rua, e da rua venceu as Cortes apodrecidas.

Essa sentença eu até marquei e separei no livro, tal é a importância desse pensamento. Insisto: Esse é o pensamento do grande Metternich, especialista em pensar e fazer a Contra-Revolução no tempo dele.

Se os senhores transpuserem isso para os dias de hoje, o centro-decisivo  é atacado pelo comunismo, como a nobreza foi atacada pela burguesia e pela plebe no tempo da Revolução Francesa [para aprofundar o tema relativo ao “centro decisivo”, veja, por exemplo, o Prefácio do Prof. Plinio à edição espanhola de “Revolução e Contra-Revolução”]. A força que deveria ser anticomunista hoje é a do centro-decisivo, e a todo o momento estamos presenciando o mesmo fato. Quer dizer, o centro-decisivo tem toda a força na mão, o comunismo representa uma minoria, mas continuamente é o centro-decisivo que recua e o comunismo que avança. Mas porque recua o centro-decisivo? A resposta é: Porque o centro-decisivo está mentalmente, doutrinariamente e moralmente fora de condições de resistir.

O que querem dizer esses três advérbios: mentalmente, doutrinariamente e moralmente?  Cada um desses advérbios tem sua aplicação aqui.

Mentalmente quer dizer há uma série de maus hábitos mentais do centro-decisivo: a despreocupação, o imediatismo, a superficialidade de espírito, a falta de concatenação do pensamento etc. Esses maus hábitos mentais tocam o campo da moral, mas dizem respeito ao mau uso da mente pelo homem, esses maus hábitos despreparam o centro-decisivo para a luta.

Porque quem não tem o hábito de observar com atenção, concatenar as observações que faz, de vê-las nos seus aspectos mais profundos etc., esse não tem meios de lutar, de ganhar a partida porque lhe falta o b-a-bá, este é um dos defeitos do centro-decisivo.

 Outro é doutrinariamente. O centro-decisivo admite uma porção de princípios como indiscutíveis, os quais, levados às suas últimas consequências, dão no comunismo. Por exemplo, todo centro-decisivo tem entusiasmo pela Revolução Francesa, e de bom grado assina o lema “liberdade, igualdade, fraternidade”. Ora, esse lema levado às suas últimas consequências dá no comunismo. Assim sendo como pode resistir ao comunismo quem já aceitou o lema cuja consequência é o comunismo? Opõe uma resistência mole.

Quanto ao moralmente é fácil perceber: o centro-decisivo, habituado como está a uma vida de prazeres, de relaxamento moral, de alegria, de distensão, não tem as condições morais para conduzir uma luta. Então, o todo momento vemos o centro-decisivo recuar.

Por causa disso, a nossa luta anticomunista não é só e nem principalmente uma luta contra o comunismo enquanto força que progride, mas é uma luta para mostrar ao centro-decisivo o perigo comunista; para, por essa forma, tentar pôr alguns elementos dentro do centro-decisivo na atitude mental necessária para combater; na atitude doutrinária e moral necessária para combater, e por aí fazer a resistência.

Pode-se dizer que o perigo comunista para nós é um mal, mas esse mal nós o utilizamos para tirar um bem. Quer dizer, para assustar o centro-decisivo. E enquanto o comunismo procura avançar veladamente e com sapatos de veludo, nós gritamos: “Olha o inimigo!” É verdade que é para pegar o inimigo, mas é sobretudo para arrancar da dormideira aqueles que estão se degenerando e que o inimigo conquistará à medida em que ele continuar a dormir, porque está num sono tóxico, portanto nosso objeto é esse.

mais uma razão pela qual devemos ser contra esses defeitos do centro-decisivo: é que infiltração de comunismo no Grupo graças a Deus não há; não existe infiltração de espiões comunistas e não há infiltração de mentalidade comunista. Há ou não há infiltração de mentalidade do centro-decisivo? Ora, um homem deve combater um inimigo, tanto mais quanto esse inimigo entrou portas adentro. E se eu dissesse aos senhores que as coisas são como se 30% do auditório tivesse importantes infiltrações da mentalidade do centro-decisivo, e eu estou sendo muito amável!... 

Então fica claro que tirar o meu auditório do espírito do centro-decisivo corresponde a uma verdadeira necessidade.

Eu dou mais um passo e vou mostrar um dos componentes da mentalidade do centro-decisivo, a que eu já tenho aludido, mas que eu quero definir aqui, para se entender debaixo de que ponto de vista a matéria que eu vou tratar deve ser assimilada, deve ser analisada pelos senhores.

Faz parte da mentalidade nhonhô, mentalidade eminentemente centro-decisivo, a ideia de que as ações do homem nesta terra, sejam elas de que natureza forem, não tem muita gravidade, que no fundo tudo se conserta, tudo se remedeia nada é trágico, nada toca no sublime e tudo, portanto, deve ser visto sobretudo pelo seu lado prazenteiro e engraçado de maneira que isso produz uma baixa de nível constante nos melhores.

[...]

Por fim, é interessante notar como um livro escrito sem nenhuma ideia de penetrar naquelas zonas [refere-se à campanha que está sendo feita no Estado do Amapá, n.d.c.] que são do gênero das de D. Casaldáliga, que esse livro [referindo-se ao “Tribalismo indígena, ideal comuno-missionário para o Brasil do século XXI”] tenha penetrado lá e esteja derrubado alguma coisa do trabalho que ele faz.

Mas essas são quatro razões que têm grandeza, todas elas são razões de peso, de raciocínio, de descortínio. Eu contei o fato como tendo alguma grandeza e a reação do meu auditório foi de alegria. Mas essa alegria se traduziu numa risada e essa risada é a última das reações que eu teria diante dessa notícia, porque eu quase não compreendo do que rir a esse respeito, ou se há algum titulozinho acessório para rir, é um título tão secundário, que eu não entendo como não se pode fixar a atenção nos lados grandes e a fixar a atenção no lado pequeno.

Imaginem que um general avisa: “Nossa tropa chegou agora até o alto de tal montanha”. Todo mundo ri. Eu digo que o exército está derrotado, um exército que sabe que conquistou uma posição e dá risada, está derrotado...!

