Plinio Corrêa de Oliveira

 

Vida quotidiana no Vaticano quando

a Santa Igreja está em sua normalidade

 

 

 

 

 

 

Santo do Dia, 13 de janeiro de 1976

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A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.


[É projetado um videodocumentário sobre o Vaticano no tempo de Pio XII. No final do texto, colocamos dois vídeos que ilustram os comentários feitos por Dr. Plinio sobre este assunto]

Eu acharia importante fazer um comentário de conjunto de alguns aspetos e depois passarmos o filme de novo.

Todas as cenas que os senhores acabam de presenciar, não muito habituais aos olhares dos que pertencem à geração mais nova, todas essas cenas são deduzidas diretamente do que a Teologia nos ensina a respeito do papado; do que também a sabedoria da Igreja nos ensina a respeito do modo de organizar a vida. As duas grandes lições que se encontram aqui prendem-se a um ou outro desses pontos.

 Primeiro lugar, o papado. O papado, como os senhores sabem, é o mais alto que existe na terra. É mais alto do qualquer poder temporal, porque o que diz respeito ao sobrenatural vale mais do que diz respeitoso ao natural; porque o que diz respeito ao espírito vale mais ao que diz respeito à matéria;  porque o Papa tem um poder universal sobre  todos  os povos, em todos os lugares, quando todas as outras soberanias existentes no mundo são limitadas. O indivíduo pode ser Rei de um país ou Presidente de um outro. Não há rei do mundo, nem presidente do mundo. Ora, o Papa é o pastor do mundo inteiro, ele tem uma jurisdição sobre as almas do mundo inteiro, e o resultado é que ninguém, ainda mesmo debaixo desse terceiro título que é menos importante de todos, mas que é tão importante, ninguém pode se comparar ao Papa.

Então a ideia é: porque  o Papa é o representante de Deus na terra, e portanto do mais sobrenatural dos poderes, toda a ordem da graça está na mão dele e a ele compete exercer em sumo grau os poderes de ensinar, de guiar e de santificar - que são os três poderes próprios à Igreja Católica - porque ele exerce esses poderes de uma ordem tão transcendente ele é o maior hierarquia de toda a Igreja, e portanto também deve ser cercado das maiores manifestações de respeito que a um homem possa ser tributado.

 Por causa disso os senhores veem o corolário: toda a vida em torno do Papa tem que ser organizada de maneira tal que ele seja objeto desse respeito, que ele seja objeto também desse amor. A monarquia papal sobre a Igreja é uma monarquia que corresponde a três ideias: a ideia do respeito, a ideia do amor e a ideia da força.

A ideia do respeito, em primeiro lugar: o Papa deve ser venerado como eu já disse aos senhores; em segundo lugar, a ideia do amor: se o Papa é o representante de Cristo na Terra, todo ao amor que o homem deve voltar a Nosso Senhor Jesus Cristo deve ter como seu ponto de aplicação imediata o Papa, que representa Cristo na terra. Depois, a primazia de força: o Papa é um pastor. Os senhores não podem conceber um pastor que não tenha um papel de força e desenvolver. Porque o pastor deve defender as ovelhas contra o lobo. E, portanto, ele deve aplicar a força contra o lobo. O poder de governar as ovelhas tem como elemento intrínseco o poder de combater o lobo. Combater pelas armas espirituais, é claro, mas se necessário for pelas armas temporais também.

Então os senhores veem uma pompa em torno do Pontífice, que é uma pompa religiosa, mas ao mesmo tempo é uma pompa paterna, mas ao mesmo tempo é uma pompa da força. E a nota força precisa ser um pouco salientada.

Os senhores veem ali as guardas pontifícias: a Guarda Suíça, a Guarda Palatina, a Guarda Nobre, para a qual muito pré-revolucionariamente essa película não faz uma referência especial, e que era composta exatamente de elementos da nobreza romana que serviam ao Papa gratuitamente e que se revezavam no serviço papal - essas três guardas guarnecerem os palácios do Papa.

É claro que com uma primeira preocupação imediata de garantir a integridade pessoal do pontífice, de garantir a ordem nesse enorme movimento de pessoas, de garantir também a incolumidade dos tesouros de arte colossais que se encontram ali e de que alguma coisa os senhores tiveram ocasião de ver de passagem nesse filme.

