Plinio Corrêa de Oliveira
O alerta dado há mais de 40 anos: rumo a uma nova religião
Santo do Dia, 14 de outubro de 1978, sábado |
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A D V E R T Ê N C I A Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor. Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
Meus caros ... é o que sem muita dificuldade eu creio que demonstrarei sem muita dificuldade, ao longo dessa exposição, em que a pedido vosso, eu darei alguma coisa a respeito da religião nova. O que supõe naturalmente um conhecimento exato, antes de tudo, do que é uma religião, do que é uma doutrina, para que nós possamos compreender bem exatamente do que é que se trata. As noções a respeito de religião estão tão deformadas e estão de tal maneira minguadas, que a pessoa pensando que a religião nova não é senão um ponto novo, algo de diferente daquilo que se conhece como religião antiga, não entende bem a magnitude e a importância telúrica e extraordinária das transformações que vão se operando entre nós. Das transformações para o desastre, para a ruína, para o desabar completo. Mas enfim das transformações. Assim, me parece que nós agiríamos acertadamente se nós começássemos a pôr claras algumas noções, e depois reunindo essas noções, fazer delas uma idéia geral. E para pôr claras todas essas noções nós deveríamos fazer uma primeira observação tirada da experiência quotidiana, e que é a seguinte. Os senhores tomem a história de um menino, não entendido de nenhum menino que está aqui. Ou ao menos como essa história teria sido se os meninos ou os ex-meninos que estão aqui tivessem sido todos contra-revolucionários desde o começo. Não é, portanto, a história de uma criança contra-revolucionária que eu tomo, mas é uma história de uma criança que hesita nos primeiros passos, miseravelmente, entre a Revolução e a Contra-Revolução. E quando ela hesita entre a Revolução e a Contra-Revolução, quando ela está, portanto, nos pantanais da semi Contra-Revolução, ela está de fato na área da Revolução. Os pantanais da semi Contra-Revolução são da área da Revolução. Então eu vou imaginar uma criança que pertence a esses pantanais. Os senhores imaginem uma criança, mas uma criança que está começando, com três, com quatro, com cinco anos de idade, ela está começando a ser sujeita a um primeiro regime, que é o regime comum desta ordem mínima pela qual quando criança se levanta lava-se, e depois veste-se, e depois toma seu chá, ou seu café, e depois vai brincar no jardim. Uma criança, portanto, que ainda não estuda, mas que está entregue apenas aos primeiros movimentos da vida, e que com eles vai se manifestando. Nós podemos bem imaginar o que se dá com tantas crianças nessa ocasião e que é que a criança sente uma porção de impulsos que estão em desacordo com aquilo que a razão mandaria fazer. Por exemplo, é de acordo com a razão que a pessoa se levantando, reze. Porque é o primeiro minuto de sua vida, de sua existência naquele dia, a pessoa deve consagrar esse primeiro minuto a Deus, que é Aquele a quem se dirigem todas as nossas homenagens, nossas adorações por meio de Nossa Senhora. Então se deve rezar. Para rezar, deve rezar de joelhos. De joelhos na própria cama, ou de joelhos no chão, mas deve rezar de joelhos. Mas, não só isto, mas a rezar de joelhos, ele terá que rezar ou no chão ou na cama, ele deverá adquirir um hábito. Não pode agir de acordo com a fantasia. Mas se ele está habituado a rezar todos os dias de joelhos na cama, ajoelha-se na cama e reza. Se ele está habituado a rezar todos os dias no chão, ajoelha-se sobre o chão e reza. Mas faz a coisa segundo uma determinada ordem. Depois, a criança deve lavar-se. As condições do corpo humano depois de uma noite inteira que se passou, transpirou etc., etc., exigem que a pessoa se lave e se apresente limpe. Depois a criança tem que tomar o café, depois tem que brincar. No brinquedo tem que correr, não pode ficar parada porque precisa fazer exercício. Depois vem a hora do almoço. Na hora do almoço ela não pode começar pela sobremesa porque gosta mais da sobremesa, mas tem uma ordem lógica na qual a comida deve ser apresentada. Se não ela come logo toda a sobremesa nas primeiras garfadas e depois não quer almoçar. Depois, porque é de acordo com a lógica que a coisa mais doce fique para o fim. Porque é aquela que mais atrai e que pode desviar a atenção, é preciso que as coisas mais nutrientes atinjam o organismo com aquela chicotada vital de um bom consomé ou de um bom beef-tea para depois passar através de alguns pratos, e à sobremesa que é a parte mais delicada entre dentro da linha do supérfluo. O supérfluo do qual dizia um péssimo autor com ótimo espírito, "o supérfluo, esta coisa tão necessária", dizia Voltaire. Ele aí entra e faz essa coisa tão necessária com um pouco de fantasia. A sobremesa é o elemento fantasia no almoço. Bem! acaba a fantasia e precisa fazer sesta. Eu descrevo aqui aos senhores apenas uma parte do dia da criança. Eu poderia percorrer o dia inteiro da criança e chegar à noite, em que a criança perdeu toda e qualquer distância psíquica, está engolfadíssima com o que se passa em torno dela e não quer dormir. E então toma a atitude péssima que tomam muitas crianças: quando não agüentam mais, dormem sentadas no lugar onde estão passando as coisas às quais elas não se querem dissociar. Então são enormes sonos durante os quais a criança ouve restos de prosa, restos de conversa etc., até que é levada para a cama mais morta de sono do que cansada. E de manhã não quer levantar. E assim a vida vai rolando. Eu conheci um caso muito pitoresco e quão significativo de uma menina, no tempo em que minha sobrinha era pequena, que foi a uma peça de marionetes, em casa de minha irmã. Eram crianças convidadas por minha sobrinha. De repente, vem alguém e chama a uma dessas meninas para ir embora porque o pai estava lá e a ia levar para jantar. A menina levanta e diz: "Olha pode parar porque agora vou embora!" Os senhores estão vendo bem o que tem na cabeça: "Se eu vou embora prefiro que acabe, mas eu não quero que as outras crianças fiquem se divertindo e eu vá embora. Então pare isso!" Isso é o movimento de mil crianças. Pare o mundo de onde eu saio, porque do contrário eu quero ficar dentro! Bem, desordens de todo tipo. Indicam um desencontro entre os impulsos, mas há uma quantidade de impulsos que o homem tem, e a ordem que a vida deve ter. E um combate entre o impulso e a ordem. Na aparência, isso se resolve da seguinte maneira: a criança é habituada à força a fazer as coisas como devem ser. Ela compreende que não adianta resistir porque obrigam. Então de manhã, por exemplo, a criança quereria sair correndo para o jardim. Não! tem que rezar. Não está com vontade de rezar? O pai, a mãe, a governanta obrigam: "Agora tem que rezar, agora reze, repita a oração, ponha às mãos, olhe para o Crucifixo, olhe para Nossa Senhora, agora desça da cama!" Bem, assim vai quebrando as fantasias da criança e a criança à força de obedecer uma série de regras, acaba transformando essas regras num hábito. De maneira que 90% dessas regras, se ela tiver que deixar, acabam sendo regras que para ela é violento deixar. Foi violento aceitar, é violento deixar. 