Ora, foi o que fizemos há pouco, e não podia haver introdução melhor para o tema que eu quero adotar, do que esse pequeno episódio que agora se deu.

Eu não quero exagerar nada, porque se eu exagerasse o fato perderia a sua importância, eu não vou dizer, por exemplo, que isso representa um fato sem precedentes na história do Grupo, algo de novo contra o qual é preciso reagir. Isso seria exagerado, mas eu quero dizer que isso é muito sintomático de um estado de espírito, que é o estado de espírito de centro-decisivo, nada é sério, nada é grande, nada é importante e tudo pode ser visto pelo seu lado menor e resolver-se numa risada.

Apontada a mentalidade do centro-decisivo neste caso concreto - esta não é toda a mentalidade, mas um dos traços de mentalidade do centro-decisivo -, apresentado assim esse traço — toda a mentalidade se combate traço por traço, eu escolhi um traço para a noite de hoje — caracterizado esse traço, é preciso a gente ir adiante vencendo algumas objeções.

Qual é a objeção que vem?  É a seguinte: “Dr. Plínio no fundo tem razão. Mas se eu concordar com ele e for transpor o que ele diz para a vida quotidiana, ele me cria uma atmosfera interna irrespirável, porque eu não consigo viver sem rir. Faz parte da vida um certo bom humor, como faz parte da vida o ar fresco para respirar. E Dr. Plínio querendo de mim tanta seriedade, tanta elevação de espírito habitual, Dr. Plinio me tranca o ar.”

Eu digo: isso é uma ilusão do demônio a respeito da qual eu, um dia, poderia falar. Não é o momento de tratar hoje. Não há gente mais triste do que aquela que, para se sentir alegre, precisa estar sempre rindo, porque quando pára de rir, sente tristeza. E o mal não consiste em rir, mas em curar a tristeza.

Quando uma pessoa me diz: “Eu não posso deixar de estar habitualmente rindo, para mim é irrespirável não rir com frequência, eu deduzo que, quando não rir, sinto falta do ar”. Quer dizer, sente mal estar interior, sente monotonia, sente nervosismo, sente melancolia se não estiver rindo. Logo, é uma pessoa que se define assim: ou ri, ou cai no mal estar, cai na tristeza. Ora, essa situação é a de um infeliz.

A verdadeira situação é a do homem que não tem mal estar e não tem tristeza, ainda mesmo quando ele está em situações muito difíceis. Esse é o homem feliz. O outro é um homem infeliz.

Então, a cura para um homem cuja mentalidade é assim não consiste em rir sempre, mas consiste em curar-se dessa tristeza fundamental.

Os senhores têm a paciência de me ouvir várias vezes por semana. Portanto, conhecem-me bem.  Os senhores me veem às vezes rir, mas eu não estou sempre rindo. Acho que nunca me viram triste. Apreensivo, sim; na luta, graças a Deus, não sou um bobo alegre. Na luta posso ficar muito apreensivo. Triste, não. Langoroso, melancólico, nervoso, agitado, não. Aquilo que eu tenho que fazer, seja a luta, seja o que for, eu estou fazendo, mas estou fazendo com ânimo. Vou tocando para a frente. Resoluto e sem melancolias. Vamos! Acabou.

Isso é bem estar. Agora, um que precisa estar sempre contando palhaçadas para os outros, para ele mesmo não chorar, é uma coisa do outro mundo!

Lembra-me uma ópera do século passado, “Pagliacci”: um palhaço que recebeu a notícia de que a filha dele tinha morrido no momento em que devia entrar no picadeiro para divertir a criançada que estava lá. Ele tinha que entrar e fazer o papel. Era mais ou menos assim. Ele começa a divertir a criançada, lembrando da menina dele. E ele dava gargalhadas. E canta uma canção “Ridi pagliacci” porque tudo se resumia numa gargalhada trágica de ter que rir porque a filha estava morrendo.

Bom, é quase um palhaço que temos diante de nós. Um homem, para quem a vida é tão triste, que ou ele ri o tempo inteiro, de um riso fácil de transformar em pranto, ou não tem nada feito. Isso nós temos que curar.

Agora, qual é o modo pelo qual devemos curar esse traço da mentalidade do centro-decisivo, que é de rir de tudo e achar que nada tem importância? É perguntar o que diz a doutrina católica a esse respeito. Porque a doutrina católica é a doutrina da verdade. Se está com a doutrina católica, é; se não está com a doutrina católica, não é. Então, o que diz a doutrina católica a esse respeito? Mas diz a respeito do que? Da importância e gravidade das ações humanas.

Rir quando se anuncia a entrada de uma caravana de cooperadores da TFP no Estado do Amapá é negar a importância e a gravidade dessa ação humana, e negar em nome do princípio difuso de que nenhuma ação humana tem importância e gravidade

E a pergunta é: o que diz a esse respeito a doutrina católica? É verdade que nenhuma ação humana tem gravidade? Nenhuma ação humana deve ser vista em toda a sua medida gloriosa ou trágica?

Jamais a mentalidade do centro-decisivo quer ver a glória e a tragédia, a infâmia e o crime nos dois extremos das consequências de uma ação humana; nunca a ação humana é tão má que chegue ao crime nefando, nunca é tão boa que chegue a uma glória celeste, eterna, mas ela é sempre limitada em seus alcances e seus efeitos: nisto consiste a mentalidade do centro-decisivo da qual nós participamos. Então, a pergunta é: o que achar disso?

Eu já li aos senhores a profecia do Profeta menor Sofonias a respeito de uma cidade de abjeção e imundície, dominada pelo princípio “Deus não faz o bem, nem o mal.” É precisamente esse princípio! É o princípio de que nada tem importância, nada atinge nem o sublime, nem o infame; faz-se o que se fizer, as ações humanas ficam sempre contidas dentro de um certo meio termo que as limita necessariamente, e a gente pode viver despreocupado.

Agora nós vamos ver o que pensa disso não só o profeta Sofonias, mas a doutrina católica como um todo.

