Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

A arte de bem conversar

 

 

 

 

Santo do Dia, 5 de maio de 1979, sábado

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No que consiste a conversa? Em que ela se distingue de uma conferência, de um discurso e de uma aula. Principais defeitos que prejudicam uma conversa. Considerações do ponto de vista sobrenatural a respeito dela.

Eis alguns dos pontos abordados em uma “reunião conversada” – em uma “causerie”, segundo a expressão francesa utilizada pelo Prof. Plínio nessa ocasião – e que será certamente de muito proveito a nossos visitantes.

 

Abaixo, algumas das fotos ilustrativas da obra "Guerreiros da Virgem - A Réplica da autenticidade - A TFP sem segredos", de Plinio Corrêa de Oliveira (EDITORA VERA CRUZ LTDA., Dezembro de 1985)

[...] O que vos dizer a respeito desse assunto? Tanto mais que eu esbarro com duas dificuldades fundamentais: a primeira é que, para se conversar bem, é preciso estar com uma espécie de disposição de conversa que consiste em que a gente tem muita coisa para dizer.

Então, o sujeito esteve quieto durante algum tempo, esteve represando as coisas que vinham à alma. Essas coisas se multiplicaram dentro do seu interior, umas pelas outras, e renderam juros; e a gente tem vontade de comunicar, tem vontade de dar.

Esse primeiro movimento da conversa é uma sensação de sobra, mas de uma sobre que se ficasse só com a gente, azedaria, e comunicada a outro, pelo contrário, daria alegria ao outro. Mas uma sobra curiosa! Porque enquanto se sente dentro da alma da gente o desejo de expandir algo, tem-se também vontade de receber algo. É uma sobra que não é um fastio. Tem-se superabundância e dá-se da superabundância que se tem.

Mas quanto mais se dá, mais se quer receber também. E essa sobra, essa generosidade no dar a sobra, comporta também um verdadeiro apetite de ouvir.

Daí o prazer do encontro. É sobretudo quando duas pessoas sentem, pelo imponderável dos contatos pessoais, do primeiro olhar, do primeiro timbre de voz, de um aperto de mão — sei lá do que — sentem que cada uma delas tem algo a dizer para a outra; e o que ela tem a dizer não é sobra para a outra e o que ela tem a receber não é sobra para ela. Pelo contrário, as perguntas se encaixam. Então, dá a vontade de conversar.

A vontade de conversar tem, portanto, como ponto de partida, um período de silêncio e um período, por causa disso, no qual se conversou pouco. Um período de silêncio, digo eu, porque há uma coisa curiosa: enquanto o silêncio dá vontade de conversar, a aula, ou a conferência — pelo menos a aula de tipo clássico e a conferência de tipo clássico, mesmo quando são muito bem dadasraras vezes dão logo depois vontade de conversar. Sai-se meio passado à máquina, passado a rolo pela aula ou pela conferência; sai-se com a idéia de que se foi ingurgitado de noções, e que é preciso respirar um pouquinho, e digeri-las, para depois ter alguma coisa a dizer.

O defeito da aula, sobretudo quando ela é muito substanciosa, é usar de um artifício pelo qual se entrouxa, dentro de uma hora, matéria de que o espírito humano teria fome durante cinco horas. De maneira que a gente sai com uma idéia, uma sensação de super nutrição — não sei se os senhores tiveram essa sensação, eu tive — não talvez porque o professor dissesse coisas tão nutrientes, mas ele obrigava a gente a comer, a ingerir na aula aqueles tablóides pré-fabricados com aquelas noções, com aquelas definições, com aquela concatenação, com aquela monotonia compassada de um homem que anda pela rua com passos iguais, quase de robot. Terminada a aula, ele nos obrigou a ouvir até a saber o que ele queria que ouvíssemos e soubéssemos.

Aquilo está vivo dentro da alma? A gente tem a sensação de que não. A aula sempre me deu a idéia de uma coisa indigesta, exceto quando eram aulas porosas; não eram blocos de metal compactos que a gente tinha que engolir, mas eram aulas porosas, nas quais o professor deixava uma porção de interstícios; em que ele lecionava menos, mas mostrava mais a sua própria pessoa e dava comunicação de sua sensação pessoal, à medida em que ele ia lecionando. E em que havia, então, uma interlocução com o professor sobre o tema, muito mais do que aquela martelada do tema na cabeça do aluno, até que o tema entrasse na cabeça e deixasse na cabeça aquela específica sensação de falta de ar.

Assim, ao menos, senti as aulas dos professores do remoto tempo em que tive professores. De lá para cá, a fidelidade às teses da RCR (livro “Revolução e Contra-Revolução”) me leva achar que nada melhorou. Não é provável, portanto, que os professores tenham melhorado extraordinariamente de qualidade. Eu vejo gestos frenéticos dizendo que não melhoraram. Eu acredito que não melhoraram. Mas acredito que o compacto da aula continuou.

Não sei se aconteceu isso com os senhores: eu tinha professores do curso secundário — sempre o curso mais prejudicado no Brasil. Daí nascia o universitário raquítico, mas vinha do germinativo incompleto do secundário. Eu tinha professores que, como todo mundo, davam as aulas sucessivas. Então, era religião, depois francês, depois inglês ou alemão, português, história, línguas, matemática etc. Batia o sino no Colégio São Luís, saía um padre entrava outro, saía um padre entrava um leigo, saía um leigo entrava um padre ou entrava outro leigo e a aula mudava da matéria. Todos os alunos se levantavam, rezava-se uma Ave-Maria no começo de cada aula, sentava-se de novo e o professor começava a matéria.

