Plinio Corrêa de Oliveira

 

Perceber o reflexo de Deus nas criaturas

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Santo do Dia, 9 de junho de 1979, sábado

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A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.


 

[...] Para que nós nos fixemos bem isso, nesta ideia deste mundo que rui, e de outro mundo que surge, e sempre lembrados da doutrina católica a respeito do verdadeiro sentido da palavra aristocracia - quer dizer, a Igreja Católica ensina e eu não me farto de dizer isso, que as três formas de governo que há – monarquia, governo de um; aristocracia, governo de alguns; democracia, governo de todos – que as três formas de governo em si são lícitas e que não contrariam em nada a doutrina católica.

Mas que essas formas de governo sendo lícitas, entretanto, não se pode por isso dizer que nenhuma seja ilícita, que nenhuma seja má. Todas elas espelham de alguma maneira a grandeza de Deus. E diz Santo Tomás de Aquino que aquela que mais espelha a grandeza de Deus é aquela que reúne as três formas num todo. Essa forma não pode ser imposta a todas as nações, não pode ser do mundo inteiro, variam as circunstâncias, variam os tempos, variam os lugares. O princípio fica posto. Mas Pio XII acrescenta nos seus discursos ao Patriciado e à Nobreza Romana que a aristocracia é um valor próprio, e que este valor deve existir representado em algumas instituições até mesmo nas sociedades e nas formas de governo democráticas.

É, portanto, algo que, como um valor da cultura e da alma humana, não necessariamente como uma categoria de preeminência social, mas como um valor de cultura e da alma humana têm que existir por toda parte onde as coisas estiverem bem ordenadas. Esse é o ensinamento de Pio XII.

Já que os senhores falaram, tocaram de leve nesse assunto aqui, eu vou tratar rapidamente desse assunto aqui na noite de hoje, por meio de exemplos.

O princípio primeiro que a gente deve tomar em consideração é o seguinte: os senhores sabem que o mundo é esférico, ou pouco mais ou menos esférico, e que portanto, há ocasiões em que os homens estão de cabeça para baixo em relação ao ponto em que teriam estado de cabeça para cima. Mas eles não percebem porque a força da gravidade, faz com que o sangue, com que o peso todo, reflua para o centro da terra. De maneira que eles não têm um ponto de referência imóvel no Céu em relação ao qual eles podem saber se estão de cabeça para baixo ou de cabeça para cima.

E nessa concepção – eu estou usando uma linguagem evidentemente infantil para exprimir a coisa – nesta concepção nós todos por exemplo de momento estamos sentados de cabeça para baixo em relação ao momento em que era dia e estávamos de cabeça para cima. Muito infantilmente e muito sumariamente a coisa é assim.

Assim há homens que nascem durante o dia, há homens que nascem durante a noite. E eles nascem, portanto, às vezes de cabeça para baixo, às vezes de cabeça para cima, conforme a hora em que nasceram.

E isso que se pode dizer da posição física do homem, se diz também da posição psicológica do homem no seguinte sentido da palavra: há mentalidades que são de um modo tal que o indivíduo tem a impressão de que naturalmente falando o centro do universo não são eles, não é cada um deles, mas para eles as coisas são como se eles fossem o centro do universo. O centro de todas as atenções, de todas as preocupações, de todas as apetências deles, de tudo quanto eles inteligem, é aquilo que eles têm que fazer, aquilo que eles são, aquilo que convêm a eles. O que for de uma esfera maior do que isto, para eles passa a ser desinteressante, na medida em que está distante deles. De maneira tal que, vamos dizer, um fato que se passe a uma grande distância deles, esse fato não lhes interessa porque eles estão longe disso.

Os senhores conhecem o caso de Eça de Queirós, contando a história de um almoço em Portugal, em que ele fala do famoso "pé da Luísa Carneiro". Os que conhecem levantem o braço e eu me dispensarei de narrar.

Em duas palavras, Eça de Queirós descreve no interior do Portugal, aquele interior tão tranqüilo, tão largo, tão farto, tão repousando sobre si próprio, numa casa de certa distinção acaba um almoço de domingo. O almoço esteve esplêndido, estiveram presentes vários convidados da família, passam todos para uma sala ao lado para conversar. Mas o peso do almoço opulento, da comida portuguesa – que é muitas vezes difícil de digerir. Os senhores sabem de um restaurante de Lisboa se chama "Ao fartabrutos"? Aonde o Sr. Paulo Brito comeu! E onde eu teria comido se eu soubesse do "Fartabrutos" quando estive em Lisboa!

Depois do almoço vão todos para uma sala ao lado. E à medida que a digestão se faz o sono sobe. À medida que o sono sobe, a conversa vai se amortecendo. Por educação cada pessoa joga uma palavra de cá e de lá, a coisa se arrasta. Vem um carteiro e entrega os jornais, e espalha um pouco os jornais por ali, e um ou outro lê alguma notícia, e lê alto alguma notícia no desinteresse geral.

Quando alguém vê uma notícia de um desastre medonho na China. Um rio, não me lembro o que, um rio trasbordou e vamos dizer cem aldeias ficaram submersas, destruindo não sei quantas vidas, quantas casas, quantas lavouras, quantas culturas, quantas obras de arte, quantos pagodes, foi uma catástrofe. E o Eça então descreve com aquela capacidade de reconstituir a realidade que ele tinha, ele descreve todo o mundo ouvindo aquilo assim, "ah... ah... ah..." uma pena platônica dos chineses que estão lá longe de Portugal, é quase um outro mundo, ainda mais naquele tempo de um telégrafo escasso, e em que todas as comunicações eram por navio, não havia ainda avião. A China era o fim do mundo, era um outro mundo.