Como podemos ver isso bem? Perguntando o seguinte: qual é o papel de Deus nisso?

Toda ação humana tem como elemento fundamental o fato de que é praticada na presença de Deus. Esta vida é considerada um período de prova no qual devemos amar, servir e dar glória a Deus, na luta e na dor; em que cada uma de nossas ações é julgada por Deus com um conhecimento infinito nos últimos meandros dessa ação.

Cada uma dessas ações, além de conhecida por Deus, é julgada por Deus com a severidade infinita de sua infinita santidade. Quer dizer, qualquer coisa, que naquela ação não seja perfeita, repugna a Ele e Ele rejeita e pune.

Também por sua infinita bondade. Quer dizer, Ele nos dá todos os elementos para praticarmos bem essa ação, até praticarmos super abundantemente, e Ele premeia essa ação não só na proporção do justo, mas muito além. Ele mesmo disse de Si próprio: “Serei Eu mesmo vossa recompensa demasiadamente grande“. “Demasiadamente”. A recompensa é muito maior do que o mérito da ação, pela efusão da bondade dEle.

E toda ação tem, portanto, na ponta de si mesma, ou um imenso castigo, ou um imenso prêmio. Portanto, toda ação humana - em si mesma - é gravíssima. Ainda que seja uma ação pequena. Porque Deus está julgando e aquela ação é feita para se passar na presença dEle. E por aí, ainda que não fosse por outras razões, adquire uma gravidade insondável.

Vamos imaginar uma equipe teatral que está representando num teatro. Todos estão se aprontando para uma representação de rotina. De repente ouvem-se dos bastidores, onde os atores estão acabando de se arranjar, ouve-se no palco onde o pano ainda não foi suspenso e onde estão acabando de aprontar o cenário, três pancadas clássicas, e é o sinal de que o Chefe de Estado está entrando com sua família na tribuna de honra para assistir a representação. Imaginem que seja a rainha Elisabeth.

Ipso facto, tudo mudou na representação. É um zum-zum: a rainha vai estar presente! Todo mundo vai representar de modo diferente porque a rainha está presente.

De onde veio o aumento de importância? Não veio do texto da peça, nem dos atores, nem nada; é que entrou uma espectadora que ela mesma vale todos os públicos juntos de todos os teatros: é a rainha.  Então a coisa passou a ser gravíssima. E todos os atores vão representar de outro modo, porque a rainha está presente.

Agora, aqui, esta reunião não se realiza em presença de rainha nenhuma, mas é de Deus, Nosso Senhor. Ele está tomando as minhas palavras e medindo. E Ele está vendo, no interior de cada um dos senhores, como está recebendo o que eu digo. E no dia do Juízo vai se tornar presente a nós - entre outros elementos de julgamento - esta reunião. E nós nos encontraremos face a face. E se eu fiz a minha reunião de modo insuficiente, os senhores me acusarão diante de Deus; se eu a fiz de um modo potável, eu acusarei os senhores. Mas essa reunião não se liquida aqui. Ela se liquida no Vale de Josafá, onde os vivos e os mortos vão ser julgados.

E no que dá esse julgamento? Eu estou vendo alguém — um alguém no ar... — que me diz: “Dr. Plínio, não exageremos nada aqui também. Porque existe o Purgatório. Não existe só o Céu nem o inferno, existe também o purgatório”...

O purgatório - para falar linguagem “nhonhô”, porque eu estou discutindo com um traço “nhonhô” existente na mentalidade de muitos - eu digo o seguinte:

São Tomás de Aquino diz que a menor pena do Purgatório é maior do que o maior tormento que o homem possa suportar nesta vida. E isso que se chama um “pecadinho”, um “pecadinho” venial e que a gente pensa que passando o dedo em cima de um vidro quente em cinco minutos está tudo resolvido, isso vai nos trazer, se não fizermos penitência nesta terra, vai nos trazer consequências inenarráveis!

Imaginem um homem que tenha um alfinete incandescente metido em cada olho. É uma coisa horrível! Está bem, é uma pena menor do que a do Purgatório... E qualquer imperfeição moral leva para o Purgatório.

Já que a grande Santa Teresa de Jesus teve que fazer uma genuflexão no Purgatório antes de ir para o Céu... ter que fazer uma genuflexão no Purgatório, não é um mínimo. Imaginem uma fornalha de fábrica e um dos senhores tem que fazer uma genuflexão lá dentro o que é?...

Os senhores percebem a gravidade enorme da menor falta. Porque uma falta de Santa Teresa, o que é? Comparem com outras faltas “paralelepipédicas” que conhecemos e os senhores podem imaginar. Está bem, ela teve que passar por lá. Ela a quem Deus, nas horas de êxtases, disse as coisas mais ternas, mais carinhosas, revelando a maior complacência, o maior afeto, chega na hora do juízo, Ele diz: Fogo! Fogo para a minha bem amada! Chamas! Calor! tormento para a minha bem amada, um minuto que seja!...

Os senhores calculem por aí como tudo tem consequência.

Todo pecado venial prepara o terreno para o indivíduo cair em pecado mortal. Quanto menos a gente comente pecado venial, tanto mais está longe do pecado mortal. Os senhores compreendem de que precipícios a gente se aproxima se a gente cede facilmente na prática ao pecado venial.

Compreendem, então, como tudo é grave. E é para estudar um pouco a gravidade disso, para ilustrar a tese de que tudo é grave, que eu vou ler alguma coisa do que diz São Tomás de Aquino a respeito do inferno.

Isto vai meter nos senhores [medo do] inferno. Mas esse medo que é bom e legítimo, que é um fator de salvação - Nosso Senhor disse: “Medita nos teus novíssimos e não pecarás eternamente” e o inferno é uma desses novíssimos - esse medo do inferno é, por assim dizer, um aspecto colateral do tema. O ponto fundamente do tema é compreendermos a gravidade de todo pecado, e como, portanto, nesta vida tudo é grave.