Eu tinha a sensação curiosa — não sei se essa sensação foi válida e efetiva para alunos de épocas posteriores e de países que não o meu, mas para mim era assim — de que esses professores que se sucediam eram inteiramente impessoais, e que o professor de história me falaria a respeito da revolução industrial do século XIX nos mesmos termos em que o professor de química ia falar de hidrato de carbono. Era o mesmo homem, com a mesma personalidade, ou seja, era ninguém. Era o mesmo ninguém, o mesmo anônimo que mudava de fita e que tocava uma outra fita. Mas eu não sentia o professor, eu não sentia a vibração do homem. Eu sentia a noção que entrava na minha cabeça, tomava conta de mim e metia dentro, como se eu fosse uma caixa de correio, aquela correspondência.

Ora, acontece que eu estou falando aos senhores do declínio do ensino – e um professor dá um depoimento sobre a morte do ensino. Mas estou vendo que ainda havia um pouco de ensino. Mas já eu lamentava naquele tempo a morte da conversa, que é o nosso tema.

Porque a conversa é bem diferente do ensino. E se o ensino é compacto assim, desde que o professor não se preocupe — eu tenho certeza que meu caro professor Gerardo tem essa preocupação de dar a aula mais bem conversada (acho até que ele nem saberia fazer de outra maneira), mais bem conversada do que propriamente compacta e martelada, [colocando] a martelo dentro da cabeça — bem, se eu assisti a morte do ensino, ou se peguei o ensino moribundo, eu peguei a conversa já morta.

No meu tempo, poucos conversavam. Não se sabia mais quase o que era conversar. Dos mais velhos do que eu, eles ainda conversavam, mas de uma conversa que os do meu (tempo) já não tinham critérios intelectuais para acompanhar. De maneira que os últimos que conversavam foram seguidos por uma geração que não sabia mais que apreço dar a uma conversa. Houve um hiato, houve um tombo, houve um vácuo entre a geração não tanto dos meus pais, mas dos meus avós e a minha geração. Essa geração foi a que ainda conversava; a dos meus pais estava numa transição e a minha quase já não sabia mais conversar.

E eu notava isso com muito pesar, porque exatamente a conversa dá vontade de pensar mais, dá vontade de comunicar mais. Ela é que é esse intercâmbio mental respirado, tonificante e verdadeiramente humano, que depois pode dar vontade de consultar num livro. As pessoas fazem uma idéia errada que a gente lê e depois conversa sobre o que leu. É uma bobagem. A gente conversa e depois lê sobre o que conversou. A conversa dá curiosidade de saber uma coisa ou outra. Na conversa os assuntos apresentam os seus pontos atraentes e dão vontade de se ir ao livro para pegar a coisa. Daí, então, vinha o gosto de conversar.

Como eu digo, os maiores do que eu, os meus avós — mais concretamente, eu não conheci meu avô, mas conheci muito minha avó e os irmãos de minha avó, que frequentavam muito a casa dela onde eu morava. Na minha família materna, sobretudo, morre-se tarde. De maneira que eram velhos ainda robustos, ainda lúcidos, alguns bem velhos, e que faziam entre si a conversa de outrora. Quando entrava alguém da geração de meus pais, eu já previa que ia entrar uma certa baixa de nível. Exceto um ou outro que tinha ainda na voz as cordas necessárias para tocar a lira da antiga conversa. Mas era um ou outro. Quando entrava gente de minha geração, exceto unzíssimo, ou outríssimo muito raro, eu já se sabia que o nível ia baixar e que já era outro tombo.

Isso foi uma diferença que me levou a apreciar a conversa em comparação com as aulas anônimas do colégio São Luís, e a ter ideia de que a conversa era a impostação natural do espírito do homem. O homem, habitualmente, quando não está só, está conversando. Só ou lendo, são situações excepcionais. O habitual é conversar.

Houve um fator que me ajudou extraordinariamente a mim para degustar a conversa. Esse fator foi um conjunto de revistas, da Université des Annales que minha mãe tinha escondido fora de meu alcance, no quarto onde eu fazia sesta. Era para eu dormir na sesta, não era que a revista fosse má, e eu tinha que dormir porque o médico recomendava. Mas assim que eu me pilhava na penumbra, eu me arrastava até o lugar — para ninguém perceber que eu estava andando — e pegava alguma coisa, e era um tipo de conversa francesa, conferência francesa, cujo título não tem uma tradução inteiramente adequada para o português. Eu vou dar daqui a pouco a palavra portuguesa adequada e os senhores vão ver que, ao menos no português do Brasil — talvez não no português de Portugal, mas no português do Brasil — não se encontra bem. Eu até desconfio que seja até uma incrustração de outro idioma do que propriamente do nosso idioma.

A palavra francesa é “une causerie”. “Causer” é conversar. “Une causerie” é uma conferência conversada, em que o orador fará uma gafe se os ouvintes todos não tiverem uma certa sensação de estarem conversando com ele. Em que não se corta uma distância entre o orador e o ouvinte, mas o orador sabe ora ele ir até o ouvinte, ora trazer ouvinte até ele, sem que ninguém mude de cadeira. E o ouvinte, sem perceber o que está se dando com ele, ora se sente muito engajado no que diz o causeur, o conversador, ora, pelo contrário, tem a impressão de que o conversador está no fundo da cabeça dele. Mas que cada um dos dois se sente ora um no fundo da cabeça um do outro; e durante a causerie as cabeças se visitam, as mentalidades se visitam. São visitas de personalidade a personalidade em tom de conversa, em que um só fala, mas os outros participam pelo olhar, pelo gesto, pela atitude, em que a gente entra em contato de alma íntimo.