De repente entra alguém, e traz um aviso: a Sra. Da. Luísa Carneiro que estava sendo esperada para o almoço e que não apareceu, não deu satisfação, mandava um recado pedindo desculpa, mas ela tinha tido uma queda na rua e tinha machucado o pé. Como a Da. Luísa Carneiro era amiga de todo o mundo que estava lá na roda, foi um alvoroço. "Mas Da. Luísa Carneiro machucou o pé? Onde terá sido?" Mandam imediatamente bilhetes, recados para Da. Luísa Carneiro. E o sono que a catástrofe dos chineses não tinha sacudido, o simples pé da Luísa Carneiro sacudiu.

Eça muito finamente põe o ponto final e não comenta o fato. Mas fica entendido o inconveniente da alma humana que ele queria apontar ali. É que uma catástrofe, absolutamente falando, grande, ocorrida na China, para o homem comum é como se não fosse nada. Por quê? Porque não diz respeito ao círculo no qual se move. Então não é nada. Porque para ele o círculo de tudo é ele.

Pelo contrário, o pé da Luísa Carneiro é uma coisa insignificante. Uma senhora que numa rua tranquila de uma aldeinha de Portugal, caiu, machucou o pé, está com o pé estendido, passando sonolentamente o domingo em casa. É uma bagatela. Mas é muito importante porque é uma pessoa da roda dele. E como isto toca a ele, então o pé da Da. Luísa Carneiro fica valendo muito mais do que todo o caso da catástrofe da China que é distante. Aqui há um vezo do espírito humano fica indicado. E esse vezo é: o que diz respeito a eles importa na medida e no sentido em que diga respeito a eles. E o que não diz respeito a eles, não importa em nenhum sentido e em nenhuma medida.

Os que são assim, são dos espíritos curtos. São mais ou menos como homens afetados de uma forte miopia e que não veem a não ser no espaço necessário para se moverem. Quer dizer, os horizontes maiores eles não conseguem perceber. Por quê? Porque não é necessário. Para eles não sentem a falta... Se para pegar os objetos, para ler as coisas, para se movimentar eles veem o necessário pouco lhes importa saber como são as estrelas, como são os horizontes, como é o mar. Nada! Para eles está acabado.

Há um outro tipo de homens que é o contrário: eles só se interessam pelos grandes horizontes, pelas grandes coisas, por aquilo em que eles não estão no centro, têm um gosto enorme disso a ponto de relaxarem às vezes aquilo que lhes é imediato. E então os senhores vêm com frequência artistas, poetas, grandes generais, grandes diplomatas, etc., que deixam a família na miséria, que não cuidam dos seus próprios interesses pessoais, e que vivem com a cabeça posta em coisas que estão muito acima das cogitações imediatas deles.

Isso é um defeito ou é uma qualidade?

À primeira vista é um defeito, porque o homem deveria ver longe e ver perto. A vista boa, proporcional, normal, vê as estrelas tanto quanto é normal e sabe ler a letra pequena de um jornal sem auxílio de lentes. Esta é a vista perfeita, Sabe observar uma formiga sem auxílio de lentes, e sabe ver uma montanha ao longe com o que na montanha se passa, igualmente sem auxilio de lentes, esta é a vista perfeita. Vê muito bem longe, vê muito bem perto, vê tudo quanto interessa à mente humana ver.

Na realidade, alguns homens têm uma vocação especial. Nossa Senhora os chama para verem de longe e não se ocuparem com o que está perto. Na vocação especial, isto é uma qualidade. Porque é uma tal absorção no que está mais alto e mais longe, que eles como que voam e são mais anjos do que homens. Para uma vocação especial.

Então, os senhores têm santos assim. Os senhores conhecem o episódio mais do que sabido por todo o mundo: São Luiz rei de França convida Santo Tomás de Aquino para o almoço. Era uma honra ser convidado para a mesa do rei. O superior vai com Santo Tomás de Aquino e começa a conversa. São Luiz presidindo, todo o mundo tem por obrigação estar atento ao que diz o rei. E é claro que é o rei que faz a conversa. O rei começa a conversar, aliás São Luiz tinha muito boa prosa, era muito bom interlocutor. O rei começa a conversar e São Tomás reimerge nas suas preocupações e se esquece que está na mesa do rei. E ele que era corpulento, de repente dá um soco na mesa e diz: "Ergo conclusum contra maniqueos". "Portanto, conclui-se contra os maniqueus", hereges mais ou menos gnósticos do tempo dele.

O superior: "Frei Tomás, Frei Tomás!"

São Luiz: "Frei Tomás chegou a uma grande conclusão, mande depressa pegar material para escrever, para tomar nota do pensamento para não perder". Veio gente depressa, tomou nota do pensamento de frei Tomás. Depois frei Tomás normalmente, e mansamente entrou na conversa. Mas uma luz nova tinha nascido na Igreja, novos argumentos contra os maniqueus.

Frade chamado ao abandono das coisas da terra, chamado a preocupar-se exclusivamente com as coisas do Céu, São Tomás de Aquino evidentemente fez bem em na própria mesa do rei, nem olhar para o rei. Mais terrível ainda, na mesa do santo não olhar para o santo. Mas olhar para os maniqueus, de pegar os maniqueus e... é o grande ponto! Ele fez perfeitamente bem.

Mas houve santos a quem Deus chamou para uma outra forma de perfeição. Os senhores já conhecem também o fato muito sabido de Santa Teresa de Jesus que estava preparando um almoço para as freiras e teve um êxtase em que ela foi raptada aos Céus em espírito, e teve uma visão altíssima. Ela era uma grande mística com visões absolutamente transcendentais, ela teve uma visão altíssima e contemplou a Deus enquanto ela fazia uma panqueca. Os senhores sabem que para fazer a panqueca precisa bater, sacudir no ar para virar de um jeito e de outro. Quando a auxiliar da cozinheira entrou, viu-a em êxtase, na glória de Deus e batendo direito a panqueca para ser servida.

Quer dizer, no mais alto do que ela fazia, superior a São Tomás nesse ponto – não quero dizer absolutamente – mas nesse ponto a ação dela era mais alta do que a de São Tomás. Porque São Tomás estava pensando nos maniqueus, ela estava vendo a Deus face à face. Deus falava a ela naquele momento. Bem! Apesar disso, Deus ajudava a bater a panqueca. E ela por espírito de disciplina e por senso das coisas como são, ela tinha esse êxtase místico e ao mesmo tempo estava fazendo panqueca.