Então, eu vou ler agora, como é que Deus considera o pecado — isto a respeito do inferno, qual é segundo São Tomás de Aquino, doutor máximo da Igreja Católica, qual é o castigo que Deus inflige ao pecador, para compreendermos como é sério pecar. E em sentido oposto, entendermos como é glorioso não pecar! Porque se é tão abominável pecar, é imensamente glorioso não pecar.

Eu falei exatamente do Céu outro dia aos senhores. É o prêmio. É um dos novíssimos, é o desejo do prêmio. Agora, é natural que eu fale da culpa, do castigo, da pena. Portanto, vou ler alguma coisa que São Tomás diz a respeito disso.

A questão é a 97, tratada com aquela gravidade e aquela simplicidade santa de São Tomás de Aquino.

“Em seguida devemos tratar do concernente aos condenados, depois do juízo. Primeiro da pena dos condenados e do fogo que lhes atormenta o corpo”.

Então, ele vai tratar dos condenados depois do juízo, e ele entra por esse tema [vendo] qual é a pena que os condenados vão sofrer — pergunta genérica e depois, uma pergunta específica: dentro do gênero pena, a espécie fogo que papel representa.

“Segundo: do que lhes concerne a afeição e o intelecto.”

O segundo ponto vai tratar do que diz respeito à propensão e a inteligência dos condenados, a compreensão dos condenados.

Em terceiro lugar, ele vai tratar da justiça e da misericórdia de Deus com os condenados. É, portanto um tratadinho perfeito dos condenados, do que interessa capitalmente sobre os condenados. Os senhores vão ver, com surpresa, que Deus tem para com esses seres que ele trata de modo tão terrível, sem deixar nem um pouco de tratar assim, Ele tem alguma misericórdia. Ou por outra, não. A misericórdia dEle é infinita, mas produz algum efeito para eles.

Na 1ª questão discutem-se sete Artigos:

1º) Se os condenados, no inferno, sofrem a pena do fogo.

Então, a primeira questão é qual é a pena dos condenados. 1ª pergunta: sofrem o fogo?

Segundo: Se o verme que os atormenta é um verme material.

Porque a Escritura fala de um verme roedor, que os atormentará o tempo inteiro.

Terceiro: Se as lágrimas que derramam é algo de material.

Quarto: Se as trevas que os rodeiam são materiais.

Quinto: Se o fogo que os aflige é material.

Sexto: Se é da mesma espécie que o nosso fogo.

Sétimo: Se esse fogo está no interior da terra.

Quer dizer, eu poso olhar para cá e dizer: daqui eu posso tirar uma reta e chego ao centro da terra. Então, daqui perpendicularmente uma reta vai ter no inferno? É uma pergunta... é uma pergunta!

Essas questões, como os senhores estão vendo, tem um “unum”. Elas são contra aqueles que acham que tudo quanto a Escritura diz sobre o inferno não é material, é apenas espiritual. Em geral, quem pensa assim são pessoas que só se incomodam com as penas materiais. E dizendo que as penas são espirituais, elas dão a entender que praticamente não são penas; e, portanto, acabam dando a entender que não existe inferno...

Negar a materialidade do inferno, psicologicamente para essa gente,  é como negar o próprio inferno. Não logicamente, mas psicologicamente, na psicologia deles é negar o próprio inferno. Então, São Tomás de Aquino mostra que é material, porque como eles só entendem as coisas da matéria, atarraxa-os na matéria: “Você só se interessa pela matéria? Está bom. Essa matéria que você adora, essa será seu tormento. Agora, vamos.”

“Artigo primeiro: Se os condenados do inferno são atormentados só pela pena do fogo.”

“Só” hein... Os senhores imaginem um fogo tremendo, devastador! E só pela pena do fogo!

“O primeiro discute-se assim: Parece que os condenados ao inferno são atormentados só pela pena do fogo: 1º - pois o Evangelho, quando se refere à condenação deles faz menção só do fogo: “Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno!”

Logo, se é para o fogo eterno, só tem fogo lá. Não sei se estão vendo o sofisma do “nhonhô”...

2o. - assim como a pena de Purgatório é merecida pelo pecado venial, assim a do inferno é merecida pelo pecado mortal. Ora, a Escritura não nos diz que haja no Purgatório outra pena além do fogo. Assim a palavra do Apóstolo: Qual seja a obra de cada um, o fogo o provará. Logo também no inferno não haverá outra além do fogo.”

É outro sofisminha. Os pecados são punidos no Purgatório com fogo. Se pecado se pune só com fogo no Purgatório, se pune só com fogo no inferno.

3º- A variedade das penas causa um certo refrigério ao sofrimento, assim como quando alguém é transferido do calor para o frio. Ora, nenhum refrigério haverá para os condenados. Logo não haverá no inferno penas diversas, mas só no fogo.”

O método de discutir de São Tomás é esse: ele deu três argumentos sustentando o erro. Qual é o erro? Só há fogo no inferno.

Os senhores imaginem que um dos senhores esteja para entrar, agora, vivo, num campo de concentração numa fogueira dessas químicas, dessas indústrias modernas, onde se põe uma barra de metal e ela se evapora ali dentro. O carrasco chama a pessoa “vem cá!” e um dos senhores diz: “Tem outro tormento além do fogo ali dentro? - Não? Ah! então, estou aliviado”... E entra lá dentro...

Não é esta a reação... Mas é para os senhores verem como o homem se apega a tudo para não querer ver o inferno e não querer se dar conta do que o aguarda.

Depois dele ter dado os três argumentos errados, ela dá uma palavra da Escritura que define a posição certa. E essa palavra vem com uma majestade tal que a gente já sente o erro dos argumentos. A palavra a Escritura é:

“Mas, em contrário, diz a Escritura: o fogo, o enxofre e as tempestades são a parte que lhes toca.”

Se a Escritura diz isso, está claro. Então os senhores imaginem o inferno com enxofre, cujo odor é horroroso, e tempestades internas contínuas. Quando para a tempestade vem outra coisa, tormentos que não cessam nunca, dentro do fogo. E esse fogo é tão terrível que Santo Afonso de Ligório dizia que o fogo da terra está para o fogo do inferno mais ou menos como um fogo de pintura está para o fogo da terra. Então, os senhores podem imaginar o que aguarda os pecadores.