 Qual é a palavra correlata a causerie em português? É a palavra palestra. Eu não sinto que a palavra “palestra” tenha o espumante da palavra “causerie”. Outra palavra francesa que vou ter de empregar é “souple” (flexível, n.d.c.). A “causerie” é uma forma muito mais “souple” do que eu suponho que seja a “palestra” italiana ou brasileira; a palestra italiana ou brasileira é uma conferência sem espartilhos. A “causerie” é uma coisa diferente: é um sumo “degagé” (desembaraçado, n.d.c.), uma suma “souplesse”, uma coisa que entretanto é toda cheia de categoria, e de espartilhos. Eu não saberia bem como apresentar, mas para dar uma idéia, seria isso.

Na Université des Annales, eram aqueles membros da Academia Francesa de Letras, portanto, os expositores sugestivíssimos, espumantíssimos, que faziam uso da palavra e enquanto eles falavam, os trechos indicados por eles, passavam por detrás deles artistas da Comedie Française, em trajes do tempo em que eles falavam, e iam desfilando. Se era uma senhora, fazia uma reverencia ao público; se era um homem fazia um grande cumprimento, com “donaire”, e saía para o outro lado. De maneira que ele evocava, por exemplo Francisco I, saía um ator da Comedie Française, com a mão aqui, como se usava no tempo de Franscisso I, com aquele chapéu um pouco baixo, aquela pluma, tomando ares; um grande cumprimento. Às vezes o público batia palma, porque o homem entrava tão na hora certa, que entrava no momento em que o conferencista estava falando do tema; ia para fora e entrava outro... Não pode ser comparado à televisão em nada; não pode ser comparado ao teatro, porque não é teatro. É “causerie”.

Outras vezes era algum músico, um cantor que cantava ou tocava alguma coisa, piano de cauda, som cristalino; naturalmente isso não figurava no texto, mas diziam: “Entrou aqui o ator tal, a atriz tal vestida assim” - às vezes fotografia dela ou dele - ou então “a festejada pianista madame tal, tocou tal peça” — às vezes eram peças que [não conhecia] porque essa forma de memória eu a tenho pouca: a memória auditiva.

Bem, isso me compunha uma idéia soberana da “causerie”. A conversa deve ser em tom de dois a dois, ou três a três, algo que de longe lembre a “causerie”. Nunca é e nunca deve ser um mero dizer expontâneo e desabotoado do que passa pela cabeça; nem deve ser a intimidade total e sem respeito, que é uma coisa repugnante.

Franqueza sem suavidade e intimidade sem respeito são lixo.

A franqueza tem que ser agradável, afável, respeitosa; e a intimidade tem que ser cortês e distinta. Do contrário não se pode suportar. Eu creio que isso que já estava muito decadente na minha época; nas épocas posteriores foram substituídos provavelmente pelo contrário.

Isso me dava, então, o gosto enorme da conversa entendida como eu estou dizendo aos senhores aqui. Essa conversa suporia, então, um tempo anterior de acumulação de atos, de flexibilidade, de recursos mentais para se poder dizer depois algumas coisas, e a vida que se levava naquele tempo era muito condizente com isso. Basta dizer aos senhores que eram numerosos os quartos de dormir em que além do mobiliário comum de um quarto de dormir — quer dizer, cama, mesa de cabeceira, alguma cadeira etc. — havia um sofá para a pessoa se deitar durante o dia e ficar pensando sozinha no próprio quarto. Agradável... depois, quando ia conversar, tinha muito o que dizer.

Ora, numa reunião que eu fizesse sobre conversa — eu não contava nem um pouco, nem um pouco, com esta reunião de hoje, me preparou a arapuca antes de eu chegar e os senhores a armaram com uma distinção e um charme todo inspirado por ele, mas acaba sendo que eu não tive nada que prepara o “causeur” hoje, porque eu tive um dia de estrangular, a ponto de que não vou fazer minha reunião de hoje à noite, depois desta aqui, vou diretamente dormir. E a razão é porque eu tive um “causeur” que me tomou uma grande parte do dia e outras coisas do gênero. Os senhores me pegam, portanto,, como os senhores talvez estejam notando, cansado e com a verve em menor ebulição, em menor efervescência do que o costumeiro. Daí também essa longa introdução para explicar que essa conversa sobre a conversa é uma conversa que terá suas limitações. Limitações de horário, bem entendido; limitação de verve e de apresentação pela falta do material humano disponível para tomarmos contato entre nós.

Eu fui, neste ponto, favorecido - como em tantos outros - pela influência de mamãe, pela simples razão de que ela era, fundamentalmente, uma “causeuse”. O prazer dela na vida era conversar, e ela conversava bem e conversava longamente, sem pressa, e com um charme envolvente extraordinário, que não é fácil de definir porque o charme dela sem dúvida tinha uma relação com o que ela dizia, mas tinha muito mais relação ainda com o que ela pensava, e era o “arrière fond” implícito do que ela dizia.

Ela não tinha o hábito - que não se dava no tempo dela e que não é agradável numa senhora de família - de espremer o seu pensamento para sair o último suco por meio da explicitação. Nada do que é espremer fica bem a uma dona de casa; essas casas em que as donas espremem dão vontade a todo mundo de sair, comida espremida, horário espremido, tudo contado, elas também estão com o tempo contado, tudo trota...

É muito mais interessante o longo estilo antigo... mundo de coisas na alma, a respeito das quais ela conversava muito mais pelo olhar e pelo timbre de voz e pelos gestos da mão, do que propriamente pelo sentido do que ela dizia.