10% dessas regras ela gostaria de deixar. Não deixa porque não pode. 90% acaba se habituando. Mas mesmo essas que gostaria de deixar, à força de ser comprimida, a criança entende que não tem remédio, e de um modo ou outro toca a vida. E então, dir-se-ia, o problema dos impulsos está resolvido. Os impulsos da criança foram governados e tudo está em ordem, e a criança daqui para diante toca. É o grande erro. Porque quando a criança vai se tornando um pouquinho mais madura, não é dizer que esses impulsos ficam corrigidos pela educação. Em parte, naquela esfera, ficam. Mas os maus impulsos fazem como cobras, que espantadas com o mau trato que recebem no porão da casa sobem pelas escadas e vão para o andar térreo. Assim também a educação da criança pode ser comparada com o porão da vida, quando a vida está ainda nos seus alicerces. Vem depois a normalidade e a criança então vai para o colégio. Ali todos os impulsos se repetem, só que em outros temas. Com temas menos infantis, mas são a mesma coisa. Eu não sei se os senhores sentiram como eu essa sensação curiosa no colégio – eu a tinha muito – é a sensação de liberdade. Porque em casa era ali! E depois a casa é pequena. A mãe, a “fraülein”, está olhando e a gente tem que fazer o que elas mandam. No colégio, abre-se toda uma outra vida. E a outra vida se abre em três campos: o relacionamento com os colegas na aula; o relacionamento com os colegas no recreio, muito mais importante do que na aula; o relacionamento com os professores. Sem falar na conduta pessoal na rua quando vai e vem do colégio. Nada disso a família está sabendo, e desde que a gente não faça nenhuma peraltagem que figure no boletim, a família não sabe nem pode saber mil amizades que a gente escolhe, que a gente rejeita, mil atitudes que a gente toma, que deixa de tomar. Problemas que resolve que nem de longe a família pode supor que existam, e a gente é que resolve e resolve como quer. Resolve como quer de dois jeitos: um, ou pelo impulso – lá vêm os mesmos impulsos da infância repetidos – ou é pela razão. E a alternativa entre o impulso e a razão se repete. O menino vai para o colégio e nota outro menino que é muito engraçado e diverte a ele. Ele vai e procura relação com aquele outro. Ele teria uma porção de razões para não ter aquela relação, mas ele dá risada e dando risada ele se dá por bem pago. Então estabelece aquela relação. Com aquele menino ele aprende uma porção de maneiras ruins que não deveria saber, uma porção de expressões verbais vulgares que ele não deveria ter. Ele aprende até modos de ser que não são aqueles a que ele foi habituado nascendo. Ele esconde em casa para poder se dar com o menino engraçado, para entrar para a roda dos engraçados, para se divertir. E então ele subconscientemente escolhe um rumo: divertir é a vida e eu vou onde houver gargalhada. É um rumo. E às vezes isso marca o rumo de um homem a vida inteira. Vai ser um engraçadão, um folgadão, um contador de piada que todo o mundo acha graça, e que faz a vida servindo de palhaço. Por quê? Porque em criança ele resolveu tomar essa atitude. Um outro, pelo contrário, é picado pela mosca da ambição. Me lembro quando a primeira vez no colégio São Luís se abriram as portas e entrar um automóvel pequeno, um automóvel para menino que nunca se tinha visto em São Paulo, cor de laranja e um menino sentado dentro tocando o automóvel. "Ah! Que colosso! Olha lá! Esse aí que posição tem! Que automóvel caro ele tem! Como é um homem formidável! Eu vou me dar com ele para entrar na roda dele, para entrar no mundo dele, porque aquilo é mundo que vale a pena viver. Na minha casa não tem automóvel assim. Meus primos, meus irmãos não usam em dias de frio as luvas que eu vejo que ele usa, e sobretudo não tem aquele tom de superioridade desdenhosa e tranquila com que ele responde os cumprimentos e que põe todo o mundo agachado diante dele! Como eu gostaria que todo o mundo se agachasse diante de mim. Eu vou me agachar diante daquele para acabar trepando nos ombros dele para depois mandar nos outros também". É uma forma de cortesania, pela qual um outro toma um fio de carreira que vai pela vida adentro. Um outro, eu conheci um assim, descende de família hábil em discutir, e todo o mundo sabia, eu não quero dizer quem são, que os avós, os bisavós, os trisavôs dele tinham discutido celebremente pelo Brasil afora. Então esse andava pelo recreio procurando discussão. Parava numa roda, ouvia um outro dizer qualquer coisa, ele dizia: "Você acha isso? Eu não acho!" Era qualquer coisa, era para poder discutir. E dava lá o argumento "é tal coisa porque tem tal coisa, e têm três razões mais não sei o que, ba-ba-ba-bá". E os outros diziam "mas que colosso, eu também acho bonito ser um discutidor". Ser inteligente, propriamente o primeiro da classe não é bonito. Mas um discutidor, o primeiro do recreio, não o mais inteligente da sala de aula, mas o mais inteligente do recreio "oh lá-lá, que beleza!" E o indivíduo resolve tomar aquele rumo. Bem, são rumos na vida em que o menino é inteiramente livre, escolhe como quer, levado pelos impulsos. E é o mesmo jogo de impulsos que foi combatido na infância que ressurge em grande. Um vai ser preguiçoso, forma por exemplo, a idéia mega de ser um discutidor, mas não presta atenção em nenhum tema, baba o tempo inteiro, passa as tardes inteiras passeando, e o resultado não tem nada na cabeça para discutir. Fracassa, dá um discutidor miserável. Ele aprende meia dúzia de argumentinhos e tem sempre um implacável que diz: "Olha o que você está dizendo agora, eu vi fulano dizer outro dia. Você está copiando e você não passa de um burro!" Não sei no tempo dos senhores como era a cortesia. Mas no meu tempo de menino a cortesia era essa: "Você não passa de um burro!" Resultado: agressão! E espalha pelo colégio que fulano agrediu porque foi chamado de burro. Então todo o mundo acha que ele é burro. Fica aquela carapuça de burro na cabeça dele. Então o problema como descalçar a carapuça de burro da cabeça. É toda uma questão! A mesma fantasia, os mesmos caprichos, as mesmas desordens, levam o menino a escolher um rumo na vida, e depois a seguir, o mais das vezes de um modo errado, o rumo que ele decidiu. De onde fracassos, mudanças de rumo, decepções, ambições, mil coisas que o menino não diz em casa. Em casa perguntam, "como vai de colégio?". "Bem!" Às vezes