Agora ele dá a solução.

“Segundo São Basílio, na última purificação o mundo...”

Quer dizer, quando o mundo for todo queimado, no fim, estiver o juízo feito etc.

“... haverá separação dos elementos: o que for puro e nobre permanecerá na região superior para a glória dos bem-aventurados.”

Quer dizer, na face da terra.

“...e tudo que for ignóbil e grosseiro será precipitado no inferno para pena dos condenados.”

Então, tudo aquilo que é horroroso dentro da natureza, asqueroso, medonho, repelente, quebrado, torto, errado é mandado lá para dentro.

Então, os senhores podem imaginar a seguinte cena: um homem está em estado de pecado mortal e por alguma razão qualquer — por exemplo, eu vou dar uma coisa ultra prosaica, mas é assim, e ele vai a um sanitário público, imundo. Ele se serve daquilo com horror e sai. Estando fora, ele tem um alívio: “Arre, que deixei lá aquela imundície!” Não bastou. Ele deve dizer: Estas imundícies — se não estas em concreto, imundícies dessas que haverá no fim do mundo, vão me agredir no inferno, porque eu estou em estado de pecado mortal; e se eu morrer nesse estado, essas imundícies que me causaram horror, esses escarros que estavam no chão me entrarão pela boca, e eternamente. E aquela e aquela outra matéria repugnante me entrará pelo nariz. E aquela outra e outra se esfregará em mim e me enlambuzará. Porque eu causo horror à natureza e o que a natureza tem de horrível me causticará eternamente. Eu estou ali com as imagens dos instrumentos mais débeis do meu eterno suplício!”

Meus caros, continua claro ou...

[sim!]

“De modo que assim como toda criatura será para os santos matéria de alegria...”

“Santos” são os que estão no Céu; não precisa ser santo de altar; são os que se salvaram. Então, eu não sei o que vai ser feito até o fim do mundo da matéria que constitui o braço desta cadeira. Mas uma coisa é positiva, ela existirá. Se ela existir, será para mim razão de alegria. Essa mesma cadeira que estou tocando, não é porque eu toquei nela, mas porque tudo quanto existiu será para mim razão de alegria, se Nossa Senhora tiver a misericórdia de me levar ao Céu. Então vai ser para mim razão de alegria, para eles vai ser tormento.

... assim todas concorrerão para aumentar o tormento dos condenados, segundo a palavra da Escritura: “Todo Universo lutará da parte dEle contra os insensatos.”

Todo o Universo lutará da parte de Deus contra os insensatos. Ele aqui acrescenta mais algo: não são só as matérias imundas. Mas mesmo o que ficar na superfície da terra vai causar ódio ao demônio, raiva, mal estar. Então, todo o universo vai dar ódio aos condenados. Não só ao demônio, mas aos precitos, quer dizer, as almas dos homens que foram condenados.

Então, por exemplo, eu saio daqui, olho para o céu e vejo uma estrela. Eu devo pensar: que alegria eu terei a propósito dessa estrela quando eu a conhecer no Céu! Mas se - que Deus me livre! – eu for parar no inferno, que tormento para mim será aquela estrela linda, que eu a odeio porque linha e porque eu estou condenado eternamente à perpétua fealdade. E cada vez que ela pulsar e brilhar, eu ficarei indignado. Estrela belíssima, eu te odeio porque és pulcra [bela]. Porque eu odeio todo o pulcro. E cada pulsação tua, cada cintilação tua é uma pancada em mim. Tudo atormenta aqueles condenados ao eterno tormento.

Agora os senhores vejam agora como se peca pela rua e meçam um pouquinho como são as coisas.

“E também entra no plano da divina justiça que, assim como abandonando o bem único pelo pecado...”

O bem único é Deus.

“... constituído o seu fim nas coisas materiais que são muitas e variadas...”

Quer dizer, o homem abandonou Deus que é bem único; abandonou cometendo o pecado; e cometeu o pecado por amor às coisas materiais que são muitas e variadas — é evidente que são muitas e variadas!

“... assim também a justiça divina manda que sejam atormentados de muitos e variados modos.”

Quem pode arguir de injusta essa sentença? Quem pecou por coisas materiais, que são muitas e variadas, sofre muitas e variadas punições. Elementar. Claro! Claríssimo!

Qual seria a reação numa igreja se um Padre, ainda mais dotado da graça única do sacerdócio, fizesse esta exposição? É difícil dizer... Eu tenho a impressão de que a igreja se esvaziaria de muita gente que está lá e que não voltaria, e que iriam alguns que não vão lá. E ficariam com medo: “Aquilo é sério, vamos ver o que é”. E afinal se teria do lugar certo, a palavra certa para o público certo. Por pequeno que fosse, mas isso se aproveitava. Não é melhor fazer isso, do que fazer os sermões que tantas vezes os senhores ouvem por aí? Ou não ouvem?...

“Donde a resposta à primeira objeção: O fogo, pela sua grande força ativa é capaz de nos causar os maiores suplícios. Por isso serve o seu nome para designar sofrimentos veementes, quaisquer que sejam

Então, quando Deus diz: “Ide para o fogo eterno”, é porque o fogo simboliza todos os outros tormentos; não é porque ele exclui os outros tormentos.

Resposta à segunda objeção: “O fim principal das penas do Purgatório não é atormentar, mas purificar. Por isso devem ser causadas só pelo fogo, cuja virtude é essencialmente purificadora.”

É encantadora essa razão! O Purgatório queima porque o fim dele é purificar, e o fogo purifica.

“Ora, as penas dos condenados não se ordenam à purificação. Não há, pois, analogia de situação.”

Alguém dirá: Mas se o fogo purifica, no inferno eles não são de algum modo purificados? Ele mostrará depois que não. No inferno, qualquer coisa que haja redunda necessariamente no catastrófico e irremediável dano dele. Não se escapa disso.

“Resposta à 3ª objeção...”

Esta é uma coisa que, confesso, eu não sabia. Fiquei sabendo hoje. 

“Os condenados passarão de um veementíssimo calor para um frio veementíssimo”...