Eu vou dar uma comparação que nos lábios de um filho pode parecer excessiva, mas é a única que encontro, exatamente porque tive um dia muito fatigante e tenho que pegar o material que passa. Em meu tempo de pequeno eu tinha uma sensação, que os senhores com certeza tiveram também, porque ela está na ordem natural das coisas, olhando à noite, sozinho, eu tinha uma sensação curiosa - uma sensação psicológica, porque minha vista indicava bem que não era assim - que o céu não era inteiramente fixo, mas que ele era como um grande toldo que fazia um ligeiro movimento assim, e que as estrelas todas e a abóbada celeste se moviam como um toldo circular, que ora se dilatava, ora se estreitava disfarçadamente, de maneira que a gente não pudesse apanhar a hora...

Ficava no espírito a idéia de que algo como isso havia - eu sei que cientificamente não é assim - mas eu tinha a sensação de que as coisas se passavam na minha vista e no meu senso artístico, como se fosse esse movimento do toldo que comunicasse um certo impulso de fole às estrelas, e que por causa disso as estrelas cintilavam, o céu todo estava numa certa pulsação, eu tinha impressão, então, que nessa hora as estrelas como que conversavam com a gente, que mudavam de posição, olhavam sem dizer nada. Eu sabia que tudo isso não é assim, sabia que isso não tinha nenhum fundamento na realidade, e eu dizia a mim mesmo: é verdade, mas isso não pode ser uma pura ilusão, isso tem qualquer coisa de real de algum modo.

Foi só depois de homem feito é que eu me pus no espírito a explicação da coisa. Deus criou o céu de maneira a causar, pelo menos a alguns, essa sensação, e se o céu não é o autor desse movimento, ele é autor dessa sensação, e essa sensação de que ele é autor tem como origem remota e suprema a Deus Nosso Senhor, autor do céu. Ele, criando o céu, quis que alguns homens, pelo menos, tivessem do céu essa impressão, e essa impressão do céu diz, portanto, algo de Deus, e é bonito porque ela não é fundada senão muito tenuamente na realidade, mas apesar de tudo ela diz algo de Deus, é o lado simbólico e metafísico dessas impressões que o céu dá.

Conversando com os senhores, eu noto em muitos uma certa surpresa e uma reação interna como quem diz o seguinte: eu aprendi tanto o contrário, que eu custo a me pôr na cabeça a idéia do céu que o senhor está dando...

Acho que são não poucos, inclusive, que pensam o seguinte: eu pensei que o céu fosse muito mais vazio, tivesse um farelo de estrelas jogado num vácuo rígido e inabitável.

É verdade que há uma multidão de estrelas, é possível que na medida em que o vácuo exista, exista entre elas o vácuo, mas no espírito humano, no olho humano não causam essa impressão, devem causar uma impressão diversa, e Deus quis causar essa impressão, e quis nos fazer esse lindo jogo, criador da realidade, criar na realidade algo que desse aspecto do irreal. Pode-se dizer que Deus é um “professor” infinitamente sábio e que faz nosso espírito transitar nessas sinuosidades, para nosso espírito mesmo crescer e se adelgaçar...

Então, eu tinha impressão que se conversava com as estrelas. Muitas vezes, quando eu conversava com mamãe, eu tinha impressão de estar conversando com duas estrelas, que me fitavam, e que pulsavam, e que me diziam coisas que não tinham uma relação muito imediata com as coisas que conversávamos. Mas eu tenho sensação também de que eu respondia a ela, e de que conversamos assim... sessenta e poucos anos, até o ano em que ela morreu, essa é minha impressão e aqui está o contributo que ela deu à conversa.

Eu, entretanto, nessas revistas francesas, em livros de história franceses etc., não custei a perceber que ainda no meu tempo de menino, de mocinho, as pessoas que sabiam conversar tinham uma enorme vantagem na vida; e que propriamente não há arte de viver sem a arte de conversar.

Por quê? Ninguém vive sozinho. Tem que conversar. E a impressão que a gente causa sobre os outros, o efeito maior ou menor vem, em grande parte, do que a gente diz. Evidente! Ora, se a gente diz conversadamente, o efeito é um; se a gente repete a caceteação do professor... se eu vou contar um passeio como um professor conta, que misturando H2O com não sei o que dá não sei o que... é uma narração de passeio extenuante, inaceitável. Isto não é de nenhum modo uma coisa aceitável. Relatório. Por mais que o relatório seja substancioso, eu o repudio como elemento de convívio humano.

Eu vejo - não censuro - vários dos senhores que lêem revistas geográficas. Mas aquelas revistas geográficas, a meu ver, são o contrário da conversa. São uma narração em que o homem passeia sozinho na natureza, sem ter nenhum nem um pouco a pulsação e o calor da alma do indivíduo que narra. O indivíduo falará das borboletas do Ceilão ou falará das lagostas de Recife com a mesma neutralidade de um guia “Baedeker”. Conversa não é isso. O que é a conversa, então?

Se a conversa é um meio insubstituível de viver; se a conversa é um meio insubstituível para pensar; se a conversa não é uma mera crônica; se não é um mero relatório; sobretudo se ela não é uma aula, o que é a conversa? Tanto mais quanto a conversa tem que ter algo de uma crônica, algo de um relatório e algo de uma aula. Sobretudo a “causerie”.

Eu estou tentando dar um ar de “causerie” a esta reunião. Os senhores estão vendo bem que hoje está mais conversado do que as reuniões anteriores. Os senhores estão vendo que tem algo de aula, porque eu estou o tempo inteiro ensinando coisas. Mas são ensinamentos que os senhores encontram em cada volta do caminho; não na reta. Na aula a gente vê... é uma avenida que tem no fundo um monolito chamado ensinamento. Aqui não. É um passeio onde, inesperadamente, se encontra um ensinamento. Evidentemente é mais acessível, é mais aceitável. Mas tem algo de ensinamento, tem algo de relatório.