Mais caraterístico ainda, talvez seja esse dito de São Inácio de Loyola, e que eu creio ter repetido aqui também há algum tempo atrás, não me lembro bem, a respeito do seguinte: ele media tão bem o pró e o contra de tudo quanto ele fazia, e portanto qual era a razão última da deliberação tomada, da convicção formada ou da deliberação tomada, ele media tão perfeitamente que no simples passar por um noviço da Companhia, portanto, o que a Companhia tem de mais modesto: um noviço! Passar por um noviço da Companhia e tirasse barrete para ele, no ato de ele tirar o barrete, ele poderia encher uma folha de papel com por exemplo quinze motivos pró, e, digamos, dezoito contra para cumprimentar deste, daquele modo, de ter cumprimentado e de ter respondido com este ou aquele motivo(?).

Quer dizer, é uma visão agudíssima do que lhe está imediato, mas sem ter perdido a noção, em nenhum momento, daquele que é o verdadeiro centro de todas as coisas que é Deus Nosso Senhor.

Esta exposição que mostra aos senhores várias famílias de almas: Santo Inácio agindo, portanto, com a finura de um político, de um ultra-político. Eu estou certo de que um Talleyrand, um Metternich, não saberia calcular tão bem um cumprimento como Santo Inácio de Loyola! Santo Inácio agindo como um político, estava inteiro posto nos acontecimentos deste mundo.

No extremo oposto, os senhores podem imaginar, São Tomás de Aquino pensando nem na panqueca, nem no rei da França, nem no Santo que tinha diante dele, mas pensando exclusivamente nos maniqueus. É uma gama enorme de variedades, porque é na variedade que se espelham as perfeições infinitas de Deus.

E então a gente compreende bem que tem que haver gente que preste atenção em tudo. Preste neste sentido da palavra: de que tudo aquilo que Deus criou e que é conforme a Ele, foi feito para ser visto pelo gênero humano. Esse é o princípio geral. E tem que haver homens com feitio de espírito para ver cada coisa. Uns veem mais uma, outros veem mais outra. Mas, tudo é objeto para ser contemplado muito atentamente por um certo tipo de homens.

Eu dou um exemplo modesto. No uso doméstico não há nada de mais comum do que uma colherzinha de remexer café. Se os senhores vão ver a variedade de formas e de estilos de colheres de remexer café que se tem fabricado no mundo desde que há café, os senhores vêem que se poderia fazer um museu enorme com essas variedades. E que o homem fez mil obras de arte e mil horrores com colherzinhas de mexer café. Quer dizer, a colher de mexer café é uma criatura indireta de Deus, porque ela foi modelada por aqueles que foram criados por Deus. Só em torno dessa coisa o talento humano quantas modalidades inventa! Quanto o homem pensou a respeito de colherzinha de mexer café. É um certo tipo de homens! São os que tem o espírito feito para isso! Mas Deus quer que alguns tenham o espírito feito para isso!

E o resultado é que em alguns lugares da Europa se fizeram colherzinhas de mexer café tão magníficas que na Áustria chegou a haver isso: quando o imperador da Áustria oferecia no fim de certas recepções com centenas ou mais de um milhar de convidados, ele mandava oferecer café pelos lacaios, a colherzinha era de ouro. Mas já se sabia por tradição que era tão bonita que o convidado tinha o direito de levar para casa, que era um presente do imperador.

Os senhores tomem outra coisa: saleiro. Objeto tão rotineiro o saleiro. A coisa mais rotineira que pode haver no mundo. Pois bem, o que há de variedade de saleiros é uma coisa simplesmente, poder-se-ia fazer um museu de saleiros. Eu me lembro de um saleiro feito por um facínora que foi um dos grandes artistas da Renascença, Benevenuto Cellini, ele mesmo muito propenso a um gênero de arte que me toca muito. Eu gosto muito do esplendor dos objetos próprios ao uso do homem. Exatamente, colherinhas, saleiros, toalhas, cortinas, tapetes, cristais, etc., a tudo isto eu sou muito sensível que sejam esplêndidos.

Ele fez um saleiro que foi parar na mesa dos reis da França e que era um verdadeiro esplendor. Era todo de oro, enorme, ocupava um centro de mesa enorme com as figuras mais ou menos deste tamanho, e representava Netuno, o deus dos mares, com seu tridente, remexendo assim, seguido de uma série de divindades mitológicas marinhas, todas assim correndo e gracejando, e outras remexendo uma pirâmide de sal branquíssimo e finíssimo que deveria ser posto no saleiro na hora de ser servido. De maneira que cada um podia ali aproximar sua colherzinha e pôr na sua própria comida o sal que quisesse. Na mesa, toda com velas, candelabros com velas, lustres com velas no alto do teto, na indecisão da luz que vai e que vem, o saleiro brilhava como uma montanha de cristal no meio da mesa, ao reflexo dos ouros. É um saleiro! É um simples saleiro!

É ou não é sumamente atraente imaginar um saleiro assim? Uma coisa tão pequena, para um uso tão modesto. Mas é que tudo quanto é do uso do homem, foi feito para ser pensado de um modo magnífico, e realizado de um modo magnífico em alguns espécimes, de um modo bom em outros espécimes, de um modo decente em outros, e de um modo indecente pela Revolução!

Quer dizer, há toda uma gradação. E mesmo o indecente que a Revolução faz serve o homem, porque serve o homem para comparar e para detestar. De maneira que até isso serve aos justos.

Daí os senhores tiram a conclusão seguinte: que Deus fez na terra os homens e depois o reino, como os senhores sabem animal, abaixo do animal, o vegetal, e abaixo do vegetal o mineral. E Ele, além disso, criou uma forma de vida, que vale mais do que o homem, e que é a vida sobrenatural da graça.