 Mas essa não é a principal significação. A principal significação é que o Papa tem o direito e tem o dever, conforme o caso, de acionar a força na defesa da fé. E há uma reminiscência das cruzadas na presença desses guardas cujos uniformes estão tão longe das cruzadas. O mais antigo desses uniformes é o uniforme da guarda suíça que foi desenhado por Michelangelo, século XVI portanto, quando a Idade Média já tinha terminado e que ainda conserva algo de medieval na alabarda, na couraça, no elmo, mas de fato a Idade Média já tinha terminado. Sem embargo disso é a reminiscência das cruzadas, das guerras santas, das guerras de religião etc., que é evocada pela presença desses corpos de guarda dentro da Basílica de São Pedro, e no território do Vaticano.

A arte de viver. A ideia numa arte de bem viver era organizar as coisas de tal maneira que em torno do Papa esses sentimentos pudessem  se exprimir. Quer dizer, todo o mundo que fosse ver o Papa tivesse a oportunidade de ter os seus sentimentos de devoção, de respeito, levados ao  mais alto grau; seus sentimentos de amor levados ao mais alto grau; seus sentimentos de respeito diante da força, de temor diante da força levada ao mais grau. Quer dizer tudo era organizado ali para incutir nos fiéis que visitavam o Papa os sentimentos que eles deveriam ter.

Uma visita a Basílica de São Pedro e ao Palácio do Vaticano, valia por um verdadeiro exercício espiritual, do qual o fiel saía com a sua alma mais aderente, mais unida ao Papa do que anteriormente.

 Quando apareceu o cinema, a possibilidade de tirar películas como essa e de as passar para o mundo inteiro - houve muitas fitas e muito melhores do que esta, representando a vida em São Pedro - essas películas foram levar  para os que não podiam ir até lá, o espetáculo magnífico e quotidiano dentro do qual a vida de um Papa se desenvolvia.

Como era a vida do papa?

Os senhores veem, era um palácio - isso se passava ou na igreja de São Pedro, a maior igreja da terra, magnífica pela sua riqueza, pelo seu valor artístico, etc., pelo fato de estar construída sobre a sepultura de São Pedro, Príncipe dos Apóstolos, pelo grande número de relíquias de toda ordem ali reunidas, pelos acontecimentos históricos que ali se passaram, etc., a igreja de São Pedro; e ao lado o Palácio do Vaticano, que era a residência para onde o Papa se recolheu depois que os Estados Pontifícios foram tomados por Garibaldi [em 1870]. Palácio do Vaticano com um enorme parque, e que constituía dentro do Reino da Itália um verdadeiro reino.

Os senhores sabem que em virtude do Tratado de Latrão [1929] a própria Itália  reconheceu que a igreja de São Pedro, o Palácio  do Vaticano, o jardim anexo e alguns outros edifícios vaticanos existente em Roma, constituíam um reino próprio, distinto do reino da Itália, com todos os poderes de uma soberania temporal perfeita e acabada, inclusive com sua alfândega, com seus correios, com seus telégrafos, com linha de trem que chegava até o Vaticano - dentro do Vaticano havia uma estação de estrada de ferro. Na época do Tratado de Latrão, a aeronáutica não estava tão difundida e não se podia pensar num heliporto para o Vaticano - felizmente! - para não profanar com aspectos inadequados esse lugar de tanta tradição.

Mas com tudo quanto representava uma soberania completa. E o Papa era o monarca deste Estado, o monarca da Igreja que ali vivia cercado de todo o protocolo de uma corte. Esse protocolo se voltava, como eu já disse, a estimular sentimentos de veneração e de amor para com o Papa.

Voltava-se também a organizar convenientemente a vida de um Papa. Porque a vida de um Papa apresenta problema de organização dos mais complexos, que entram pelos olhos, mas a respeito dos quais não seria demais talvez que eu dissesse aos senhores uma palavra.

É natural que o Papa sendo a cabeça visível da Igreja, que pessoas do mundo inteiro, desde que São Pedro foi o primeiro Papa até nossos dias, procure ir a Roma para ver o Papa. E o número dos que iam a Roma foi se multiplicado à medida que os meios de locomoção se tornavam mais fácil. De maneira que Roma passou a ser, sobretudo nos 100 últimos anos, um ponto de atração dos estrangeiros contínuos; católicos de todas as partes do mundo chegando continuamente lá.