Eu estou fazendo aos senhores um inventário de modo de conversar, o que é propriamente um relatório. E tem algo de uma conversa.

O que é a conversa?

Eu agora estou agindo especificamente como um professor que deu a introdução e localizou o tema. E sem os senhores perceberem, estão conversando e assistindo uma aula. Eu lhes mostro agora a aula. Essa é a “causerie”.

O que vem a ser, então, propriamente uma conversa? A conversa é – vou usar uma palavra muito feia, porque está poluída por uma porção de significações materiais, e quanto mais uma palavra participa da técnica da matéria, tanto mais ela é inadequada para explicar as coisas do espírito – a conversa é um intercâmbio. A conversa é um intercâmbio de duas personalidades que estão juntas e que falam no momento de uma matéria que a ambas está interessando, e que interessa porque tratada pela outra parte. Entra tudo isso junto.

Quer dizer, se eu estou conversando sobre matéria interessante, fazendo intercâmbio com outro que me diz coisas que, ditas por ele, não me interessam, aquilo é uma conversa deformada. A conversa verdadeira deve fazer com que aquilo dito por aquele, me interesse a mim; porque ele põe uma certa nota dele que faz com que eu goste do que ele está dizendo. Isso é um elemento fundamental da conversa.

De onde há até gente muito inteligente, cacete para conversar; gente muito instruída, que é de morte para conversar; e há gente que nem é muito inteligente, nem muito instruída, mas que conversa bem. Porque dito por eles, a gente vê não o tema, mas o indivíduo.

Aqui eu mostro, portanto, estou voltando para a aula — depois de ter definido o que é conversa, eu estou mostrando o que é a plenitude da conversa. Não é um intercâmbio de informações, nem sequer de impressões, mas é ao mesmo tempo um intercâmbio de cognições do próprio indivíduo; o indivíduo se mostra e o outro se mostra também. Eles se mostram no que têm de afim, ou no que têm de desafim.

De desafim também, porque há pessoas que são tão interessantes que é agradável brigar com elas. Até a briga é agradável. A pessoa diz um ultraje ligeiro, vivaz, que penetra como uma seta; a gente acha interessante aquilo e responde, manda um boomerang por cima dele, ele pega com jeito. E à medida em que a gente está, talvez, até irritado, a conversa toma o ar de uma esgrima. E é agradável, interessante fazer uma esgrima.

E sempre misturando a “causerie” com a aula, eu agora dou um exemplo que, nessa época em que os senhores vêem tão pouco conversar, um exemplo que os senhores podem aproveitar.

Os senhores têm bem a idéia do que é um jogo de esgrima. Sabem bem que uma pessoa assistir uma partida de esgrima jogada segundo todas as regras, pode ser cacete se os dois esgrimistas aplicarem a regra sem um contributo pessoal. Mas se cada um tiver um contributo especial, um certo modo de espetar, um certo modo de defender, um certo modo de empostar a cabeça, ou de olhar, ou de saltar para trás, ou de mover o braço de um certo modo etc., aparece a personalidade. E nessa manifestação mútua de personalidade, nessa luta de personalidades, quase o florete passa para a segunda linha e a luta de personalidade passa para a primeira.

Então, para a gente ter a arte de conversar – e devo dizer isso para evitar o desânimo que uma conversa dessas pode dar; porque vejo bem que isso pode interessar, pode atrair, mas pode dar um certo desânimo: “O que vou tirar de mim para pôr nessa panela? Eu não tenho isso, como vai sair isso de mim? Isso não terei nunca!”. Eu tenho medo que algum pense isso. Então, eu quero animar.

Há, portanto, no fundo da arte de conversar - vejam os senhores como essas coisas são bonitas – há um certo preceito da moral católica. Para o indivíduo conversar bem, ele precisa ter uma atitude de alma — portanto, toda ela interna – a respeito dos outros que faça com que a alma dele seja interessante para os outros, do contrário, ele nunca será um bom conversador.

Qual é essa atitude de alma?

Eu vou descrever na superfície. É uma alma que, quando vê outra e sente uma afinidade, uma homogeneidade, ou uma heterogeneidade harmônica, se regozija. Quando vê, pelo contrário, uma dissonância, se irrita. Mas é uma alma que vibra quando vê outra alma. Esse é o ponto de partida do verdadeiro “causeur”. Ser indiferente às almas, não senti-las, não percebê-las, não vibrar com elas, torna a conversa impossível.

Eu mesmo estou conversando com os senhores, e vejo que enquanto os senhores conversam comigo, ao menos uma grande parte dos senhores têm interesse em conhecer a minha alma como ela se mostra ao longo dessa exposição. Mas percebem também que eu entro no fundo do olhar de cada um com interesse, com vontade de conhecer, como coisa que a todo momento tem uma novidade para me dizer, e que eu gosto de conhecer. A afinidade, ou a heterogeneidade harmônica me deleita.

É possível que às vezes os senhores vejam qualquer coisa de interrogativo nos meus olhos. O que eu vi dentro daqueles olhos? É alguma coisa que me soou errado. Mas também aí eu não sou indiferente. Eu sou interrogativo. Quero ajudar a corrigir e - conforme for - empurrar um pouco para corrigir. É claro.

Isso faz a nossa conversa.

A conversa supõe, então, esse estado de alma por onde, eu vendo uma alma, eu não pergunto o que a alma está achando de mim; eu pergunto o que ele está achando do tema que eu estou tratando. É a primeira coisa.