Qual é a idéia que nós podemos ter da vida sobrenatural da graça? Quando a pessoa está muito penetrada pela ação da graça – eu daqui há pouco lembrarei aos senhores o que é a graça – quando uma pessoa está muito penetrada pela ação da graça, espraia-se em torno dela uma como que luz, às vezes visível, às vezes invisível, uma como que ação de presença, às vezes definível, e às vezes indefinível, mas em razão da qual a pessoa parece emitir, parece dar a conhecer algo em si que é superior à própria natureza humana.

E isto se nota muito bem quando a gente imagina Nosso Senhor Jesus Cristo, ou então quando imagina Nossa Senhora. Quer dizer, se a gente imagina Nossa Senhora andando, por exemplo, por um vale florido com os famosos lírios do campo, é quase impossível não imaginar que à medida que Ela ia passando, pela ação de presença dEla as flores se abriam mais, ficavam mais brancas, se voltavam discretamente para Ela e deitavam um perfume mais intenso.

Por quê isso? Porque havia nEla, em grau proporcionado à dignidade incomparável dEla, havia nEla algo de sobre-humano, quer dizer superior a todos na natureza mas atraindo tudo quanto era inferior. De maneira que a gente imagina que as flores se voltavam para ela, que quando Ela passava os recém nascidos paravam de chorar, e começavam a abanar as mãos em relação à Ela. A gente imagina que os cordeiros, símbolos do Cordeiro de Deus, se achegavam a Ela e que iam ficando mais brancos e mais alvos, à medida que Ela ia se aproximando. A gente imagina que os leões olhavam de repente dulcificados para Ela, encantados e mansos como se fossem pássaros, mas depois rugindo ao longe para defende-la contra um adversário imaginário e com uma força também duplicada, decuplicada. A gente imagina assim um passeio de Nossa Senhora pela Terra Santa.

Isto assim, em grau infinitesimalmente menor, porque em relação a Nossa Senhora tudo é infinitesimal, tudo, as maiores coisas, as mais belas e maiores que os senhores podem imaginar em relação à Ela são infinitesimais. Isso se deu também com incontáveis outros santos. Os senhores conhecem o famoso caso do leão de Gubbio de São Francisco de Assis. Era um leão terrível – leão não, lobo – terrível e que dava medo a todo o mundo. Comia, devorava, pintava o caneco. Então pediram a São Francisco de Assis, uma providência contra o leão. Ele chamou – o leão não, o lobo – o lobo veio todo docinho. São Francisco deu uma benção e o lobo ficou suave e nunca mais atacou ninguém.

Os senhores conhecem também São Francisco Solano, um jesuíta, apóstolo do Paraguai, quando os índios paraguaios ficavam muito bravios, ele tocava o violino e amansava. Era como a benção de São Francisco. Como seria útil na nossa época que os santos que passassem levantassem as grandes indignações consonantes com a mensagem de Fátima! Como seria belo, como seria grandioso!

Mas esta vida sobrenatural da graça, da qual eu falava há pouco, ela vale mais do que a vida humana. Porque ela é uma participação do homem na vida divina! Deus cria a graça – a graça é um dom criado, não faz parte da natureza dEle mas contém uma participação na vida dEle, e Ele como que enxerta isso no homem e se o homem corresponde à graça é ao pé da letra como o enxerto: a gente põe o enxerto e toda a produção muda, também tudo quanto o homem faz como que se diviniza sob a ação da graça. E a mais alta qualidade que pode haver na terra é estar exatamente imbuído, correspondendo à ação da graça com toda intensidade. Tudo está perfeito, nada se compara à ação da graça.

Assim também existe o que a Igreja chama a ordem espiritual, e depois o que Ela chama a ordem temporal. A ordem espiritual é o que diz respeito ao sobrenatural e à salvação das almas, diretamente. Então, é a Igreja Católica com toda sua movimentação no mundo. A ordem temporal é o que diz respeito à vida terrena, mas e feita para servir a Igreja [vira a fita] ... e os móveis, e a luz que entra e tudo o mais, que servem para a alimentação devem ser de tal maneira que o homem também ali veja ou imagens ou semelhanças de Deus. E por esta forma, também na consideração da ordem temporal ele veja imagens ou semelhanças de Deus. Está bem claro isso ou não?

Os senhores imaginem... - eu vi essa cena no mosteiro de São Bento aqui de São Paulo. Eu era novo ainda no movimento católico, eram os bons tempos em que o progressismo ainda não tinha começado E era dia de São Bento, e havia uma tradição pela qual no dia do fundador da Ordem religiosa, os frades ou monges da Ordem convidavam os amigos para um almoço de caráter festivo.

Eu entrei muito curioso porque nunca tinha visto um almoço assim. Uma sala de jantar alta. Não sei se exagero dizendo que perto de dois andares de altura. Uma mesa separada e mais alta para o abade, homem venerável, Dom Domingos de Silos Shelhorn. Shelhorn é aquele chifre oco com que o pastor chama as ovelhas..., com uma cruz de ouro bonita, com uma corrente, todo vestido de preto, com um escapulário preto, com solidéu preto, ametista no dedo, almoçando com distinção. Ao lado dele um grande historiador paulista, Afonso Taunay, que era dos convidados da festa, mais uma ou duas pessoas gradas que não me lembro quem eram.

Depois duas mesas longas, com frades, monges beneditinos e alguns leigos. Primeiro entramos nós, então, e eu novato lá pelo fim da mesa, bem, entramos nós. Depois entrou o abade com os convidados de honra. Coava uma luz bonita através das altas janelas, a mesa posta toda bonita(?), calma, o abade reza, abençoa a comida, os pães que já estão presentes na mesa, senta-se. E entram alguns irmãos beneditinos em fila, trazendo pratos monumentais como quantidade e bastante aceitáveis como qualidade e começam a servir.