são uma cratera, sofreu uma vaia geral na saída do colégio. “Bem...!” Outras vezes, pelo contrário, a família diz "é o seu aniversário, nossa sala de jantar eu espero que você encha de colegas". Ele brigou com todo o mundo e não tem quem convidar. Ou é um tímido de primeira ordem e não ousa convidar ninguém porque acha que ninguém quer ir à casa dele. No dia do aniversário aparecem três e a mãe fez um lanche para trinta. Como é o negócio, então? Então é o aniversário-tormento... Mas por que é que ele cedeu diante da timidez? Ele cedeu ao impulso. Ele é encolhido, tem pavor que digam qualquer coisa dele, então fica quieto e vai correndo para os cantos, para não falarem mal dele, ele prefere que não falem nada. Outro pelo contrário, é super-mega, brigou com todo o mundo, e ninguém gosta dele. Ele tem vinte apelidos. Ele convida para ir à casa, e todo o mundo diz: "Eu não quero ir na sua casa, deve ser muito pau, você é um sujeito cacete!" E lá vai por aí. A vida é dura... Assim é quando o homem fica estudante universitário; depois, quando se forma e escolhe a carreira; depois quando chega à idade madura e tem cinqüenta anos; e depois quando aos sessenta começa a velhice, ainda o mesmo jogo de coisas se passa. A velhice começa com sessenta, mas em que idade que ela liquida o homem? Depende muito do homem, depende tudo de Deus. É claro! Bem! Em que idade ela liquida o homem? Eu já tenho visto velhos na cadeira de balanço, às vezes velhos prematuros, às vezes velhos imaturos, às vezes velhos trans-maturos, na mesma cadeira de balanço perto de uma janela, chupando as bochechas, com uma cara desapontada. É um irmão que foi visitar o outro: "Como vai você? Bem?" O outro: "Bem". E os dois quase dormindo. "E na sua casa vai tudo bem?" "Bem..." "E seu netinho que estava doente como vai?" "Ah! já sarou, já está no colégio". Meia hora depois os dois estão dormindo, um em frente do outro. É o fim de uma vida tocada pelos mesmos impulsos que a gente teve em criança. Quer dizer, há em nós uma desordem fundamental, por onde nós não queremos aquilo que nós deveríamos querer. Nós não queremos a perfeição que nós deveríamos realizar, nós não queremos ser aquilo que nós deveríamos ser; nós não admiramos aquilo que nós deveríamos admirar. Nossos impulsos pedem uma porção de coisas que não são razoáveis e há uma batalha de ponta a ponta na vida. Até o último hausto, e até o momento de fechar os olhos esta batalha existe. E a batalha é: algo em nós está pedindo algo que é fora de nosso caminho, é fora da nossa via, e nós queremos absolutamente o caminho e a via, e por causa disso, nós lutamos, nós lutamos e nós lutamos. Isto vai, eu volto a dizer, até o último minuto. De tal maneira os antigos católicos tinham noção disso que dos eremitas do deserto, especialmente de um tipo de eremitas que havia nas montanhas nevadas da Suíça – eram, aliás, cenobitas, tinham formado um cenóbio – se contava que depois de passar trinta, quarenta anos nas neves eternas, salvando pessoas que se tinham perdido, e que iam procurar, tinham os famosos "cães São Bernardo" que levavam para encontrar e praticando penitências, austeridades, quando um estava morrendo toda a comunidade se reunia em torno dele. E ele entregue às últimas lutas, e então de vez em quando um irmão da comunidade dizia: "Perseveras irmão? Perseveras irmão?" E enquanto ele podia ele ia dizendo que sim. Até um determinado momento em que ele não dava mais resposta. E era a alternativa: rezar para perseverar e depois perguntar se persevera. Até o último instante, até o último instante. Para quê? Para assegurar aquela vitória, porque nos dizem os tratadistas de vida espiritual, que no último momento, muitas vezes no último momento, ainda o demônio combate e procura arrastar a alma. E que as tentações que a pessoa sofre no fim da vida são piores que todas as tentações que teve no decurso da existência. Donde aquela linda oração final na Ave Maria "rogai por nós pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amém". Quer dizer, pensando que a hora da morte é a hora da batalha suprema, onde mais uma vez todos os impulsos vão se revoltar, e onde mais uma vez a gente tem que dizer não para todos eles. A criatura humana tem diante da morte reações surpreendentes. Eu uma vez conversei com um padre que me contava as reações das pessoas. Ele me contava que alguns morriam com uma mania de se despedir da terra que era uma coisa incrível. Então isso se realizava da seguinte maneira: o homem para morrer, no caso concreto era um ricaço, e então ele dizia – ele sabia que tinha pouco tempo – "eu agora quero me despedir de fulano". Então a família toda se punha em movimento, telefonemas, mandavam chamar fulano, fulano entrava no quarto dele, e ele dizia até logo para fulano. Ele ia morrer daí a pouco. Às vezes eram parentes longe, que havia anos que ele não via. Eram companheiros de criança que na vida inteira ele não tinha procurado. Ele tinha mania de se despedir, porque os senhores estão vendo que é uma idéia, uma ilusão, que ele se agarra à vida. E que ao despedir-se, ele segura na última argola que o pode manter suspenso sobre o abismo da morte. Esse mesmo padre me contou uma coisa horrorosa de um homem que disse a ele o seguinte: disse "eu estou com a minha vida toda em ordem, se eu fizer uma confissão com o senhor, o senhor verá que tudo eu pus em ordem para morrer. Mas eu agora mereço receber a sua absolvição porque não estou mais em [condição] de pecar mortalmente, contra a pureza, e meu grande apego é tal pessoa – ele vivia em casa com uma fassura, não tinha esposa, vivia com a fassura – é tal pessoa, mas eu não posso mais pecar com ela, de maneira que eu estou em condições de receber a sua absolvição". O padre disse para ele, para ver se encaminhava um pouco a coisa, eu acho que até foi jeitoso. Ele disse "Não, eu não posso dar a absolvição ao senhor enquanto essa pessoa estiver embaixo do mesmo teto que o senhor". Essa é a doutrina católica. "Ela tem que abandonar a casa. O senhor pode dar dinheiro para ela, pode fazer o que quiser, mas ela tem que abandonar a casa. E o senhor tem que chamá-la e dizer a ela que o senhor andou mal coabitando com ela, que o senhor se arrepende, que o senhor censura o ato que fez, e censura o ato que ela fez. E que ela deve sair de casa, como símbolo da rejeição que o senhor faz da vida que tiveram em conjunto. Depois disso lhe dou a absolvição, antes disso não dou". Ele voltou-se para o padre e disse: "Padre, eu vejo, eu vou para o inferno, e eu prefiro ir para o inferno, porque isso eu não rompo!" Bom, o padre foi muito íntegro, pôs o homem encostado na parede, mas os senhores estão vendo à última hora ainda os apegos quais são. Daquela ligação ignominiosa ele não queria desfazer-se nem sequer por palavras quando