Eu creio que os senhores nunca surpreenderam um olhar meu em que eu estivesse querendo ver o que os senhores estão achando de mim. Porque eu espero em Nossa Senhora que eu nunca tenha esse olhar. Absolutamente! O que estão achando do tema, certamente. Mas é do tema. Não é do modo que eu estou expondo, nada disso. O que acham do tema, da tese, se a argumentação está convincente, se a exposição está atraente, isso sim. Mas é só. Fora disso, não!

Os senhores notarão que há, de minha parte, todo o desejo de interpretá-los, de explicá-los. Mas um desejo benévolo, que completa o que os senhores não conseguem dizer, que não procura supor o que não está afirmado, que procura conversar segundo os senhores vão pensando. Quase que eu diria que um auditório é ele também como um céu que pulsa. E ou a gente acompanha a pulsação de cada estrela, ou não houve “causerie”, não houve conferência. Quase eu diria isso. Assim é que o auditório, a meu ver, deve ser visto.

De outro lado, é preciso que meu interlocutor esteja na mesma disposição. Se ele está pensando no que ele deve aproveitar de minha conversa para filar, para fazer uma conferência que ele vai fazer, ele se põe a pique como interlocutor, ele se desqualifica. Se está querendo aprender o “pulo do gato” e dizer “vou ver como Dr Plinio faz conferência para eu fazer também”, ele se desqualifica...

Ou estamos, um e outro, prestando atenção no mesmo tema, por amor ao tema, e na alma do outro, por um amor desinteressado a todas as almas que existem e, portanto, também à do outro, ou não fazemos uma verdadeira “causerie”; não há conversa.

E é por causa disso que se cumpre na conversa um preceito do Primeiro Mandamento ou, se quiserem, a síntese dos dois Mandamentos: Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo por amor de Deus. Porque isso é propriamente interessar-se pelo tema enquanto tema, é amar a Deus, autor de tudo quanto existe e, portanto, de todos os temas. Interessar-se pela alma dos outros pelo que Deus pôs nelas e porque aquela alma é uma imagem de Deus. E eu olhando a alma de cada um dos senhores estou vendo um pouco de Deus. E, no fundo, nós olhando-nos uns aos outros, estamos fazendo oração.

Se há esse estado de alma, a conversa existe. Se não há esse estado de alma, é extraordinariamente difícil que a conversa exista. Eu não creio que ela exista.

Ela acumulou os tesouros dos quais ela haveria de nascer, ela acumulou isso durante a Idade Média. Mas os nossos venerados medievais não me parecem que soubessem conversar bem. A conversa começou a nascer depois deles, como certos botões de rosa que desabrocham depois da rosa colhida, desabrocham no jarro. O jarro foi a Europa; a rosa foi esse amor de Deus que ficou em estado de tradição. Deus - hélas! - cada vez menos presente, e o egoísmo cada vez mais presente. Mas também, por causa disso, a conversa foi caindo, caindo e hoje morreu. E na época do egoísmo, ninguém mais conversa.

A tal ponto que uma vez, eu me lembro que me encontrei com um brasileiro na Europa (não quero dizer se era ou não do Grupo) – ele era ainda muito novo – mas por certa razão de cortesia, estávamos em Roma, eu tive obrigação de convidá-lo para um almoço. E fomos sós para um restaurante, um lugar de Roma chamado “Galopatório” — que era para galoparem os cavalos, muito interessante, circular. Veio o garçom, nos ofereceu os pratos, eu fiz minha encomenda, ele fez a dele. Comecei a conversar um tema, morria; outro tema, morria também. Eu pensei: sim, senhor! Que almoço fracassado. Eu não estou conseguindo interessar. Em certo momento, ele me perguntou: Dr. Plinio, o senhor não quereria entrar logo de uma vez no tema que deve ser o tema de nosso almoço?

Eu caí de algumas nuvens, mas habituado a cair das nuvens, eu já caí de pára-quedas, eu estava percebendo que ia sair a “mãe da natureza.” Mas eu perguntei: qual é o tema do almoço? Ele disse: Não, eu suponho que o almoço tenha um tema. Eu disse: Não. Eu vim aqui para conversarmos juntos, e comer. Ele disse: não, perdão. Na minha família não é assim. Na minha família, quanto se convida uma pessoa para almoçar ou para jantar, a gente tem um negócio a tratar. Ou é negócio de dinheiro, ou é negócio de política, ou é negócio de religião que seja. Então, a gente diz “vamos conversar de tal coisa e, assim, até o fim do almoço a gente trata dessa coisa”.

Eu disse: Meu caro, nós erramos de família. Na minha família é exatamente o contrário. A gente, no almoço ou no jantar, não trata de nada que tenha ar de negócio, que tenha ar de política, que tenha ar de nada. A gente flana com o espírito como uma borboleta pelo ar. É fora do almoço ou do jantar que a gente se tranca numa sala e diz: agora vamos ver quando sai a escritura pública! Ou então, quanto você paga, ou eu pago. Ali é outro negócio. Mas para isso há uma sala própria chamada “escritório”. Não se conversa isso em qualquer lugar. Vamos para o escritório. Já o mobiliário do escritório é... na cabeça e ali a gente trata do que tem que tratar. Se é um assunto de cultura etc., tem o living, tem a sala de visita. Para isso uma casa tem várias salas.

Eu tenho receio que alguns dos senhores tenham sido formados nessa escola, ou na escola da televisão. Não se trata de nada e vê televisão. Deixa a televisão tocar e ninguém comenta nada.

Isso posto, colocado o ponto de partida da conversa - o espírito católico - que leva então a querer tratar do tema por amor ao tema e conhecer o que conversa por amor a alma de quem conversa; não é só a alma; é a alma no total, enquanto individual, mas enquanto a região de onde ele é, a cidade donde ele é, a família de onde ele é, o país de onde ele é; a gente conhece essas características e fica reconhecendo, fica notando.