 Eu me lembro a impressão que eu tive uma das vezes que eu fui ao Vaticano, quando eu subi pelo portão de Santa Marta, que é o portão que é à esquerda de quem entra na Basílica do Vaticano; eu subi pelo portão de Santa Marta e cheguei no alto, depois de uma rampa muito bonita, onde se passa perto de um pequeno palácio, aonde morou o Cardeal Merry Del Val, de um pequeno cemitério, não sei porque chamado cemitério “dei tedeschi” [dos alemães] aonde há não sei que alemães sepultados; depois se passa pelo Governatorato de Roma, roça-se no fundo da abside da igreja de São Pedro e se chega ao pátio mais alto, é o alto da verdadeira montanha, o pátio mais alto chamado de São Dâmaso, que é o pátio interno do Palácio do Vaticano donde então partem  os elevadores que levam os visitantes para os vários andares onde estão monsenhores, onde estão cardeais, onde está finalmente o Papa e que recebem as suas visitas.

 Eu me lembro a impressão curiosa que eu tive quando eu que queria ver essas coisas todas de perto, passando pelo portão Santa Marta, desci. E eu que os senhores sabem que nunca fui de muito andar a pé, sobretudo nunca de muitas ascensões a pé, eu resolvi subir essa ladeira a pé para ver cada coisa, porque eu sou muito meticuloso. Para ver cada coisa em seu lugar, em seu jeito; olhar para dentro das janelas abertas para ver o que se passava; ouvir como é que as pessoas se diziam “bom dia, boa tarde”. Enfim, tomar o ambiente antes de começar eu mesmo os meus contatos pessoais dentro do Vaticano, que os tive, naturalmente, longos e prolongados etc.

Quando eu chego no alto da rampa, eu vejo a cena bonita de um automóvel, que já estava parado, do qual dois camareiros,  camareiros vestidos com damasco roxo e com meias compridas, não tinha nada de “sans culote”, com  meias compridas, com jeito de nobres, ajudando uma Princesa dos antigos tempos, vestida como se vestia para visitar  o papa, toda de preto, com véu, com tule, com uma coroazinha, etc., etc. e que foi caminhando em passo cadenciado com  um pequeno séquito, no meio do pátio e que ninguém prestava uma atenção especial porque passava de tudo por lá. Rajás... os senhores viram aqui nesse filme uma potentada qualquer, que pelo jeito me pareceu da Indochina, não sei se é certo. Toda espécie de gente entrava lá: Grandes de Espanha... o que quiserem.

 Então passa essa princesa com o séquito e daqui a pouco ouço assim uma buzina prestigiosa, que toca, toca com delicadeza para afastar um pouco as pessoas, e um carro, um automóvel enorme e reluzente que entra. Era um personagem, Myron Taylor [1874-1959], o representante do presidente dos Estados Unidos junto ao Papa, que entrava para ser recebido pelo Papa.

Então essa conjunção da princesa dos antigos tempos, já sem poder temporal, com pouco dinheiro, hospedada com certeza num hotelzinho médio de Roma, que descia num automovelzinho  “tremblotant” [vacilante], como se diria em francês, em que os paralamas e todas as partes de automóvel pareciam ter uma espécie de dificuldade de se manter unidos... do qual ela descia, no esplendor de sua tradição, recebida por dois guardas de honra também tradicionais, e caminhando com a serenidade e o alheamento a todas as coisas da verdadeira tradição que não morre nunca, e que não se incomoda nem sequer com sua própria pobreza. E ao lado o presente, rico, magnífico, pomposo da maior potência temporal da terra, cujo embaixador também vai ouvir uma palavra do mesmo sucessor de São Pedro.

Mais em cima passa um Cardeal armênio, com sua barba... é toda a velha história da Igreja nos países do Oriente próximo. E tudo isso afluindo para cumprimentar o Papa. Os senhores compreendem, é gente que o Papa não pode deixar de receber. É gente que o Papa não pode deixar de receber, mas o Papa não recebia só as pessoas grandiosas. Ele recebia todo mundo, porque ele é pai de todo mundo, e é preciso que todo mundo sinta que tem acesso junto ao Papa. Não é possível ser de outra maneira. E era preciso organizar essa vida de maneira que toda essa gente visse o Papa.

 Os senhores viram a apresentação do Papa no balcão da igreja de São Pedro. Os senhores viram aquele mundo de gente. Aquilo eram só os romanos, italianos, pouca gente mais do que isso. Os senhores podem imaginar o que seria diária e diariamente a afluência de estrangeiros no Vaticano? Quantas e quantas vezes eu tive ocasião de ver isso e de me encantar com isso!