Eu achei aquilo muito bonito, muito interessante. Eu senti que aquilo elevava minha alma, e elevava minha alma a Deus! Mas era um ato temporal! Não era o cântico do ofício na Igreja. Era um ato temporal, comer! Mas elevava minha alma a Deus! Todo o refeitório feito para comer, refeitório é lugar de refeição! Quando ouço atrás de mim, vinda do alto uma voz que diz: "continuação da história de Cneu Pompeu". Olho para trás, era um frade, um monge beneditino, que lia do púlpito uma eterna história de Pompeu, de não sei um Cneu, toda uma historiarada lá.... Ele ia cantando assim, – eu estou com a voz desafinada – cantando muito afinadamente, cantando não, pronunciando assim como tentei fazer, o tempo inteiro.

Era uma história que a gente não sabia como tinha começado nem sabia como ia acabar. E em que ninguém prestava muita atenção, nem ele, porque a gente via que ele estava prestando muito mais atenção no falar afinado do que no sentido do que estava lendo. Mas que ia embalando todo o mundo. Às vezes pela narração a gente deixava de prestar atenção no ambiente e ouvia o que ele dizia, era uma quádriga que ia passando com corcéis fogosos, com um guerreiro encima, pouco mais adiante era uma imperatriz que estava chegando, ou sei lá que, um magistrado que estava discursando. Era todo um embrulho a história de Pompeu!

Depois a gente voltava para a vida quotidiana e ia comendo. Bem! E saindo de lá,  uma ação temporal, material, a alma toda elevada para o mais alto, para Deus através do temporal, através do material. Isto era propriamente o bom uso que a civilização cristã fazia nos conventos, mas também nas casas particulares adaptada então à vida de família, das coisas temporais e das coisas materiais.

Ora, acontece que uma das caraterísticas de minha formação de espírito – já que os senhores me perguntam a respeito dela – foi que Nossa Senhora me ajudou muito cedo a perceber, com a facilidade própria a um menino, o reflexo de Deus nas coisas – eu vou lhes mostrar depois como é esse reflexo – o reflexo de Deus nas coisas temporais, e não apenas nas coisas espirituais. Eu ia às coisas espirituais e deleitava-me. Eu não era por exemplo assim ultra, eu não tinha a tendência por exemplo de passar uma vida inteira dentro de uma igreja. Eu teria ficado muito contente, me teria honrado se isso me acontecesse. Mas eu não era assim.

Eu ia à igreja aos domingos para rezar, ou então quando tinha necessidade durante a semana, ou quando passava perto de uma igreja eu entrava, ou quando passava de bonde diante de uma igreja me chamava muito a atenção, eu tomava muito em consideração, analisava muito aquilo, etc., considerava muito, mas não era de muito ir à Igreja. Mas quando ia, eu deitava as antenas, para usar uma expressão inadequada ainda uma vez, deitava as antenas inteiras para o eclesiástico e sobrenatural com enorme complacência de minha alma, com enorme atração de minha alma, não tem dúvida.

Mas, ao mesmo tempo, nas coisas temporais, da sociedade material, eu também gostava enormemente de ver quando elas eram corretas, bem ordenadas. E parecia-me ver ali uma superioridade e um atrativo para minha alma, que depois mais tarde com o estudo e a reflexão eu compreendi que era uma semelhança de Deus. Não sei se está claro esse pensamento ou não. Eu dou exemplos.

Eu me lembro... que exemplos dar? Eu vou dar exemplos mais recentes. Quando eu fui a Paris, nas várias vezes que eu fui a Paris, em quase todas eu me hospedei num hotel chamado Regina. Esse hotel era um hotel de classe média alta. E todo o andar térreo dele, tanto quanto eu me lembro, todo o andar térreo dele era revestido de lambris de carvalho. Esses lambris de carvalho, um carvalho de um claro, meio dourado se poderia dizer, discretamente trabalhado mas muito bonito, e muito bem conservado. O carvalho seca e para ele não ficar com ar de pergaminho velho é preciso passar não sei que coisas de vez em quando, ou injetar não sei que coisa para que aquelas fibras não fiquem... em francês se diz ratatiné, não fiquem ratatinées é preciso passar aquilo. Aquilo era mantido rigorosamente bem.

Numa sala principal, para entrar nessa sala a gente subia um degrau e havia uma escrivaninha magnífica e alguma mobília de bom padrão. Para Brasil: alto luxo; para França, para Paris: classe média alta. Separada do resto por uma espécie de gradezinha. De maneira que a gente se via de um lado ou de outro, mas ficava dado a entender que aquela sala mais importante não era para qualquer bico, e que não era também para qualquer hóspede. E que alguns hóspedes deviam entender que eles deviam ficar no hall, numas poltronas muito boas que havia e que outros deviam entender que deviam ficar no salão principal. E estava acabado, não tinha conversa.

O elevador, uma gracinha. Se se fizesse uma bombonière exatamente como aquele elevador, a bombonière sairia um encanto. Era toda de carvalho e de cristal. A tal ponto erra de cristal, banco, porque o elevador era muito lento e o hotel tinha seis ou sete andares, banco para as velhas senhoras que quisessem sentar-se, banquinho que se levantava quando tinha muita gente, encostava assim na parede, suspendia, do contrário ia-se sentado. O ascensorista que guiava uma manivela velha – aquilo era do tempo de não sei quando, bem! – o elevador ia com uma lentidão solene, como que passando revista andar por andar, transparente o elevador, a gente ia vendo o que estava se  passando nos vários andares até chegar no andar da gente. Lá parava, o ascensorista abria aquela grade, depois abria aquela porta, inclinava-se e dizia: "Voilà, monsieur!"

"Merci", e ia-se embora. Ficava feita uma ascensão ... no hotel Regina.

Eles sabendo perfeitamente quem era quem e como devia tratar cada um. Atenciosos com todos, mas sabendo dar a cada um o que devia. Está bem. Conforme as horas do dia, a luz que entrava no hotel Regina era uma luz diferente, porque as janelas do hotel Regina davam para uma espécie de galeria, uma arcada, Rue de Rivoli, que é toda de arcadas de um dos lados, e então a luz que entra é uma luz meio tamisada, e o reflexo do carvalho variava de acordo com a hora do dia.