Há pouco o prof. Gerardo levantou-se. Eu já tantas e tantas vezes estive com ele. Levantou... eu comecei a notar o cearense, o nordestino, o característico modo de falar, no que é e no que não é semelhante ao pernambucano, o que não é do paulista, a verve como é. Por exemplo, o otimismo. O pernambucano é raras vezes otimista. Meu pai o era enormemente. O cearense é otimista de um jeito curioso: o cearense não espera que vá tudo correr mole, até fica desapontado com a idéia de correr mole, mas ele acha que tudo dá certo no fim. Então, toca a vida alegre.

Há outras modalidades, há outros modos de ser de todas as partes. A gente vai encaixando tudo enquanto conversa, e vai achando interessante, vai achando agradável. É a conversa!

A conversa supõe que, tratando dos assuntos da Igreja, entre sempre um outro “Interlocutor”. E esse ponto eu jamais insistiria suficientemente sobre ele. Quando dois ou mais estão conversando sobre assuntos da Igreja, ou da civilização cristã, entra um Interlocutor infinito que conversa consigo mesmo pelos nossos lábios: é Nosso Senhor Jesus Cristo. Porque essa é uma formal promessa dEle: “Quando dois ou mais estiverem reunidos em Meu Nome, eu estarei entre eles”.

Ele não disse: “Eu estarei na maior parte das vezes”. Ele disse: “Eu estarei entre eles.” Quer dizer, se a gente toma isso em consideração, o maior atrativo da conversa de católicos, que estão conversando enquanto católicos sobre um tema que não é necessariamente um tema religioso, mas é visto do ângulo católico - aqui é que está a questão! – se é assim a conversa, então o grande Interlocutor é Nosso Senhor Jesus Cristo.

De que maneira?

A graça, participação criada na vida divina, a graça que Ele obteve para nós derramando Seu Sangue infinitamente precioso no alto do Calvário, essa graça que vive em nós porque Ele nos deu quando fomos batizados, ao pé da letra se desenvolve e floresce enquanto a gente conversa. E se torna mais atuante. Mais atuante de tal maneira que eu posso conhecer, além da graça que está em mim, a graça que o outro recebe. E o outro, conversando comigo, conhece a graça que eu recebo. Por uma particular atração que o tema exerce, por um particular interesse, por uma consonância, por um “flash”, por uma consolação, por um estímulo, por um entusiasmo, uma comunicação de alma que é Nosso Senhor fazendo a graça dEle ser uma enquanto está em mim, e outra enquanto está em cada um dos senhores. Ela em todos é uma participação da vida divina, mas é como fogo. Os senhores imaginem duzentas lamparinas acesas; não terão aqueles movimentos ao mesmo tempo, mas é o mesmo fogo brincando com duzentos pavios. Assim é a graça em nós.

E nós não nos damos bem conta muita disso, e nem é normal que a gente se dê conta disso. A gente se dá conta muito confusamente. Pela fé, pela doutrina da Igreja a gente sabe que é assim. A gente se dá conta confusamente, mais ou menos assim.

Mas quando às vezes a conversa aumenta de dimensão, a gente não se lembra que é Nosso Senhor que está falando mais ricamente no fundo da alma, de um ou de outro. E, de repente, quando uma conversa cessa — não sei se tem acontecido com os senhores — a gente tem impressão de que cessou algo que não devia cessar, que deveria continuar.

Por exemplo, agora se viessem dizer, neste momento: Dr Plinio estão chamando o senhor num telefone internacional, urgentíssimo – eu dissesse aos senhores “Salve Maria!”, fosse telefonar e depois fosse para casa – os senhores não ficariam com uma sensação de inacabado? E uma impressão de que estão voltando para um terra-a-terra do qual tinham saído sem perceber? Mas ao qual não voltam sem estranheza? Não é mais ou menos isso?

É exatamente como age a graça. Na hora dela nos falar, ela vai falando aos poucos, tão deleitavelmente que a gente não percebe até que ponto está se habituando a ela; quando ela emudece, a gente diz: “Mas que vazio! como é uma coisa dessas!”

Na hora do vazio, a gente percebe quem estava falando. Os senhores vão ver aqui uma subtileza linda. É como os discípulos de Emaús reconheceram Nosso Senhor na hora de Comunhão. Ele rompeu o pão e distribuiu. “In fracctione panis cognoverunt eum”. A conversa perfeita está descrita ali. Nosso Senhor aparece no meio deles, que estavam conversando e andando na estrada, a pé, rumo a um lugarzinho chamado Emaús.

A narração está feita com todos os pormenores. Nosso Senhor pergunta a eles do que estavam falando. É o tipo da coisa que faz o bom conversador, que não muda de conversa de acordo com o que está na cabeça dele, mas entra na conversa dos outros. Eles então dizem: “Mas como? Tu só és peregrino em Jerusalém e ignoras essas coisas?” Estavam falando da morte dEle, falando de que Ele havia desaparecido...

Então, Ele os fez conversar, e enquanto conversavam, o ardor deles ia subindo. Era Nosso Senhor que falava a eles pela boca, mas internamente pela graça preparava as almas para receberem o que Ele, pela boca, dizia. E levava um a dizer ao outro e outro a um, na presença dEle, aquilo que formava o trio perfeito. Era a conversa.