Eu me lembro de bispos - eu até almocei com esses bispos, depois - uns bispos de uma seita ainda hindu que se converteu no século passado, portanto católicos, apostólicos, romanos, que usavam uma barbicha comprida, rigorosamente aparada aqui..., escuros, como quem traz dentro de si o fascínio de todas as noites do Oriente, com uns olhos arredondados e brilhantes, prestos, e sobrancelhas fininhas e subtis. Em geral entre nós, ocidentais, quem tem os olhos muito grandes tem a sobrancelha em proporção; é normal que o beiral seja do tamanho da casa. Mas com eles não era isso que se dava. Eram sobrancelhas subtis e assim em forma de dois pontos de interrogação. Eles com um sorriso muito doce, mas enigmáticos; uns turbantezinhos pretos, bem lustrados e no centro uma espécie de pontinha. Passando também no meio daquilo.

Eles, não sei porque, não se chamavam “monsenhor não sei o que”, mas “mar”. Aquele que eu conhecia mais chamava “mar” Jonas e lembrava quase o bar Jonas do Evangelho. Então todas as épocas ali representadas. Toda essa gente queria falar com o Papa.

Os senhores veem aqui no filme: feridos de guerra que querem falar com o Papa, velhas freiras, os senhores veem de tudo. É um resumo do mundo que quer falar com o Papa. É preciso falar com o Papa!

Mas, de outro lado, é preciso que o Papa tenha tempo para trabalhar. E o problema do falar é que quem consegue falar, quer grudar... É claro! Os senhores riem, os senhores sabem que é natural. Conseguiu falar com o Papa quer colar no Papa para conversar com o Papa, quanto mais melhor. É preciso criar uma atmosfera aonde todo mundo compreenda que o Papa só atende de manhã, e que tem que atender todo mundo que está ali presente. E que, portanto, é uma gafe, uma falta de educação, uma falta de amor reter o papa.

Então os senhores percebem o modo pelo qual o Papa trata aquela gente toda. As pessoas os senhores veem pelo jeito de falar a ele, que dizem o indispensável, que elas já pensaram no que tinham que dizer, que ele responde com uma certa naturalidade, mas rápido, que a conversa com todo mundo é uma conversa rápida também.

Os senhores prestem atenção nas caras que as pessoas fazem quando falam com o Papa, mas sobretudo na cara que fazem quando o Papa passou: é quase a fisionomia de quem acaba de comungar. Recebeu do Pontífice uma palavrinha só, mas que palavrinha! É guardada na alma para a vida inteira; o timbre de voz, o sorriso, a temperatura da mão, como a mão apertou, como não apertou, os eflúvios, o imponderável que o Papa trás em torno de si, tudo isto a pessoa guarda para a vida inteira, e até para a hora da morte, porque para hora da morte se guarda.

 Eu tive a experiência disso. Eu levei vários objetos para benzer por Pio XII, entre eles pus umas velas. As velas que se levavam para o Papa benzer eram velas lindas, que se vendiam na Via della Conciliazione, todas trabalhadas, com relevos, com figuras etc. Ele abençoou. Eu guardei de novo na minha pasta, com muitos outros objetos. Quando cheguei no hotel, eu pensei o seguinte: eu tinha intenção de pôr uma vela dessas na sede e dar outra à minha mãe. Eu pensei com meus botões: o que eu vou fazer dessas velas? Eu disse: uma dessas velas deve ser guardada para quando eu morrer, o agonizante católico morre com a vela na mão, e eu quero que a vela com que eu morra na mão seja a vela abençoada pelo Vigário de Cristo. Assim eu serei unido à Cátedra de Roma até quando eu estiver sem sentidos, até quando eu estiver entre a vida e a morte e o meu intelecto não já articular mais nenhum pensamento, por recomendação minha, minha mão vai ser agarrada a esta vela que representa tudo aquilo que eu amo na terra; com o qual, que é o Papa, tudo quanto há na terra é digno de amor;  sem o qual  nada é digno  de amor, apenas de desprezo, porque está marcado pelo pecado original e pelo domínio do demônio. É o movimento natural da alma.

 Os senhores podem imaginar então como todos guardavam até para a hora da morte uma palavra do Papa etc.