Como porta de entrada, aquelas portas circulares com batentes de cristal, a gente empurra e aquilo gira, e gira sobre um capacho, embaixo da porta tem uma vassoura de capacho, então limpa o capacho ao mesmo tempo que a gente entra. A gente sente assim num reflexo de cristais quando a gente entra. Entra, aquele hall distinto, aquelas luzes, aquela tranqüilidade, hóspedes que se movem, pessoas que falam baixo, apenas se houve o barulho, o zum-zum das conversas, e o elevador que geme para baixo e para cima, é a bomboniere que está mais longe ou mais perto.

Aqui tem um ambiente. É um ambiente todo ele mental, psicológico. Mas esse ambiente psicológico é constituído por dois elementos: pelos objetos materiais que estavam colocados lá, semelhanças de Deus, porque tudo que existe é semelhança de Deus, modelados pela civilização cristã, portanto ainda mais excelente semelhança de Deus do que o mero carvalho. O carvalho trabalhado com inspiração artística católica é mais parecido com Deus do que o carvalho que cresce no campo. É claro! O papel da arte é tornar o carvalho mais semelhante a Deus. Fazer aparecer excelências do carvalho que ele não têm quando ele jaz na sua rude casca. É evidente!

Então, aquele conjunto de objetos eram semelhanças de Deus. As pessoas que se moviam ali dentro eram imagens e semelhanças de Deus. Porque o homem é espiritual e parece mais com Deus, é uma imagem de Deus, não é apenas semelhança de Deus. Então o hall era uma semelhança de Deus. Os que estavam lá dentro enquanto próprios a estar ali dentro podiam ser imagens de Deus. No meio daquelas imagens e semelhanças de Deus, temporais! temporais! ali a minha alma via uma harmonia de caráter superior que depois estudando eu entendi o que era. Era exatamente o por onde aquilo parece com Deus. Nós não vimos Deus face a face, mas por esses vislumbres a gente tem uma idéia do que Deus é, e do que Deus não é. Porque Deus não é nada daquilo e é infinitamente superior a tudo aquilo. E entretanto aquilo tudo, cada coisa a seu modo espelha a Deus.

Então sentir a finura da sala, sentir a qualidade dos objetos que estão lá, enquanto objetos, enquanto a gente está lá como hóspede, sentir e perceber isto, pode e deve ser feito religiosamente!

E isto é verdadeiramente o papel que incumbe de um modo mais excelente a uma determinada classe social ou a um determinado tipo de instituições. São as instituições que Pio XII qualificava de instituições aristocráticas. É quando ela é católica, é nas coisas espirituais e temporais, mas especialmente nas coisas temporais, perceber nas coisas excelentes o que elas têm de excelente e saber relacionar isto com Deus. Compreender que são criaturas de Deus, e que aquilo de algum modo espelha Deus. Degustar aquele excelente não como quem quer ter um prazer que vai acabar na terra, mas como quem antevê uma coisa que no Céu será plena, inteira, celeste, magnífica.

Então, para dar uma imagem muito terra-terra, a pessoa entra naquela porta giratória com cristais. É um bonito modo de entrar. Como será nossa entrada no Céu? Certamente não haverá uma porta giratória com cristais. Mas o pulchrum que há em entrar numa porta giratória com cristais, esse pulchrum existirá naquele Céu que não tem portas, nem é giratório, nem tem cristais. Aquilo nos dá uma idéia da coisa.

Não sei se está bastante clara a noção, ou não? Então trata-se aí de analisar, também as coisas temporais e nas coisas temporais quando elas são excelentes saber ver uma representação particularmente rica, densa e fiel das perfeições de Deus. Deus fez as coisas para isso.

Bem. Isso é um bloco de idéias.

Outro bloco de idéias é o seguinte: Acontece que, até o Concílio Vaticano II, a Igreja conservou todos os seus aspectos materiais, culto etc., etc., com o esplendor que os senhores sabem. Um esplendor incomparável. Era o centro de toda ordem, de toda beleza, de toda dignidade, não só na doutrina e na moral, mas também nos aspectos materiais das igrejas, do culto, etc., etc.

E a Revolução não tinha atacado isso na Igreja de medo de produzir cristalizações. Ela tinha atacado na sociedade temporal. E enquanto a sociedade temporal ia ficando cada vez mais vulgar, mais reles, ostentando menos as semelhanças com Deus, a sociedade espiritual parecia majestosamente parada nos séculos. Mudavam as modas, mudavam os ambientes, mudavam as maneiras, tudo decaía, mas a Igreja parecia fixada na eternidade, imóvel na sua dignidade, e sem mudar em nada.

O resultado é que eu me lembro em várias épocas de minha vida notar a decadência dos costumes da sociedade temporal, dos mobiliários, a decadência dos ambientes, a decadência de tudo, continuamente, e notar o fixo da Igreja. E perceber que essa sensibilidade que eu tinha para os aspectos temporais me convidava a agir contra a Revolução especialmente na parte então mais atacada que era a parte temporal. Então, lutar contra as más modas, contra a falta de gosto, contra a vulgaridade, contra toda espécie de coisas que há. Lutar e lutar com indignação em qualquer classe social onde me encontrasse, e eu frequentei toda espécie de classes sociais, inclusive muito modestas, muito populares.

Eu conheci, frequentei, almocei, jantei, eu fiz campanha eleitoral no norte do Paraná, no norte do Estado de São Paulo, uma porção de lugares. Vi tudo quanto é lugar. Haveria exagero em dizer que eu vi tudo quanto é tugúrio, mas cheguei a ver tugúrios. Em todas partes eu notava falta de gosto e vulgaridades, como também coisas bonitas e elevadas, próprias a cada categoria que me faziam dizer sim para o que estava bem, vendo ali alguma coisa que vai na orientação de Deus. E não para o que estava mal, vendo alguma coisa que ia numa orientação oposta a Deus.