aquilo não tinha mais um conteúdo real, ele não queria desfazer-se antes de morrer. Esse é o tal jogo das inclinações humanas, das propensões humanas, o jogo abominável das propensões humanas que vai desde a infância até o fim da idade, até o fim da velhice, e que leva a pessoa a ver que a vida deve ser má. E aqui nós temos, na raiz de toda essa luta, nós temos um ponto de partida, concreto, prático, bom para nós termos idéia do que é uma religião. Porque o que é dentro disso a religião? Se um homem escolhe de ser de um determinado modo que é o desenvolvimento e a plenitude normal e lógica de sua própria natureza, dos dotes que ele tem, da ordem que está nele, de maneira que ele seja a plena florescência e a pujança do que ele deve ser, ele no fundo admira um certo ideal humano, um certo ideal humano que é de acordo com a razão e é especialmente apropriado para ele. Ele deve ser daquele jeito. Se, pelo contrário, o homem não admira isto, ele se entrega ao gostoso da vida, nas mil formas, um desses gostos pode ser o trabalhar... Eu sustento que o trabalho pode ser um vício. E que há gente literalmente viciada em trabalhar. E os senhores sabem quais são os viciados em trabalhar? Os que não sabem o prazer do descanso. Está acabado! Então eu digo que quando a pessoa abandona este ideal que poderia formar normalmente de si mesma, e sai pelos descaminhos do gostoso, ela comete uma ação péssima que pode levá-la ao inferno a qualquer momento de sua existência que ela morra, mas que a primeira toma uma atitude fundamentalmente religiosa, enquanto a segunda toma uma atitude fundamentalmente i-religiosa, não religiosa. Por que é que a primeira atitude é fundamentalmente religiosa? Se eu tiver a idéia de como eu seria se eu fosse santo ― mas eu tomo a palavra santo numa plenitude de sentido que é maior do que a tradição “heresia branca” costuma difundir, contém também o lado bom que há na “heresia branca”, mas contém muito mais, é toda a apresentação do homem, é portanto toda a sua virtude, mas são suas maneiras, é seu modo de ser, é tudo, se os senhores quiserem é até o timbre da sua voz, tudo isto faz parte, é um elemento integrante, expressivo, manifestativo de sua santidade. Bem, se um homem segue esta linha, se ele sabe como deve ser, e ele segue esta linha, então ele no fundo, pratica um ato eminentemente religioso. Por que um ato religioso? Porque este ideal que ele tem é uma semelhança de Deus e ele não tarda em perceber que este ideal não tem sentido a não ser que haja um Deus perfeitíssimo do qual esse ideal é um reflexo. Não sei se eu estou claro no que estou dizendo ou não? Vamos dizer, um criançola, uma criança que vê na entrada da estação da Luz um livretinho sobre Carlos Magno e forma um entusiasmo por Carlos Magno e diz: eu quero ser na linha de Carlos Magno, eu quero ser segundo Carlos Magno, ad mentem, segundo a mente de Carlos Magno porque assim se deve ser ― no fundo, ou a criança nessa idéia carolíngea entrevê algo mais alto e entrevê um Deus que o criou, que é o Carlos Magno dos Carlos Magnos, perto do qual o próprio Carlos Magno não era nada, é o Deus cheio dos esplendores do Padre Eterno, do qual procede o Verbo, e que com o Verbo por expiração gera o Divino Espírito Santo, ou é isso ou então não é nada, o próprio Carlos Magno fica reduzido a vazio, fica reduzido a nada. O que é que é qualquer ideal se não tem por detrás a religião? A gente apalpa é um sonho, sem ele a vida é um inferno, com ele a vida é dura, mas é suportável, mas é só na condição de andar para o Céu, porque se não for [na condição] de andar para o Céu, o que é que é? Ninguém persevera em ideal nenhum. Ou é a religião ou é a aceitação desse modelo porque é segundo Deus, ou não tem nada. Mas, porque é segundo Deus, quer dizer da consideração de certas criaturas a gente sobe ao ente divino, incriado; quando a gente faz essa consideração, põe no mais alto da concepção a religião. E esse é propriamente o varão religioso. O varão religioso é o que estruturou seu pensamento e estrutura a sua personalidade assim. Mas o que é que tem por detrás disso? Os Senhores estão vendo então que por detrás das normas de ordem que o varão religioso resolveu seguir, normas muito razoáveis mas que ele não teria motivo nem força para seguir se não fosse o conceito de religião, de Deus, por detrás está portanto a idéia de um Deus que ele deve servir, que ele deve imitar, que ele deve amar, porque é a perfeição das perfeições de tudo aquilo que ele concebe, e por causa disso, esse varão vai impor-se regras. Ele teve uma admiração, dessa admiração nasceu uma religião que levou a sua admiração ao pináculo. E porque ele admirou e amou, ele quis ser segundo, quis ser conforme, quis adaptar-se ao modelo – isto é a religião – ele então resolveu entregar sua vida a isto. Trabalhar, lutar, batalhar, dentro de si e fora de si a vida inteira, contanto que no fim ele possa dizer: "Meu Senhor e meu Deus, eu tive o desejo de ser assim porque isto Vós me destes a graça de admirar, Vós me destes a graça de compreender, Vós me destes a graça de preferir a qualquer outra coisa no mundo, ser deste determinado jeito e eu compreendi que valia a pena ser isto, não só porque era a minha perfeição da minha natureza, mas é porque - oh Deus! - é reflexo de Vossa natureza. “Eu me apresento agora diante de Vós na hora de Vosso julgamento, adoravelmente implacável, adoravelmente intransigente, eu Vos adoro na atitude que Vós tomardes quando Vós olhardes não só para as minhas qualidades, mas para os meus defeitos, adoro-Vos na benignidade e na justiça com que me absolvereis. Mas adoro-Vos também na intransigência indignada com que Vós olhareis as partes reprováveis de minha pessoa e me destinardes ao purgatório. Eu amo as chamas do purgatório, porque vão tirar de mim aquilo que eu não tirei, vão me purificar, porque elas são imagens da indignação de Deus, e me precipito, por adoração nessa indignação intransigente onde Deus é santíssimo e não é de outro modo, e não tolera, afasta e queima aquilo que não é de acordo com Ele". E assim .... a alma entra em união com Ele. Esse é o caminho do homem quando ele chega até o fim. Não tem remédio. Não tem remédio. E se há uma coisa, meus caros, que eu desejo para os senhores, é que os senhores não desejem a vida inteira receber apenas provas de afeto. Os senhores não desejem a vida inteira receber apenas tratos que os atraiam, mas que os senhores sejam sôfregos da intransigência que os reconhece, os caracteriza, e os rejeita no que os senhores têm de rejeitável. Aí sim vós sereis inteiramente amados por Aquela que é o canal de todo amor e que é Nossa Senhora. Pois se Ela mesma, nós sabemos por revelações privadas dignas de fé, no momento em que Ela perdeu o divino Filho dEla, Ela procurava que culpa