Os senhores vejam aí a razão de ser das coisas. Os senhores notaram que o Papa recebe em vários salões sucessivos. A residência papal tinha que ter vários salões sucessivos. Nenhum salão repleto, nem abarrotado; nenhum salão cheio como um cinema moderno. Duas ou três fileiras de pessoas ao longo de todos os muros, um longo espaço vazio entre elas, objetos ornamentais magníficos, quadros, afrescos esplêndidos, tapetes, tetos esculturais com trabalho de cinzelamento etc.  O Papa que entra, e todo vestido de branco, diferente de todo mundo, solidéu branco, discreto, solidéu branco, ele se aproxima de cada um no recolhimento da sala. Uma palavrinha, outra palavrinha, outra palavrinha... Aquilo já está liquidado e já vai para outra sala. Como as pessoas que estão na última sala sabem que há várias depois, e depois as outras também sabem, cada um entende, o Papa diz uma palavrinha e passa.

 Em geral, a manhã do Papa era tomada com esses contatos. Terminado isso ele ia almoçar. Repousava. O Papa não recebia mais ninguém para visita de cerimônia, nem para visita de protocolo.

À tarde, despacho de papel; à noite despacho de papel. Entremeando apenas as orações. Toda a parte cerimonial, indispensável para o Papa, tinha sido contida na manhã. Ele tinha o resto do dia livre para trabalho. Com tanta naturalidade que nem se pensaria que havia tanta organização dentro disso. Mas com tanta organização que até parecia natural.

E o pensamento de Pio XI, uma reflexão que ele escreveu num dos documentos dele e de que eu gostei muito foi precisamente isso: que as coisas artificiais muito perfeitas são aquelas em que a gente não percebe que existem ou até tem a impressão de que são naturais.

 Quer dizer, o mundo de pensamento que há atrás dessa organização que os senhores viram. Os senhores vão ver, tudo se passa com tanta naturalidade que eu garanto que a maior parte dos senhores não imaginou que tudo fosse organizado como é; no entanto é um primor de organização.

Aí os senhores poderiam examinar as menores coisas como condizem com isso.

O ornato das salas: são ornatos grandiosos. Nada de pinturinhas, com figurinhas, com florezinhas, nada, nada! São cenas enormes, em geral de tamanho maior do que o homem. Por que isto? Faz com que o homem  se sinta pequenino, e ele compreenda  o respeito que ele deve ter. Depois,  todo mundo sabe que são afrescos de pintores famosos; que cada uma daquelas salas valeria uma fábula, não tem preço aquelas pinturas que estão lá, mas que ornam a mais alta autoridade da terra. Tudo isso incute respeito.

 Mas de outro lado os senhores notam a coisa curiosa: os senhores tiveram a sensação de um policiamento secreto? Tiveram a sensação de uma força imposta pelo vigor? Soldados desfilam e desfilam em ordem militar, mas desfilam com tanta pompa que quase parecem soldadinhos de chumbo de uma caixa de brinquedo de luxo para criança. Tão bem recebidos e tão respeitados que quase a gente se perguntaria para que eles existem. Tão indispensáveis que sem eles aquilo virava um pandemônio. É a coisa perfeitamente bem-feita, perfeitamente bem pensada. Nada está deixado de lado.

O valor simbólico. Os senhores notam a sala preparada para o Conclave que vai eleger o papa. Os senhores notam aquelas cadeiras ao lado umas das outras, e em cima de cada cadeira um dossel. Quando o Papa é eleito, funcionários sobem e baixam os dóceis, e o único dossel fica sobre o trono do Papa novo.

O que quer dizer isso? Enquanto o Papa está morto, o governo da Igreja pertence ao Sacro Colégio. É o Sacro Colégio que exerce temporariamente uma parte da soberania do Papa.

Como o que caracterizava o soberano antigamente era ele sentar-se sob um dossel - há dóceis para todos os cardeais que constituem no seu conjunto o Sacro Colégio. Quando o Papa é eleito, o Sacro Colégio aclamou ou escolheu aquele que é soberano da Igreja, e ele deixa de ser soberano, ele passa a obedecer, os cardeais ato contínuo vão fazer seu ato de obediência ao Papa novo. Baixam-se os dóceis, a soberania existe apenas no Papa. Os senhores veem a coisa bonita.

Aquela fumaça que sai da chaminé. Os senhores sabem bem o que se comunicava através daquela fumaça. O palácio papal enorme, a dificuldade enorme naquele tempo em que não havia alto falante, nem microfone, a dificuldade enorme de fazer chegar uma notícia sem boatos e contra boatos todo o enorme público que lotava a praça de São Pedro. Então adotavam um método tão simples. Mais simples não podia ser: quando há uma votação, faz-se o escrutínio, quer dizer, são contadas as cédulas para ver se alguém foi eleito ou não. Ou número de votos dá para eleger um Papa ou não dá. Se o número de votos não dá, é preciso queimar as cédulas. Por que? Para evitar a politicagem, para evitar que os cardeais comecem a fazer política entre si. 