Assim eu presenciei, eu vi, quero dizer, objetos e coisas magníficas ao longo da minha vida, quer no Brasil, quer na Europa naturalmente, principalmente. Mas objetos e coisas verdadeiramente magníficas!

Nunca me foi possível ver uma coisa dessas sem sentir ali uma forma peculiar de beleza que era uma forma muito parecida com a virtude. Notem aqui a questão. A verdadeira beleza é parecida com a santidade. A verdadeira santidade é uma beleza da alma. A beleza da coisa material seria como uma santidade, entre aspas, é claro. A beleza da coisa material seria um como que reflexo, uma "santidade" da coisa material. E por onde há uma analogia entre beleza e santidade, por onde ao culto católico convém as coisas belas e não convém as coisas hediondas. É exatamente por isso.

E todas as coisas belas que eu tenho visto, Nossa Senhora obteve de Deus para mim esse dom, que eu não quero dizer que seja um dom insigne, mas é um dom muito contínuo, muito constante, de em tudo quanto é belo materialmente, quer na ordem dos seres inanimados, quer das plantas, quer dos animais, perceber aquilo que é excelente, e diferenciar daquilo que é digno mas comum, ou diferenciar daquilo que é apenas suficiente. E apreciar como refletem Deus.

Que idéia de Deus isso me dá? A idéia que Deus quis que eu tivesse. É apenas isso. Eu olho, vejo, é lindo, e digo: "É uma semelhança dEle, como uma obra de arte é uma semelhança do artista". Não é verdade que pela obra de arte eu posso conhecer algo do artista? É evidente!

Então, há um divino artista que tem de um modo absoluto e eterno aquilo que eu estou achando tão belo ali. Esses artistas que fazem as coisas foram criados. Há um artista incriado que é, e que pode tudo, tem tudo, é tudo, faz tudo, tem todas as perfeições, e que criou aquilo do nada, e deu àquilo aquela beleza, para que eu – porque é a finalidade – soubesse como é Ele, e assim me preparasse para o Céu.

Um exemplo eu não sei porque me ficou gravadíssimo na memória é Veneza. Mas não é a laguna de Veneza com aqueles esplendores todos, isso vai de si. Mas visitando um museu que há lá, nem me lembro bem que museu é, encontrei de repente numa vitrine, estava assim colocado num ângulo da parede, um cálice de Missa feito de ágata e de uma só ágata lavrada de maneira a dar um cálice, com espessuras diversas por causa do pé mais grosso do que a parte onde vai o liquido, etc., etc. E transparente.

Eu nunca tinha visto um cálice de pedra. Uma pedra transformada em cálice. Uma linda pedra com o jogo de luz da hora no momento, por uma coisa particular minha, eu compreendo que um outro não fosse tão sensível a isso e fosse mais sensível a coisas mais bonitas, isso é muito individual. Mas por uma coisa particular minha, aquilo me tocou profundamente. Por ser um cálice de Missa é certo. Mas é por causa da pedra também. "Oh pedra! oh Deus!"

Não sei se os senhores vêem essa ligação. Eu senti outro dia um verdadeiro choque quando me contaram que no Rio Grande do Sul há tantos cristais bonitos que formam como que esferas, esferas não, são ocas, e que às vezes os meninos quebram, e dentro há ametista e brincam com isso. Eu gostava tanto dos cristais, que quando era pequeno numa estação de águas aonde eu ia com minha família, eu andava pelo leito da estrada de ferro, à procura naquelas pedras de pontinhas de cristal que eu catava e depois eu trazia num caixote para São Paulo, cada vez que eu ia nesse lugar, para examinar os cristaizinhos. Umas pontinhas insignificantes de cristal. Como é que se pode pegar um tesouro desses, quebrar numa brincadeira de menino, e como é que o menino não pára de brincar quando vê que tem dentro uma ametista, é uma coisa que me é difícil compreender. Mas é ...

Então os senhores estão vendo, para voltar ao feitio de espírito, que uma pessoa pode ter um feitio de espírito, por onde preste muita atenção no concreto, no palpável e no material que tem diante de si. Mas é uma atenção que é analítica, é uma análise. E análise dupla: da coisa e de mim, da taça, do cálice de ágata, e do efeito que o cálice de ágata produziu em mim.

Esse efeito que o cálice de ágata produziu em mim, o cálice de ágata é muito bonito e dá glória a Deus. Uma das glórias que ele dá é de ter produzido numa criatura humana superior a ele a impressão que ele produziu. E o homem que se deleita com a ágata dá mais glória a Deus do que a própria ágata da qual ele recebeu o efeito. Não sei se está meio enrolada a frase?

E então olhar para mim, e ver-me enquanto consonante com a ágata, um movimento reto da minha alma consonado com aquela ágata e dizer: "Deus quando contemplou essa ágata depois de criada teve também consonância, dois seres consonantes com um terceiro são consoantes entre si. Deus foi consonante com essa ágata, eu sou consoante com essa ágata, nesse momento eu sou um pouco consonante com Deus". E isso estabelece uma vinculação, uma vinculação que me faz ter encanto com a ágata.

E então as coisas excelentes, a gente de um modo especial ama. Não sei se está claro isso?

Agora - eu termino com o que eu vou dizer agora. Me compraz, às vezes, imaginar o seguinte. Se uma pedra pudesse pensar o que diria ela de encanto vendo uma planta? Os senhores imaginem, por exemplo, o Pão de Açúcar. O Pão de Açúcar, de repente ter cinco minutos de pensamento e olhando para uma graminha e vendo a graminha crescer.

Ele, o grandioso e eterno paralítico que nunca se move, e que nada move provavelmente até o fim do mundo, é incapaz de crescer, de diminuir, de mover-se, ele não tem vida. A graminha cresce, o Pão de Açúcar ... e de repente ele perceber que no dorso dele, numa encosta dele nasce uma graminha, e ele estremecer de alegria pensando: "que honra para mim, eu carrego uma graminha". Seria natural. Como seria bonito se uma graminha, de repente, pudesse pensar, e olhasse para o Pão de Açúcar e dissesse: "Que colosso! Como eu sou pequena, mas eu vivo e ele não vive, viva as graminhas!"