Mas sem os estados intermediários.

“... sem gozarem com isso de nenhum refrigério.”

Não refresca. Para os senhores terem ideia disso, imaginem um homem que está tão queimado que sua pele toda está formada de bolhas; e é imediatamente jogado no gelo. Aquilo não produz refrigério nele, é um outro tormento contraditório, de que ele é capaz de morrer. Mas lá se tem a imortalidade. E nem a morte é saída. O eterno sofrimento pesa e pesa e pesa, e pesa, e pesa!

“Porque o sofrimento dos condenados provocado por agentes externos não será como os que causam em nós alterando a disposição natural que encontrou nosso corpo, de maneira a reduzi-lo a um estado proporcionado de equilíbrio, procurando-nos assim ó refrigério.”

A frase é muito longa, mas afinal quer dizer o seguinte: que quando se sujeita o corpo humano a dois extremos, pode haver normalmente uma etapa intermediária que equilibra o corpo e dá um certo alívio. Ali não há por que é esguichado imediatamente.

“Mas será por ação espiritual, pela qual os sensíveis atuam sobre os sentidos, fazendo sentir pela impressão no órgão de suas formas, no seu ser espiritual e não no material.”

Quer dizer o seguinte: que por causa da condição do corpo ressuscitado, e por causa da forma de união definitiva da alma com o corpo ali, o tormento do fogo pega muito mais a fundo a própria alma quando é um tormento material, e pega eternamente. De maneira que a coisa não tem saída.

Agora eu queria que os senhores considerassem o seguinte: esse não é o castigo solene, tremendo, para a massa enorme dos pecados que se cometem. É isso, mas não é só isso. Basta que uma alma reta tenha uma vez cometido pecado mortal, que essa alma fica sujeita a morrer e, por causa desse único pecado mortal, sofrer tudo isso.

Isso não é a pena devida por uma vida de pecado. Isso é a pena de vida por um pecado mortal! Se a pessoa morre naquele pecado mortal, está acabado! Por causa daquilo vai para o inferno. E essa simples ação mortal produz esse efeito. E pode produzir de um momento para outro!

Mais ainda: aqueles com quem Nossa Senhora, ou a quem Nossa Senhora tem uma misericórdia especial ficam mais especialmente sujeitos, sob certo ponto de vista, a essa punição imprevista.

Os senhores compreenderão isso na vida de família, nos aspectos familiares e pequenos da vida caseira: os senhores podem conhecer que uma mãe muito boa, muito solícita, muito compassiva etc., ou um pai, proceda com seu filho da seguinte maneira: O filho comete uma porção de ingratidões, e o pai ou a mãe perdoa, perdoa, perdoa. De repente o filho comete mais uma ingratidão, o pai ou a mãe acham que a medida está cheia e metem umas taponas no filho. Tanto maiores, quanto maiores e mais numerosos foram os perdões anteriores. Os perdões anteriores, a bondade anterior leva à descarga súbita de um castigo.

Então, o raciocínio: “Nossa Senhora é muito misericordiosa e por causa disso não vai me castigar...” cuidado! Pode dar no oposto. Eu não sei qual é a medida dessa misericórdia. Em determinado momento me colhe. Lá vou eu... Eu que abra os olhos, portanto. A misericórdia, pode ser, conforme o caso, pode ser a razão do castigo inesperado e total.

Me desculpem a pergunta: continua tudo claro?

Também uma outra coisa [objeção]: “Eu levei uma vida inteira reta. Não é por causa de um pecado mortal que Deus vai me mandar para o inferno”.

Não esteja tão certo... Porque conforme o caso, um amigo pode agir, face a outro, de um dos dois modos seguintes: 1) ele agora andou mal comigo, mas foi a vida inteira tão bom, que eu vou perdoar; 2) ele a vida inteira foi tão meu amigo, logo ele agora me faz essa?! A ele eu não perdoo.

E conforme o caso concreto, ambas as situações são explicáveis, são conformes à sabedoria. E às vezes a gente ouve falar às vezes o caso de gente que morre de repente. A gente se pergunta: terá sido um ato de misericórdia, para evitar que ele peque daqui a cinco minutos? Ou terá sido um ato de justiça? A gente não sabe...

O fato é que a muita misericórdia não é razão para a gente não estar certo de que não seja, de repente, objeto de muita justiça. Aí são os segredos ocultos de Deus que ninguém desvenda e que Ele sabe como são. São desígnios dEle resolvidos segundo uma sabedoria insondável, que é toda e só dEle.

Agora, tudo isso é utilíssimo para nossa vida espiritual. Tanto mais que eu chamo a atenção dos senhores, que é São Tomás de Aquino que ensina isso. E, com ele, o fluxo geral dos teólogos. Mas daí deveriam resultar alguns bons hábitos. Por exemplo - eu tenho esse hábito e recomendo aos senhores - nunca vejo um fogo aceso sem me lembrar do inferno e do purgatório. E contemplar um pouquinho o fogo. Ainda que seja umas dessas queimadas ordinárias, baratas que se vê quando viaja de automóvel. De cá e de lá está queimando. A gente ouve aquele crepitar, e depois ouve aquele estalido de matérias incandescentes que são soltos pelo ar, e o vento que toca as chamas. Às vezes é uma queimadinha à toa. Dizer: assim poderá dar-se comigo se eu não corresponder à graça. No purgatório e, o que o que é incomparavelmente pior, no inferno. Preste atenção! preste atenção! Os precavidos estão mais longe de cair do que os que não toma precaução. Preste atenção.

Isso conduz também a outra conclusão: “Rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte”. Por causa do incerto da vida do homem, pedir essa graça, que é uma graça autônoma das outras graças: a graça de morrer em bom estado. Portanto, recitar esse pedido da Ave Maria com um empenho especial, mais definido. É uma coisa excelente. Não é assim: bá-ba-ba não!