Quando o número de cédulas indica que um Papa foi eleito, é preciso queimar também porque foi tudo feito. Então, quando está terminado um escrutínio, aproveita-se a fumaça daquilo para fazer sair por um tubo e o público ver. Quer dizer, houve um escrutínio. Quando misturam alguma coisa nas cédulas para a fumaça sair preta, quer dizer: não foi eleito o Papa. Quando a fumaça sai branca, foi eleito o Papa. O povo começa a aclamar, aclamar, sem saber ainda quem é, porque o Papa está eleito.

Há uma coisa mais simples do que tomar essa inevitável fumaça e fazer dela uma sinalização a mais normal possível? E a coisa que entusiasma mais o povo do que ficar aquelas centenas de milhares de pessoas na praça de São Pedro olhando a chaminesinha para ver se sai a fumacinha...

 Quer dizer, não sei se os senhores percebem na imponência da Igreja, na imponência aristocrática da Igreja, o senso da alma do povo e o contato com o povo. Não pode haver coisa que alimente mais discretamente e mais nobremente a filial “torcida” do povo do que essa fumacinha. É um gênio popular magnífico que se exprime nisso.

 De outro lado, a Igreja que faz isso  para o povo, fá-lo de dentro de uma sala aristocrática, solene, grandiosa, onde umas das preocupações é comunicar-se com o povinho, o que antigamente se chamava “o bom povinho”, “o miúdo povinho de Deus”, para anunciar se o vigário dEle foi eleito ou não. Os senhores estão vendo a beleza das coisas.

Primeira coisa que o Papa faz, depois de receber obediência dos cardeais, é apresentar-se ao balcão de São Pedro. E é o pastor que entra em contato com suas ovelhas, o pai que entra em contato com seus filhos, e uma benção que o Papa dá com um bonito jogo de palavras latino: “urbi et orbe”. “Urbi”, cidade, “orbe”, mundo. A benção para a cidade e para o mundo. E o primeiro ato de jurisdição dele é benzer.

Os senhores estão vendo como tudo é grandioso, como o amor do Papa a todos os povos se exprime aí? E embaixo multidões delirando de um entusiasmo lúcido, calmo e ardoroso - multidões delirando de entusiasmo que rei nenhum da terra nem reuniu nem reuniria. É a capacidade de atração do papado e da comunicação que o papado tem com todos os povos, em todos os tempos, e todos os lugares.

 Isso pode dar aos senhores uma certa visão de conjunto e uma ajuda para reinterpretar algumas das cenas que os senhores viram.

Eu não consigo terminar de falar ... magnífica sobre a qual estão colocados todos os ornamentos pontificais, de que o novo Papa se reveste. Mas colocados com tanto cuidado por um monsenhor que é um artista, que a gente diria que aquilo está... é uma maravilha de obra de arte. Cada pano cai ali como tem que cair para formar um aspeto de conjunto bonito, porque tudo da Igreja tem que ser bonito. A Igreja nada faz que não seja artístico e maravilhoso.

Depois, a simplicidade com que um monsenhor, no respeito, vai carregando o objeto que completa aquilo tudo, e que é o triregno, como eles chamam – a tríplice coroa do Papa, a tiara do Papa que é colocada lá para coroar o Papa novo que vem. Está tudo pronto. A dois passos, a sedia gestatória. O que é a sedia gestatória? É um trono ambulante.

É a única monarquia, que eu saiba, que existiu no mundo inteiro, que seja uma monarquia de velhos. A Igreja verdadeira nunca teve a fobia da velhice, ela teve, pelo contrário, a admiração pela velhice e a veneração pela velhice.

 Nosso Senhor Jesus Cristo ... a teoria, que eu não vou desenvolver aqui porque os senhores todos já ouviram, da soma das idades. À medida que a gente vai envelhecendo, vai somando a vantagem de todas as idades e vai-se tornando e - quando é uma velhice católica - mais pleno de tudo aquilo que a velhice vai dar. E a velhice não é considerada uma catástrofe, é considerada um êxito.

Eu me lembro de uma anedota de dois franceses conversando numa ponte, sobre o Sena. Encontraram-se dois franceses velhos, e um disse para o outro: “como é desagradável envelhecer”. Diz um velho: “eu não acho, é o único jeito de viver muito”. É tão evidente...