havia nEla, de tal maneira Ela tinha medo de ter algum defeito, e queria ser pugnaz com esse defeito para expulsar de si, como Ela não vai gostar das almas pugnazes contra si mesmas e que querem expulsar de si todos os defeitos? Ah! como eu gosto da alma que eu vejo que aceita uma rejeição, como eu gosto da alma quando se examina a si própria, invoca contra si própria como uma advogada implacável todos as agravantes, e procura não olhar para as atenuantes. E diz: "Este seu pecado, esta sua má ação teve tal e tal agravante, mas espere um pouco porque eu vou procurar”, e não pára a não ser quando percebe que o “mea culpa” foi precedido da lista de toda a circunvalação dos agravantes. Aí se ajoelha e diz: “miserere mei Deus secundum magnam misericordiam tuam et secundum multitudinem miserationem tuarum dele iniquitatem meam -- Tende pena de mim, meu Deus, segundo a vossa grande misericórdia, e segundo a multidão de vossas compaixões, apagai a minha iniqüidade". É muito bonito depois de a gente ter posto a iniqüidade inteira diante da gente... Aí há um salmo que diz “Quia peccatum meum ego cognosco et iniquitatem meam contra me est semper -- Eu conheço o meu pecado, quer dizer eu conheço a gravidade do meu pecado e o que há de mau nele está em pé diante de mim e o dia inteiro". Aí sim, essas são as almas honestas. Pureza é também isto, e até principalmente isto, é ter diante de si o próprio pecado e dizer: eu rejeito e eu abomino. Os antigos egípcios, por algum resto eventual da religião primitiva, faziam o seguinte: quando um homem matava a outro, eles amarravam o homicida ao cadáver, frente a frente, pulso com pulso, tronco com tronco, horrível, pescoço com pescoço, horrível, pernas com pernas, de maneira que não pudesse desamarrar, trancavam num calabouço até o cadáver se desfazer de podre. Depois chamavam aquele que tinha morto e matavam. Os senhores me dirão, mas "Dr. Plínio que terrível!" Eu digo é verdade, como é bom que o homicida perceba o mal que ele fez. Ele matou aquele homem e ele está vendo aos poucos a morte que ele pôs naquele corpo progredir, e o mau odor da morte que toca nele é o mau odor do pecado que ele cometeu. E quando ele caminha de um lado para outro da sua cela, levando a sua vítima para ver se foge dela, ela está na presença dela e ele não consegue fugir. E na hora de dormir, se ela está de costas ela é um fardo, e se ele pelo contrário se põe de bruços ela é um colchão de nojo e putrefação dentro do qual ele deita e não sossega. Mas não é só ver o mal que ele fez, é ver o futuro que o espera daqui há pouco. Aquele cadáver como que lhe diz: "eu fui o que tu és, tu serás o que eu sou. E o mau cheiro que eu exalo por tua culpa é o mau cheiro que você exalará dentro da sepultura". E daí para fora, e daí para fora. Ora, o varão inteiramente penitente deveria fazer assim com o seu pecado. Ele deveria ter o seu pecado colado diante de si o tempo inteiro. "Eu fiz, eu não deveria ter feito, eu tive tal agravante, eu fiz tal outra coisa, meu Deus dai-me graças para ver melhor e para rejeitar mais inteiramente". Na base de uma grande, de uma imensa admiração por aquilo que a gente deveria ser, por aquilo que a gente é chamado a ser, pelo Deus ao qual a gente deve imitar, e ao qual se unirá por toda a eternidade, isto é possível. E na base de toda religião existe uma grande admiração, uma forma especial de admiração que se chama adoração. Adoração é isto: a gente adora sobre todas as coisas porque a gente admira por cima de todas elas. E esta é a atitude que a gente deve tomar, é desta forma que nasce a religião. A religião traça regras. Evidentemente ela traça regras. Essas regras são os degraus pelos quais nós vamos ao Céu. E é uma religião que assim tem ordens, que assim tem proibições, a gente ama as ordens e ama as proibições. Porque as proibições são parapeitos que nos separam da infâmia. É proibido ser infame e se não for proibido ser infame, todos nós somos infames. E é porque é proibido matar, é proibido roubar, é proibido pecar contra a castidade... tudo isso junto faz com que as proibições sejam os degraus pelos quais nós subamos ao Céu. Então, a admiração inclusive da rejeição, inclusive da intransigência, inclusive da recusa, esta admiração seguida de um fiel cumprimento de todos os preceitos que nos proíbem o mal para nós sermos como deveríamos ser, isto configura uma religião. E a religião católica apostólica romana o que é que é? É a religião revelada por Deus ― Santo Tomás de Aquino explica isso perfeitamente, porque a razão humana pelos delírios do homem facilmente poderia não ver essas coisas como são e então poderia cair no pecado. Deus revelou para que o homem não se enganasse. Deus dá graças para que o homem siga, e a primeira e a maior de todas essas graças meus caros, não tenham dúvida, é a graça da admiração. É por onde nós começamos a admirar – eu já contei isso a meu respeito, na Igreja do Sagrado Coração de Jesus – a Santa Igreja Católica Apostólica Romana. O som do órgão, a expressão de fisionomia das imagens, os paramentos, os vitrais, o estilo todo da igreja, eu dizia: "mas isto deve ser assim, isto está direito, como eu admiro isto. O bom disto é certo que vem do tal Deus que dizem que há e que é perfeitíssimo. E a prova de que Ele existe é que isto está aqui, porque ninguém dos que estamos aqui dentro comporia isto. Nem eu, nem mamãe, nem ninguém dos que estão aqui dentro comporia isto. Isto é mais santo do que todas as pessoas santas. Isto vem de Deus, baixou do Céu. Deus existe porque existe o órgão, porque existe o vitral, porque existe o turíbulo, porque existe a liturgia, porque existe o Evangelho que o padre lê e que é de uma beleza extraordinária. Porque todos os santos ao longo dos os séculos tiveram as caras dessas imagens". Alguém poderia me dizer: "mas quem sabe se isto é fantasia, e esse santos não foram assim". E eu diria "ou a loucura é o único refúgio no mundo, ou se estes não foram assim deve ter havido outros que foram assim. Porque o mundo seria inteiramente torto, e eu seria louco se não tivesse havido gente assim. E como tem que ter havido, houve. E como não há ninguém a quem se atribua essas caras a não ser esses, esses tiveram essas caras". É um raciocínio de criança, mas de criança lógica. Se os senhores quiserem, de criança desconfiada, desconfiada mas quando deu sua confiança é porque tinha razão e dá inteiramente e a cem por cento. Isto é religião. Esta é a santa religião católica, apostólica, romana. Bem, esta religião portanto é cheia de proibições. E o símbolo destas proibições é Nosso Senhor Jesus Cristo cravado na Cruz. O símbolo da idéia de que o homem passa na vida por coisas desagradabilíssimas, por coisas péssimas, por momentos em que ele sofre tudo quanto naquela etapa lhe é dado