Mas isso, por mais santo e sólido que seja, não é o objetivo desta reunião. O objetivo é outro: É os senhores verem a grandeza do homem, a grandeza da ação humana e da vida humana. Se de um só ato humano pode pender consequências tão extraordinariamente boas como ver a Deus face a face no Céu, num oceano incalculável de felicidade, ou arder eternamente no inferno — quer dizer, consequência a mais catastrófica que o intelecto humano possa conceber — se todo ato tem na sua ponta essa alternativa, ou o Purgatório, então como tudo é importante, como tudo é grave, como é nobre a nossa natureza, de maneira que não possamos fazer um só ato que não tenha importância.

Devemos agradecer a Deus de nos ter dado essa natureza tão nobre e tão elevada que não podemos fazer um só ato que não tenha grande importância. Mas compenetrarmo-nos da importância de nossa natureza, e de nosso destino. A importância que é de viver em presença de Deus para realizar um plano de Deus. A importância que toma sua dimensão inteira considerando-se a glória infinita de Deus.

E nunca sermos frívolos, levianos, desprevenidos, brincalhões, tontos. Porque esse é um estado de espírito que não se ajusta às perspectivas que a doutrina católica impõe. É o oposto da doutrina católica.

Tanto mais quanto notem o seguinte: há, em moral, aquilo que se chama atos indiferentes. Por exemplo, tenho aqui diante de mim um copo de água que posso tanto beber quanto não beber, sem cometer pecado. Porque em si, beber um copo de água não é uma ação intrinsecamente má, e também não é uma ação intrinsecamente virtuosa.

Mas acontece que essa ação que é indiferente, eu posso pôr virtude ou defeito no modo de praticá-la. Por exemplo, eu enquanto estou falando aos senhores, várias vezes tive vontade de tomar um pouco dessa água. Mas percebi que essa ação que eu ia praticar, iria distrair os senhores e quebrar a sequência do pensamento dos senhores. Eu estou fazendo a reunião com um pouquinho de sede por cauda disso. Não é uma coisa cruciante, não estou fazendo dramas, é uma coisa comum, é um pouquinho de sede por causa disso. Mas se eu fosse tomar água agora, eu diminuiria a eficácia de minha reunião e cometeria uma imperfeição moral.

Vou contar uma coisa aos senhores. Uma vez eu fiz uma conferência em Buenos Aires. Terminada a conferência, havia na primeira fila um advogado amigo do Dr. Cosme Beccar pai, e me disseram que era dos maiores advogados de Buenos Aires, como aliás o Dr. Cosme Beccar pai também é. Estava assistindo minha conferência na primeira fila. Esse advogado, que morreu, chamava-se Sarabia. Ele acompanhou a conferência com uma expressão de fisionomia muito comprazida - eu não sabia quem ele era - e quando terminou veio me felicitar. Mas depois me perguntou - uma pergunta mais ou menos assim - com quem eu tinha estudado oratória. Eu respondi que nunca tinha estudado oratória. Eu falo assim, nunca estudei.

Ele disse: Mas aquele gesto pelo qual o senhor se serviu de água durante a conferência e depois ficou falando com o copo suspenso na mão, é um recurso que um professor de oratória lhe ensinou. Eu disse: Meu caro senhor, eu não tive a menor ideia de que isso pudesse ser um recurso de oratória. Eu fiz assim para não interromper o que eu estava dizendo. Simplesmente, e bebi a água. Ele saiu incrédulo, achando que um professor de oratória me tinha ensinado aquilo.

Na realidade, entretanto, havia uma coisa: é que quando eu fiz isso, eu me dei conta de que todo o auditório estava percebendo como eu estava fazendo isso, e que eu precisava fazer com uma distinção um pouco mais “recherché”, um pouco mais acentuada do que comumente se faz. E quando eu fiquei segurando o copo, eu não bebi para não interromper o que eu estava dizendo, mas prestei atenção para que meu gosto fosse composto, não ficasse um gesto ridículo. Isso fez bem a essa alma. Se eu tivesse bebido água relaxadamente naquela hora, esse bem essa alma não teria recebido. Ora, Deus queria que eu fizesse a ele também essa forma de bem. Então, nesse pequeno atraso que eu pus em sorver a água ali, eu pratiquei um pequeno ato de virtude. Para esse pequeno ato de virtude, eu terei a recompensa demasiadamente grande que também os pequenos atos de virtude, “more suo”, à sua própria maneira, também têm.

 Aí os senhores estão vendo a menor coisa atinge como atinge, como toca o campo moral. E como, portanto, tudo quanto nós fazemos é grande. Não é dado aos grandes fazer pequenas. Tudo que o grande faz é grande.

Os senhores imaginem um general que entra, vamos dizer, por exemplo, imaginem — eu vou dar um exemplo que talvez não agrade muito aos germanófilos, na sala. Imaginem o Marechal Foch entrando pelo Arco do Triunfo, no desfile da vitória da 1ª Guerra Mundial. Aclamações etc. Ele que visse um colega dele, que foi colega do tempo em que cursaram juntos tal curso na Escola Militar, que entrou depois para a vida civil, e que está perto dele e está aclamando a ele, ele vai e sorri de um modo especial para esse ex-colega. É uma coisa insignificante que alguém saúde um ex-colega. Mas feito pelo Foch, que é grande e que está naquela grande situação, o ato se torna enorme. E o homem, até o fim da vida dele se lembrará que Foch o saudou. Os senhores sabem bem que se estiver com máquina de fotografia na hora, sai a fotografia. Por exemplo, a filha ao lado, vê o Foch dizer um adeus para o papai... plam! logo e depois: “Mon père et Foch!” [Meu pai e Foch]...

Para consolar um pouco quem é germanófilo: um homem que eu achava com ar simpático, robusto e honesto, era o Hindenburg. Imaginem o Hindenburg, colossal, que passa pelas ruas de Munique, depois da guerra, na tragédia da derrota. Ele passa, é o grande Hindenburg com seu capotão, no inverno, cai a neve, a rua está na penumbra, a Alemanha está nas trevas. Ele representa a glória nacional. Seus pelões batem no chão pam-pam... nos lugares onde a neve ainda não alcançou o lugar. De repente, passa perto dele um parente longe. Eu não me lembro do primeiro nome do Hindenburg, mas vamos dizer que se chamasse Ernesto. O parente grita para ele: olha o Ernestinho! Ele olha para o parente: Ó, é você José, venha cá dar um abraço. Dali um minuto o Hindenburg continua, o outro fica parado, olhando. “O Ernestinho passou”.