Quando chegaram a Emaús a gente percebe, na narração, que eles estavam embevecidíssimos, mas que quando Nosso Senhor rompeu o pão – Ele celebrou uma Missa, fez a Consagração – aí os discípulos reconheceram que era Ele. “Ele que tinha morrido, Ele está aqui! Ahhh”. É propriamente a perfeição. No auge da conversa, conheceram-nO inteiro. A conversa é uma revelação progressiva em que, no seu auge, o Interlocutor aparece de corpo inteiro.

Nosso Senhor fala em ir embora e eles, embevecidos, querem que Nosso Senhor fique. Mas não ousam dizer “está tão agradável, fique conosco.” E arranjam um pretexto: Mane nobiscum Domine, quoniam ad vesperacent — “Senhor, ficai conosco, porque está ficando tarde, está anoitecendo.” Cada um sai por onde pode... Nosso Senhor é Deus. Que diferença faz para Ele o anoitecer? Era um modo de dizer outra coisa: “Vêde, Senhor, nós não queremos nos separar de Vós, porque vossa presença é igual a nenhuma. E nós Vos damos um pretexto, porque nós somos tão toscos que não sabemos sequer formular o verdadeiro motivo. Aceitai isso mais como um gemido do que como um argumento. Diante de vossa sabedoria, o que é esse argumento? Mas diante de vossa misericórdia, o que será esse pretexto?”

É a conversa perfeita. Nosso Senhor o que fez? Sumiu, desapareceu. Acabou. Eu estou notando a surpresa de um e outro. É assim. Porque Ele tinha dado a eles o que era necessário para aquela fase da vida espiritual deles; tocava a eles agora se lembrarem.

Os senhores estão vendo o que aconteceu. Eles foram logo procurar os Apóstolos para contar o que houve. E, sem querer, se transformaram em conversadores. Começaram a narrar a conversa que tiveram com Nosso Senhor. Podem imaginar o “jornal falado”. “Eu encontrei a Ele, e me disse isso e disse a ele outro isso. Em tal lugar”.

Os senhores podem imaginar os ensinamentos de Nosso Senhor ao longo da estrada! E provavelmente a propósito de um bichinho que cruzou a estrada, de uma ave que voou, de um lago que apareceu no caminho, não sei de quanta coisa... A propósito de tudo falando com eles. É o modelo da conversa, porque é o modelo do amor de Deus.

É Deus amando-Se a Si próprio, amando os homens infinitamente, e a Si mesmo amando pelas almas dos homens. Ele acendia nos homens o amor que Ele queria que os homens tivessem para com Ele. É o circuito perfeito.

Isso a graça faz entre nós, católicos. Há momentos em que a gente tem a impressão que a graça age de tal maneira — mas é Ele que age, porque Ele é o Autor da graça – que se tem a impressão de que um terceiro está presente, maior do que todo o mundo, mas que está no ar, não se sabe, como é, como não é. Mas é uma coisa que se, por exemplo, amanhã arrebentasse a “Bagarre” e os senhores se vissem isolados, um no Alasca e outro no Pólo Norte, e houvesse uma comunicação telefônica e um pudesse dizer para outro: “Lembra-se? Nós dois estávamos lado a lado na última reunião da TFP, antes da Bagarre. Lembra-se da conversa dos discípulos de Emaús? Eu acabo de reler no momento, e me lembrei de você que estava a meu lado.”

Os senhores dirão: “Ah! o auditório de São Miguel! Ah, aquela convivência! Ah, o que é o viver católico!” Não iriam ter saudade desse mundo aí fora...

É sábado à noite, os lugares maus de diversão estão regurgitando de gente da idade dos senhores. As camas estão regurgitando de gente de todas as idades. Entretanto, eu estou alegre aqui e julgo que os senhores estão também, muito mais do que eles. Não tenham a ilusão. Não digam: “Dr. Plínio fez uma conferência entretenida.” Digam outra coisa:Dr. Plinio fez, talvez, uma conferência entretenida; mas nós estávamos sob as vistas de Nossa Senhora, num ambiente sacral, movidos pela fé católica, apostólica e romana; e por isso a graça de Deus chamejava entre nós. E era um só fogo acesso em muitos pavios. E nós todos nos alegrávamos nisso”.

Então, assim está descrita a conversa, está descrita esta “causerie”.

Agora, poderão, para outra reunião, se eu me lembrar, vir as reminiscências das conversas. Aqui está a teoria da conversa.

Muito de propósito eu tratei com os senhores de dois temas: eu tratei da teoria da conversa, mas tratei também da teoria do convívio. A gente convive assim, animado por esse amor de Deus e por esse amor do próximo. É assim que a gente convive. Aí todo convívio é agradável.

Façam o convívio revolucionário, e o convívio é detestável. O que quer dizer que quando um convívio não é agradável tem algo de revolucionário.

Eu vou lhes dar, para terminar a reunião, a prova dos noves-fora. Os senhores imaginem uma conversa com um homem que está no estado habitual de violar, ao mesmo tempo, todos os Mandamentos. É, ou não é uma conversa insuportável? Esse homem mata, rouba etc., não se tem o que conversar com ele, é um pesadelo!

Os senhores imaginem a conversa entre duas pessoas que estão no estado habitual de cumprir eximiamente os Dez Mandamentos. É o céu.

Talvez valha a pena na próxima reunião a gente ler, mimeografar e trazer, a conversa de Santo Agostinho com Santa Mônica, na hospedaria de Óstia.

Aí nós comentaremos o nervo vital da conversa, que é a gente estar unido a Nossa Senhora.

Boa conversa é aos pés de Nossa Senhora, em cujo coração vive Nosso Senhor Jesus Cristo, é a conversa à luz do Divino Espírito Santo. O resto no fundo, meus caros, é fraude, é vaidade e aflição de espírito.

Aqui está acabado, nós podemos nos recolher. Vamos encerrar.


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