sofrer, mas ele deve sofrer porque depois ele encontrará uma felicidade enorme e realizará o seu ideal, o símbolo disso é Nosso Senhor Jesus Cristo. Quando a gente vê Nosso Senhor Jesus Cristo – eu falo em termos de criança – quando a gente vê Nosso Senhor Jesus Cristo num crucifixo que a gente tem no quarto de dormir, e que a gente contempla na penumbra, e para o qual reza antes de fechar os olhos, para o qual a gente olha quando acorda de manhã, pregado na Cruz, e de outro lado, tão bondoso, tão condescendente, tão sublime, tão paciente, tão resignado, a gente entende o seguinte: não, a coisa é dura e até duríssima, mas o prêmio é ser como Ele, porque ainda que seja para estar numa cruz mas ter aquela elevação de alma, aquele equilíbrio, aquela ordenação, aquela força de vontade, é preciso suportar, suporta; e aquela grandeza de alma por onde não fica amargo, mas pelo contrário, é bondoso com todos, e Ele o varão das dores, vir dolorum, é a alegria de todo o mundo que olha para Ele. Ah! isto não tem palavras, isto aqui é extraordinário, e ainda que eu tenha que carregar minha cruz na vida, eu estou disposto a carregar. Agüentar toda espécie de proibição como Ele agüentou quando ao Pai Eterno, Ele disse: "Meu Pai, se for possível afaste-se de mim o Vosso cálice, mas se não for faça-se a Vossa vontade e não a minha". E o Pai, mandando um anjo para lhe dar forças, ao mesmo tempo disse: "proibido, não é possível, é preciso agüentar". Proibição! Essa proibição nos remiu... Nós fomos remidos por causa desta proibição, desta adorável proibição, deste mistério, deste decreto misterioso, por onde Deus disse para Deus: "Eu estou proibido de dar favores". É um mistério. Deus pede a Deus: "dai-me tal coisa!" E Deus responde a Deus: "é proibido!" E os dois falam numa linguagem de mistério, para eu ouvir, para os senhores ouvirem. Nosso Senhor Jesus Cristo que diz o Padre Eterno: "se é possível, afaste-se de Mim esse cálice". Que mistério tremendo é esse. Para Deus para quem tudo é possível, o que é que há de impossível na hora em que é a própria imagem de Deus que pede a Deus uma determinada coisa? Entretanto, a resposta é: não! E uma resposta sumamente misteriosa, nós não sabemos qual foi esse limite, porque foi essa coisa misteriosa. O fato é que Deus pediu de Deus o que a natureza humana não conseguia agüentar, e por isso veio um Anjo e deu a Ele forças. Quem a não ser Nossa Senhora conhecerá algum dia o diálogo entre esse Anjo e Nosso Senhor Jesus Cristo? Eu, às vezes, imagino que o Anjo não veio logo. Mas que durou um tempinho, em que a natureza humana de Nosso Senhor Jesus Cristo estava na perplexidade. "Como é? Nem ajuda virá?" E talvez até o Anjo tenha deixado passar o tempo razoável, e Ele com a cabeça encostada sobre uma pedra, suando sangue, à espera. Quando de repente é uma luz, é um bater de asas e é um Anjo que O adora. Como terá sido a adoração desse anjo? Como é que esse anjo poderia ter adorado Nosso Senhor sem sofrer? O anjo no Céu não pode sofrer, mas como poderia ele não ter tido compaixão vendo aquilo? Que compaixão indizível, uma compaixão sem sofrimento. Que mistério foi esse? Mas o Anjo trouxe a Nosso Senhor Jesus Cristo luzes, trouxe forças com que Ele depois fez a sua imensa, a sua divina epopéia. Sem mais um minuto de hesitação, sem mais um minuto, aliás hesitação não teve um instante, mas de prostração. Cada vez que Ele caiu debaixo do peso da Cruz, Ele continuou agarrado à Cruz. Não deixou a Cruz, quer dizer, eu continuarei, eu chegarei até o fim. É a sublimidade da idéia do dever, do dever que é cumprido como deve ser cumprido, e que é levado ao inimaginável, e no inimaginável ele se realiza... Os senhores querem ver outro mistério dentro disso. Eu me espanto que não se comente esse mistério. O seguinte: a visão beatífica de Deus, a visão direta que a criatura tem de Deus, é uma visão que é imensamente mais fortificante do que a visão que pode ter de um Anjo. Na hora em que o Filho de Deus estava prostrado na mais terrível das dores, Ele não teve a visão beatífica, veio um Anjo para consolá-lo. Mais ou menos como um pai que sabe que o filho está gemendo do lado de fora da casa e manda um empregado. Nem abre a janela para olhar o filho. Não é verdade que arrepia até a algum dos senhores o que estou dizendo? Durou (demorou) para Ele encontrar Nossa Senhora. Durou! Aí Ele teve aquele mar de contentamento, mas quanto durou! Quer dizer, quantos mistérios nesse caminho. Então é o caminho do sofrimento misterioso que a gente nem entende bem, mas que a gente segue. Este é o verdadeiro caminho. Os senhores, não sei bem o que dizem ao que eu digo, nem sei se sentem com toda a clareza, e nitidamente dentro de si o que estou afirmando. Uma coisa eu sei, porque vejo pelas fisionomias de todos, eu percebo bem que de um modo ou de outro, isto para os senhores é admirável. Seguir, ter forças para seguir, eis o problema. Mas quando a gente pede, tem forças. Isso é certo. Querer é seguir. Meus caros, o que é que é então a nova religião? É exatamente o contrário disso, é aquele que não aceita proibição nenhuma. E ou desde a sua infância já começou a saltar, na hora de rezar não rezou, quis antes tomar lanche para depois rezar, evitou de se lavar, foi se lavar mais tarde, etc., e teve um dia de desordem, ou aquele que capitulou na velhice e começou a fazer coisas que não tinha propósito, Salomão foi um, um horror, um horror! Bem, seja como for, aquele que segue os impulsos, que faz até o fim o que queria, esse está apartado dessa religião, e ele põe como tese o seguinte: a ordem da humanidade e a ordem do Universo está na espontaneidade do impulso, fazer o que deseja e gozar a satisfação de ter feito aquilo que deseja. Isto é a nova religião. Essa nova religião veio corroendo ao longo da Revolução a humanidade cada vez mais. Na R-CR (livro “Revolução e Contra-Revolução”) os senhores tem exposto isso com clareza. Eu não vou senão lhes dizer uma palavra sobre esse assunto que é a seguinte: cada Revolução que veio acabou com uma série de proibições. O protestantismo tem muito menos proibições do que a religião católica. Nem tem comparação: basta o livre exame, em que cada um interpreta a religião como quer, e portanto interpreta a moral como quer, e acaba aceitando a moral que ele acha cômodo ter. É nada! Já da diretamente na irreligião. Bem a Revolução Francesa é o liberalismo e é mais uma vez a liberdade dos instintos na ordem temporal, na ordem do Estado. Não é mais na ordem da Igreja, mas é na ordem do Estado. O comunismo não é senão o mais completo achincalhe do homem nessa liberdade completa dos instintos, desde que não se revolte contra o poder público. Contaram-me uma coisa inenarrável de um brasileiro que se hospedou ― eu quase hesito em contar aqui, mas é preciso