Todos os Papas, com raras excepções, eram mais do que sexagenários. Para percorrer aquelas distâncias enormes de dentro do enorme palácio deles deviam usar um veículo de transporte à mão, porque muitas vezes eram septuagenários ou octogenários. Daí então essa espécie de liteira descoberta que era a sedia gestatória, carregada por portadores, todos com trajes tradicionais também, sobre os ombros. Eles se revezavam ao longo do trajeto. E o Papa ia sentado ali com aqueles leques em forma de semicírculos, com plumas etc., chamados “flabelli”, que eram na aparência para tocar as moscas. É possível que a velha Roma pontifícia tenha tido muito mosquito, e que tenha tido uma origem intencional nisto. Mas com o tempo os famosos pântanos romanos foram sendo secos e os mosquitos desaparecendo de Roma. Hoje Roma tem menos mosquitos do que São Paulo, ao menos nos bairros de Roma que eu conheço e de São Paulo que eu conheço; eu não conheço todos os bairros nem de uma nem de outra cidade.

Mas os “flabelli” ficaram. Porque aquela coisa destinada, primeiro, a espantar mosquitos, foi de tal maneira modelada pela arte que se transformou numa obra prima; e depois esta obra prima da arte, colocada sempre perto do Papa e movendo-se discretamente, passou a ser um símbolo da suavidade, da graça e da glória, adornando a fronte venerável do ancião que era o Vigário de Cristo na terra. Então os “flabelli”, movendo-se lentamente em torno do Papa passaram a ser o complemento cênico – e eu digo “cênico” aqui com o maior respeito à palavra – necessário do Papa levado na sua sedia gestatória.

Tudo preparado ali. É só o Papa ser eleito que se desencadeia um mundo de tradições que o cercam e que o vão levando dentro da linha dos seus antecessores.

Isso, entretanto, tudo tão prático que já está tudo preparado e tudo corre depressa, sem correria, porque não há torcida, não é uma pressa filha da aflição e filha da “torcida”, mas é uma pressa filha da reflexão, filha do recolhimento, filha da meditação, e por causa disso uma pressa particularmente eficiente. Tudo se passava sem corre-corre, com o mínimo de dispêndio de tempo possível. Sublime e prático ao mesmo tempo: coisas que o espírito moderno não compreende bem que estejam unidas.

Eu desejo aos senhores que lhes seja dado o seguinte: primeiro, que lhes seja dada a alegria, a graça e a glória de presenciarem o começo do Reino de Maria; e em segundo lugar que os senhores possam assistir toda a pompa vaticana como ela deve ser.

Mas eu quero que os senhores tenham a impressão, algum dia, a impressão magnífica que eu tive ainda no tempo de Pio XII. Quando eu fui convidado para a tribuna do Corpo Diplomático do Vaticano – eu já contei essa cena aos srs., serei o mais rápido possível - colocado ao lado do embaixador egípcio,  que eu vi Pio XII sair do trono dele até o altar de São Pedro para fazer a consagração; e vi o embaixador do Egito, com um fez vermelho  no alto da cabeça se inclinar profundamente, eu olhei para os olhos dele de soslaio. Também me inclinei, todo mundo se inclinou, mas eu gosto muito de observar, os senhores me conhecem; e olhei para ver como estava, e vi que o homem estava chorando... um muçulmano.

Os senhores verem não esta cena, que evidentemente, era uma cena culminante porque era a cena da consagração; não essa cena mas uma outra cena. E com a evocação dessa cena eu aqui fico.

 E entrei  para tomar parte na cerimônia de canonização de São Vicente Strambi, um santo se não me engano redentorista, que quase foi eleito  Papa em lugar de Pio VII, ao tempo de Napoleão e da Revolução portanto – teria sido vantagem para Igreja... -  eu entrei pela sacristia da igreja de São Pedro porque o convite dava obrigação para isto, dava margem para isto. Eu entrei e fui conduzido até o meu lugar, que era um lugar assim um pouco no fundo, assim alto. Quando eu estava lá eu vejo um personagem todo  vestido a la século XVI, espanhol, com aquela gola de Felipe II, com manto preto, com colares, etc., que recebe aviso de um prelado romano e vem caminhando até meu lado. Eu pensei: isso não pode ser comigo. Mas o homem parou diante de mim e fez uma reverência. Eu fiz a reverência. O que vai sair desse negócio?