Os senhores percebem que há entre um reino da natureza – o reino mineral – e outro reino – o reino vegetal – um abismo e que o inferior se pudesse contemplar o outro, superior, se extasiaria, desde que não houvesse Revolução!

Bom, agora os senhores imaginem que uma graminha pudesse contemplar um animal – e não é uma graminha, é a mais bela das rosas – pudesse pensar sobre a taturana que está prestes a se introduzir dentro da corola dela. E ela dissesse: "eu sou linda, eu sou perfumada, eu sou uma obra prima. Os homens quando me vêem me colhem, e as damas me osculam. Eles me oferecem para o que há de mais precioso, até para os altares. Eu sou a rosa. Essa taturana, se eles virem, eles jogam abaixo. E depois esmagam porque não gostam que exista. Mas um fato é fato: essa taturana se move, essa taturana sente. Eu não sinto, me cortam e eu não tenho conhecimento, me matam e eu não conheço... e a taturana não sabe mas conhece.

A linguagem filosófica é bem essa. Ela conhece que está ameaçada, tanto é que quando pode, foge. Ela conhece o que é contra ela. Como conhecer é mais do que ser belo, ó taturana, feia e imunda, que honra carregais!”

Agora, os Srs. imaginem que um leão pudesse contemplar uma criança que está aprendendo a rezar a Ave-Maria com a mãe. E que apenas tartamudeia. Um leão magnífico etc., etc. Vê aquela criancinha “Ave-Maria cheia de graça...” é o aperitivo do leão, ele estraçalha aquilo na hora que queira, talvez esteja até faminto.  Mas se ele pudesse compreender: “essa criança entende o que eu sou como leão, eu não entendo o que eu sou coo leão. Eu não entendo, eu não quero, eu sou um jogo das minhas vísceras que se movem em mim e que tocam para frente. A criança vai governar, eu não me governo, eu sou um impulso do meu instinto. Apenas nesse relâmpago eu tenho ... ó obra prima, eu me afundarei de novo no nada, na ininteligência...” O leão veneraria a criança. 

Vamos mais adiante.

Se um sábio pagão, inteligente, velho(?) experimentado pudesse ver numa criança batizada a inocência batismal que há lá, e a graça que está ali presente, e como a criança pertence ao Corpo Místico de Cristo que é a Igreja Católica, o velho se pudesse ver isso ele se desfaria em admiração. É um grau mais alto de vida.

Então, os graus de vida fazem com que cada grau imite a Deus melhor do que o outro. Mas a escala dos graus imita a Deus melhor do que cada escala. O conjunto é ótimo. E é bonito a gente imaginar isso quando vê panoramas. Por exemplo, o mar. O mar é magnífico, um dos aspectos é por isso, porque o mar é muito parecido com um interlocutor interessantíssimo, inesgotável e grandioso, que ao mesmo tempo é capaz de dizer coisas afáveis, encantadoras, num pontinho qualquer da praia, onde ele se enrasca num caramujo... e no outro lado o mar alto, que toca no céu. Tem zonas calmas, zonas que rugem, tem tudo dentro de um panorama marítimo e tudo é interessantíssimo.

Um interlocutor ideal seria assim. Quando fosse nos contar, por exemplo, a batalha que teve, e contasse: “levantei-me de manhã, o dia estava esplendido...” a gente veria nele a beleza do dia. “Preparei-me para a batalha com um grande ímpeto” a gente veria a beleza da mocidade. “E lutei...” a gente ouviria os clangores de todas as músicas de guerra da história. É interessante. Vale a pena. O mar é uma grande prosa. Ele imita uma grande mente humana.

Mas o homem mais imbecil vale mais do que o mar inteiro. De maneira tal Deus graduou as coisas. E fez entre as coisas esse abismo por onde a pedra que conhecesse a planta sentiria um abismo que é uma imagem pequena do abismo que vai da criatura para o Criador.  O abismo da planta para o animal é outra imagem desse abismo. Do animal para o homem, outra imagem desse abismo. Do homem não batizado, que não é da Igreja, para o homem batizado que está em estado de graça, outro abismo.

Esses abismos nos fazem medir o que Deus não é. Porque como Deus é diferente de tudo isso em cada coisa nos faz ver ... como Deus é. Então, nós aí parando tudo e dizemos: meu Deus, eu pensei em tudo, medi tudo, como sois Vós? Como terá sido Vossa Mãe? E como sereis Vós?

Agora, esses abismos a seu modo se repetem nas relações entre os homens. A seu modo. Porque os homens são todos fundamentalmente, essencialmente iguais. Enquanto a planta e o animal não são essencialmente iguais, os homens são essencialmente iguais. Mas nos seus acidentes eles tem desigualdades profundas. Essas desigualdades mais uma vez, repetem esses abismos.

Então, vamos dizer, uma pessoa – eu e aquele beneditino que ouviu falar sobre Cneo Pompeu. Ele falava com um tom de voz que reproduzia com uma gravidade teutônica – era um alemão – a impassibilidade dos séculos. A gente tinha a impressão do parade marche da história, os séculos desfilando, grandiosos. Se eu fosse falar, não falaria assim. Ele naquele lado é superior a mim. E eu devo ser ávido de contemplar esta superioridade porque me faz sentir algo, conhecer algo, aprender algo e nessa superioridade, deleitar-me. É mais uma coisa que existe na ordem criada por Deus...

E amar que os outros sejam mais do que eu, amar eu mesmo ser mais do que outro, e amar que os que são mais do que eu, amem a minha pequenez, e os que são menos do que eu amem a minha grandeza. Porque neste inter-relacionamento é que a criação espelha não só a Deus, mas a diferença que há entre homem e Deus.

Nota: Para aprofundar mais o tema, vide a obra "A INOCÊNCIA PRIMEVA E A CONTEMPLAÇÃO SACRAL DO UNIVERSO".

 


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