contar aqui para a gente ver bem o que é que é essa religião que está nascendo. De um brasileiro que se hospedou em Petrogrado, em Saint Petersburg, que eu de nenhum modo chamarei de Leningrado, aquilo é a cidade de São Pedro. E nem é Petrogrado, é Saint Petersburg, ali! A fórmula mais arcaica e mais reacionária do nome. E é esse aqui que eu chamo! Então, hospedou-se em Saint Petersburg, num prédio de apartamento novo. Esse prédio de apartamento tinha como peculiaridade que para economizar na construção, não tinha encanamentos até os apartamentos. E os serviços eram todos no porão. E no porão não havia uma divisão. Era promíscuo para ambos os sexos, sem divisão. Resultado, o sujeito mora no sétimo andar, se ele para se lavar, lavar o rosto, ele tem que descer e subir, ele acaba não se lavando. Acaba se habituando a ser porco. E é para lá que vai! E o mais, que eu não estou aqui entrando em pormenores, mas que eu estou entendendo no sentido cru da palavra, no mais cru da palavra. Outra coisa horrorosa, os prédios antigos não são pintados, porque a pintura é uma mentira, oculta o verdadeiro aspecto do material de construção. Então se vêem palácios antigos caindo, aparecendo o tijolo, um nojo, a sujeira... As casas são porcas como os homens, ou como a alma dessa gente. Divertir... cada um tem para morar um cubículo tão pequeno que o grosso de sua vida passa em barracões em que todos comem, todos bebem, todos conversam, todos dão risada, estão continuamente juntos todos com todos, a não ser na hora de dormir. Não há intimidade, não há esse deleite tão brasileiro aliás, de rodinha de dois ou três que se afastam dos outros para conversar, tão ultra-brasileiro, aliás. Não há nada disso, mas o tempo inteiro coletividade, coletividade. Para quê? Para criar um estado de alma, criar num estado de coisas em que o homem se degrade o mais possível e faça absolutamente tudo quanto ele quer exceto o bem. O bem é proibido. Então é obrigado a ser porco, é obrigado a ser preguiçoso. A Rússia de hoje, a Rússia comunista é o lugar da preguiça. Os senhores vêem que eles não fabricam nada, não produzem nada, vivem de esmola dos países ocidentais, porque eles não trabalham como devem, vivem atolados na preguiça. Os senhores sabem qual é o corolário da preguiça: é a bebedeira. Na medida em que a miséria permite, é o lugar para a embriaguez, a pan-sexualidade mais completa. São os instintos inferiores do homem que podem transbordar, mas uma proibição: é proibido subir, é proibido ser superior. Daí os senhores chegam facilmente à interpretação do estado selvagem. O que é que é um índio? Há uma porção de peças de teatro a respeito de índios. Há "O Guarani" de Carlos Gomes entre nós, há outras peças que apresentam o índio como naturalmente bom, como Dom Casaldáliga o apresenta. Alguns dos senhores terão lido talvez o "Tribalismo indígena" e terão visto o que ele diz a respeito do índio: é muito bom, muito generoso, muito aquilo e aquilo outro etc. Índio é aquele que faz aquilo que lhe dá na veneta na hora, aquilo ele faz, e ele não escolhe momento nem oportunidade, por exemplo, para satisfação das necessidades físicas mais vulgares. É como bicho. Resolve fazer numa certa hora, faz, enquanto está conversando, não tem regra para nada, que o coíba em nada. Apenas aquele minimunzinho de regras segundo as quais se mantém a vida sem regras, quer dizer a tribo fora da qual não conseguiria viver. Isso é a coisa. Os senhores estão vendo que há aí outro ideal, há uma outra forma de admiração. É a admiração e a simpatia com o que é baixo. Não é a admiração que nós temos. Porque ninguém chega para o demônio e diz: "Ah.., eu te adoro..." Se ele tivesse corpo ele daria a mais degradante cusparada em cima disso. Ele não quer ser adorado assim. Ele quer ser adorado de outra maneira. É alguém que olhe para ele no horror leproso da pessoa dele e diga "eu sou conatural contigo e o teu horror eu desejo para mim". Isso é o que ele quer. "Tu não me metes nojo porque eu gosto da sujeira, da imundície, da desordem, da porqueira. Ó porco, eu sou um contigo". Isso é o que ele quer, é a adoração igualitária, é a admiração igualitária dessa consonância com o que há de pior. Isso é o que ele quer fazer. É até lá que ele quer levar. E é isto o que os homens sentem quando eles caem na vida habitual de pecado e uns entram em combinação com os outros. Evidentemente fazer com que nada se eleve, que tudo esteja no mais baixo nível, que tudo seja igual a tudo, quer dizer ao pior, ao mais desordenado, e em que de fato seja proibido proibir. É a expressão mais diabólica que se possa imaginar: proibido proibir, como na Sorbonne, era um dos dísticos da Sorbonne, é "proibido proibir". Proibido proibir por quê? É proibido proibir o mal. Isso que quer dizer. Toda forma de capricho deve ser satisfeita: luxúria, inveja, ira, todos os pecados capitais devem ser satisfeitos à vontade. Só é proibido o quê? Ter a virtude que a proibição dita, quer dizer o bem é proibido, o mal é permitido inteiramente. “É proibido proibir” quer dizer isso. E não quer dizer outra coisa senão isso. É a religião nova que aparece, fundada no quê? Qual é o fundo dessa religião? E com isso nós terminamos esta exposição e os senhores ficam com a vista global que me pediram. A questão é a seguinte: quando nós temos essa admiração que se eleva até os limites, e transpõe os limites e chega ao mais alto píncaro da admiração que é a adoração, nossa vida tem um sentido. Para eles a vida não tem um sentido, porque eles vivem correndo atrás da felicidade, e a vida não traz a felicidade. Porque o que é próprio dos nossos sentidos maus é o seguinte: quando os nossos sentidos pedem alguma coisa e nós recusamos, aquilo a gente tem a impressão de que se aquilo for dado, aquilo dá uma felicidade intensa, deslumbra. A gente dá, algum tempo depois a pessoa se habitua, e quando se habitua não encontra mais gosto. E disso não há regra que se escape. Uma vez eu estava passeando no Pacaembu, eu estava fazendo minhas orações – talvez eu tenha contado esse fato aqui – com o sr. Marcelo Pereira de Almeida, há muitos anos atrás, e íamos andando por aquelas ruelas tranqüilas de Pacaembu, e era uma tarde ou uma manhã, não me lembro se era a tarde ou a manhã, mas lembro-me do jogo de luz, bem devagarzinho... e bem devagarzinho no outro sentido vinha um carrinho puxado por um burro ou um cavalo, e dois rapazinhos guiando, ou um homem e um rapazinho, qualquer coisa. Quando passou meu automóvel, enorme, azul, eu vi a cara dos dois e eu olhei para o Marcelo e vi que na cara dele havia a mesma coisa que havia dentro de mim: "como seria gostoso poder descer deste automóvel e andar nessa charrete". E então eu me lembro que eu disse a ele – ele talvez ouça no gravador o que estou contando, não sei se ele