Durante uma semana ele conta em casa que o Ernestinho o encontrou. É o grande Hindenburg. Não é capar de fazer uma coisa pequena. Os grandes não fazem nada de pequeno.

Ora, todos nós somos grandes, muito maiores do que os senhores pensam, porque temos a mesma natureza humana de que Nosso Senhor Jesus Cristo se revestiu; temos a mesma natureza humana de Nossa Senhora. Todos nós somos gigantes por causa disso. E tudo que fazemos é gigantesco. Inclusive gigantesca pode ser a nossa tonteira se dermos risada sem propósito. Essa é a conclusão a que eu queria chegar.

Meus caros, se o centro-decisivo estivesse imbuído disso, haveria perigo comunista?

Então minha conferência está justificada. Eu cheguei à tese que eu queria demostrar. Todos nós somos enormemente grandes, gigantescamente grandes. E há uma frase do Novo Testamento — creio que é Nosso Senhor Jesus Cristo mesmo que diz “os poderosos serão poderosamente atormentados” — bem entendido, se pecarem. O que quer dizer: os poderosos serão poderosamente premiados se perseverarem. Aos poderosos, o destino é grande porque é marcado especialmente pelo Todo Poderoso.

Tenhamos a noção de nossa grandeza e carreguemos essa grandeza como uma glória, como uma ilustração, também como um sacrossanto fardo.

A grandeza é uma cruz. E é por causa disso que se coloca a cruz no ápice de todas as grandezas, quer dizer, no alto da coroa dos Reis.

Bem, terá aproveitado ou não? Eu não sei. O que que é o proveito? Há duas espécies de proveito. É uma impressão difusa que fica no espírito, que amortece de momento os maus movimentos do orgulho – porque o homem fica desse tamanhinho, não é? a gente proclama que ele é grande, mas o orgulho dele fica desse tamanhinho com todas essas grandezas. É que essas grandezas que não orgulham. É uma grandeza santa. A pessoa pode ficar, portanto, com seu orgulho diminuído. Naturalmente a concupiscência também, a pessoa toma mais cuidado, é compreensível. Mas fica nisso: um bem momentâneo!  Pode ser isso.

Como esse bem é duradouro? Se a pessoa tiver isso tão gravado no espírito que a propósito dos mais vários atos que pratica toma o cuidado de ser séria. Porque o fim da conferência é este. É uma conferência a favor da seriedade em função do inferno e do Céu também. Eu fiz várias alusões ao Céu.

Então, era preciso perguntar-se que efeito isso vai causar. O bom efeito não pode ser simplesmente o seguinte: “Eu agora vou mudar.” Porque é muito bom pensar que vai mudar, mas é bom cair na realidade; que talvez não tenha força para realizar o que deve fazer. E que precisa arrepender-se várias vezes, voltar várias vezes à carga, incorporar a um exame de consciência diário, feito com a seguinte pergunta simples: Lembrei-me da grandeza de minha natureza de homem, quando eu pensei em tal coisa, ri a respeito de outra etc. E refazer o itinerário do dia: Em tudo eu deitei a gravidade, a seriedade que as imensas consequências dos meus atos trazem consigo? Esta é a pergunta.

Se a pessoa fizer um exame de consciência, ou dois, por dia — não seria mal três... — a esse respeito, tudo muda. Mas, faremos? É uma pergunta. Aí é que se vai auferir a mudança.

Resta-me só dar o esquema da reunião:

I - As penas do inferno não são apenas espirituais, mas materiais. Elas de tal maneira atormentam o homem que, por toda a eternidade o fazem sentir o paroxismo — o auge, se quiserem — das dores mais dilacerantes.

II - Analogamente, as recompensas no Céu deleitarão não só a alma, mas o corpo. E em tal medida que este sentirá continuamente o auge de uma felicidade ordenada e santa.

III - Ora, toda ação humana, ou em si mesma é boa ou má, ou pode ser tal em virtude de alguma circunstância. Logo toda ação humana tem uma grandeza e um alcance incalculáveis.

IV - Os grandes conferem grandeza até às pequenas coisas, aos pequenos atos. Todo homem, portanto, eu também, é imensamente grande porque Nosso Senhor Jesus Cristo se fez homem, e Nossa Senhora foi a mera criatura perfeita, criada para ser Mãe dEle. Logo, cada ato meu é imensamente grande.

V - De onde se conclui que quem tem o hábito de ignorar a grandeza de sua condição de homem e de filho da Igreja, de avaliar todas as coisas como se fossem sem importância, e de rir sem propósito acerca de tudo, nega a grandeza do homem. Mais ainda. Age como se negasse o próprio Deus. Pois, dado que Deus existe, toda ação humana é praticada na presença dEle, e assume assim uma grandeza imensa.

Se quiserem, tomem nota do exemplo da rainha no teatro. Aí está feita a conferência.

(pergunta inaudível)

O movimento da História é pendular: cada vez que o homem sobe em virtude, ele está exposto a cair mais fundo. E cada vez que ele, do fundo, se reergue, pode abrir-se para ele a possibilidade de se reerguer mais alto. De maneira que no Reino de Maria, aonde haverá os maiores santos da História, provavelmente os que começarem a derrocada final do Reino de Maria para o fim do mundo vão ser também os piores pecadores, comparáveis apenas aos deicidas.

Portanto a condição de súdito do Reino de Maria, é um estado de glória do próprio católico. O Reino de Maria é a glória da Igreja e da Cristandade. E, portanto, ser súdito desse Reino é ser súdito de um Reino em estado de glória. Conspurcar a bandeira do Rei na sua glória é muito pior do que conspurcá-lo em condições comuns. Daí o acréscimo de gravidade. Mas também acréscimo de mérito se for um brilhante soldado do Reino de Maria.

Está claro?

Bem, meus caros, vamos rezar.


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