se lembrará desse fato ou não – eu disse a ele: "Veja como são as coisas, nós estamos no automóvel e queremos ir para a charrete dele, e ele se consideraria idealmente feliz se pudesse estar no nosso automóvel apenas para dar um giro de uma hora". Não é uma hora! Sentar dentro do automóvel, entrar por uma porta, sentar e sair do outro (lado), já ele ficaria contentíssimo. Ao pé da letra! Mas o que é? É que nós estávamos ultra habituados a ter aquilo que antes de eu ter, eu também queria. Graças a Nossa Senhora eu não queria desordenadamente, mas o primeiro Mercedes em que eu pus os pés na minha vida, foi de minha sobrinha. Ela passou uma vez em casa para me pegar, para me levar, para fazer qualquer coisa, e eu não prestei atenção, nunca prestei atenção em automóveis e entrei no automóvel dela. Ela ficou à minha direita, a senhora, e eu à esquerda, e fomos conversando, aliás nós viemos por aqui, fomos fazer uma coisa no caminho e depois ela veio me trazer nos “Buissonnets” (nome da sede TFP brasileira à Rua Martinico Prado, 246, em recordação a Santa Teresinha do Menino Jesus, pois tal era o nome de sua casa, n.d.c.), não me lembro bem. Bem, de repente eu olho para dentro do automóvel: "Olha que coisa cômoda, como isto gira de modo agradável! Que automóvel é este aqui?" Ela deu risada: "Este aqui é Mercedes, tio Plinio, o melhor automóvel que há é Mercedes Benz". Eu não sabia que fosse tão bom o Mercedes, mas olha lá, automóvel bem agradável! Eu pensei comigo o que qualquer um dos senhores pensaria: como é agradável ter. Está bem, a este automóvel a gente se habitua de tal maneira que fica com saudades do carrinho (puxado a cavalo): plam-plam-plam-plam-plam vai correndo... Mas isto, meus caros, é a ilusão de todas as coisas na vida. A gente se habitua, e quando habitua perde a graça. Quando a gente não tem, delira de febre de vontade de ter. Habitua, perde a graça. Quando a gente está na idade dos senhores, a pessoa tem uma resposta que é a seguinte: “o Dr. Plínio não sabe, mas a tal coisa assim eu não me habituaria nunca! Eu me deliciaria a vida inteira”. Entretanto é mentira, até os tóxicos são assim. O indivíduo toma os primeiros tóxicos e acha uma delícia. Mas depois ele continua a tomar não é porque é uma delícia, mas é porque é horrível não tomar. Não é porque é uma delícia. E a vida do indivíduo que se entrega aos instintos é absolutamente assim... Os senhores, os mais moços, e até aqueles que segundo as regras da vida ocupem talvez na distribuição dos deleites da sociedade de consumo a parte menos generosa, qualquer um dos senhores é um nababo para alguém. Não sei se querem que eu explique melhor, mas é. Vamos dizer, o mais modesto dos rapazes, passa perto de um mendigo, e o mendigo diz: "olha esse rapaz: como está aprumado, como está todo vestido, quando ele anda o sapato dele não abre, quando ele... ah....." É assim, é assim, e o mendigo pensa dos senhores, que sendo um dos senhores é um ente repleto de felicidade. Pensa de todos. Não há um dos senhores que não tenha causado alguma vez inveja a alguém pelo fastígio da felicidade terrena que tem. Os senhores não estão de acordo com isso porque já estão habituados àquilo que maravilha o mendigo. E isso se repete depois. E assim como os senhores estão habituados àquilo de que eu gostaria tanto de poder ter, e que acho que vários dos senhores tem, uma coisa que eu acho deliciosa: uma boa manteiga, pão italiano daquele grandão, aquilo é excelente, quantos dos senhores vão comer pão italiano amanhã... evidente! É evidente! Agora, isso que para quem não tem é uma maravilha, para quem tem é um hábito. Habituou, acabou-se, o sujeito está pensando no mais alto, e quando o sujeito [tem] o mais alto do mais alto, o que acontece? Ele tem inveja do homem que está andando de carretinha... E sabe o que acontece? Há horas em que a vida pesa, em que o sujeito não entende o sentido da vida. E o sujeito diz: é preciso escapar da vida. E então o segredo é ou matar-se, ou muita gente não tem coragem, uma religião que permita escapar da vida. A religião pela qual se escapa da vida é a religião das reencarnações sucessivas e da perda no nada. O homem se reencarna primeiro como planta, depois como bicho, depois como homem, depois se ele andou de acordo com umas tais prescrições bramânicas, ele se perde num todo de um deus que dorme eternamente. Quer dizer, ele desaparece e morre, perde consciência de si e deixa de existir. De tal maneira é esta a religião do suicídio, do tédio, do frenesi do prazer, e depois do aborrecimento de todo prazer que está dominando, que hoje eu comentei na reunião à tarde, eu comentei esse fato único: na UNESCO, em Paris, domingo – a UNESCO é uma espécie, se os senhores quiserem, de departamento de propaganda, mas um laboratório de idéias da ONU, e portanto, da república universal que está sendo feita – vão ser proclamados os direitos do animal como consonância dos Direitos do Homem. E na ONU o embaixador de uma republiqueta mirim de lindo nome, existente aqui em algum lugar das Antilhas, e chamada Granada, fez um longo discurso em que ele não falava apenas dos direitos do animal, mas ele falava dos direitos da planta. E para ser poético, falava dos direitos da flor. Agora, aonde é que nós chegamos com uma coisa dessas? É isso, é porque na flor está um homem, está uma alma penitente que vai depois se encarnar em animal, depois vai se encarnar em homem, para escapar afinal, e voltar para o nada. E incorporar-se a esse deus que dorme eternamente, a esse nada, entrar no sono, na inteira ignorância de si mesmo, eternamente para todo e sempre. Aqui está meus caros, a antítese: a TFP, que por meus lábios no momento, lhes convida tão quadradamente para o caminho do sacrifício, que falando do sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo eu sei que até os horrorizei. Quer dizer, os horrorizei não com o que eu disse mas com o sacrifício, com a idéia do sacrifício que os senhores terão que enfrentar. Do outro lado, os outros acabam sofrendo imensamente mais, e depois ainda vão ter o inferno. Nós vamos ter vida dura, é verdade, mas com uma tranqüilidade de alma, uma serenidade, uma afirmatividade, uma esperança. Nossas almas podem ser comparadas com bandeiras que tremulam ao vento. As almas deles podem ser comparadas a bandeiras que escorrem ao longo do estandarte, mas que foram arriadas e estão embaixo do mastro até a glorificação eterna ou o sepultamento no inferno. Esta é a nova religião. Que essa descrição da nova religião lhes sirva para admirarem cada vez mais a religião eterna, de sempre, de Nosso Senhor Jesus Cristo, de Nossa Senhora, da Santa Igreja Católica Apostólica e Romana. Com isso, está dada a explicação pedida e nós podemos nos retirar.
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