Ele me disse: olha, o senhor não está bem colocado. Ao lado do embaixador egípcio existe um lugar para o senhor e para o seu secretário – era o Dr. Adolpho, moço naquele tempo. O senhor não quer descer e o senhor ficar na primeira fila para ver passar o papa. Eu agradeci, desci. Olhei para trás, monsenhor estava me olhando. Eu fiz uma reverência para ele, ele também me fez a reverência... ambiente de corte, absolutamente ambiente de coorte. Ele também me fez uma reverência a mim. Eu assisti a chegada do Papa.

 A Igreja cheia de gente! Repleta, magnífica!  Toda a tribuna do corpo diplomático tomada; não só com diplomatas, mas notabilidades de toda ordem. E espera-se, espera-se... E faz parte do prestígio de um Papa fazer-se esperar, não que ele chegasse atrasado, mas é que todo mundo chegava adiantado. Cotação é isso! Prestígio é isso! O resto é nada... Eu, que sou um homem de me atrasar muito nas coisas, eu cheguei bem adiantado. Os senhores não sabem o quanto quer dizer isso para mim, porque eu tenho sempre mais uma ponta de ocupação, uma coisa para fazer, para correr. Nada! Bem adiantado para me preparar para a cena.

Depois de uma grande espera, o Papa, na hora, eu começo ouvir a tocar os sinos de São Pedro, braaaaam, braaaaam, mas ninguém sabia porque que era. Depois eu soube: era o sinal de que o Papa tinha saído dos aposentos dele. Então tocam o sino que se ouve na cidade inteira.

Uns 10 minutos depois, eu não marquei, ali não existe relógio, a gente não olha nada no relógio. Tudo é eterno. Eu ouço começar uma música maviosa. Eram, eu não me lembro se eram 200 ou 300 trombetas de prata que o séquito que precedia Pio XII conduzia diante de si. Trombetas de prata lavradas por Miguel Ângelo, das quais portanto cada uma era uma obra de arte única. E com o som, o timbre da prata, que para a corneta é incomparável. E que de longe vinha se aproximando. À medida que o Papa ia chegando mais perto, os sinos de São Pedro em maior número iam tocando e mais rapidamente e mais energicamente, e as cornetas iam chegando mais perto.

Quando o Papa entrava na Igreja, era depois de um longo cortejo onde a gente via passar dignatários, padres de todas as ordens religiosas; assim, homens que a gente via, homens quase lendários. Os senhores viam passar pelo meio,  por exemplo, o geral da Companhia de Jesus, por exemplo, uma figurinha preta no meio do cortejo enorme; depois chegarem por fim bispos, arcebispos, alguns de rito oriental, com umas cartolas todas embrulhadas num pano preto, com filas de pedras preciosas; um bispo abexim, escuro como a noite, e com um véu cor de rosa, muito leve, todo bordado, com esmeraldas. Era do rito copta, católico, romano – naquele tempo não havia ecumênico nem coisas desse gênero – era católico, apostólico, romano puro; depois afinal cardeais e depois vinha o Papa.

No cortejo do Papa, um monsenhor com um saco e dois outros carregando duas gaiolas, cada uma das gaiolas com um pombinho. Quando o Papa terminava a Missa, desde tempos imemoriais, em nome dos cônegos da basílica de São Pedro, se aproximava aquele que trazia o saco, que era com moedas de ouro, e cantava três vezes: “pro missa bene cantata”, ajoelhava; depois mais uns passos: “pro missa bene contata” depois a terceira vez. E dava ao Papa a espórtula... - antigos tempos... - E os pombinhos faziam parte do pagamento. Eram para ele comer no almoço – dos antigos tempos romanos - eram dados, alguém recolhia e o Papa saía.

Mas a entrada do Papa com as trombetas tocando, com os sinos, os senhores ouvirem as aclamações em todas as línguas, de todo mundo em pé, e estuante de entusiasmo, de alegria, é uma coisa incomparável! Eu faço votos que os senhores possam ver isso algum dia.

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Abaixo, documentário em inglês "A cidade do Vaticano sob Pio XII - Vatican City Under Pius XII"

 

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Vídeodocumentário em italiano sobre a vida no Vaticano, no tempo de Pio XII (desde quando foi nomeado Cardeal pelo Papa Pio XI, até seu falecimento, em 1959)

 

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Nota: Para ler e/ou consultar coletânea de comentários do Prof. Plinio a respeito de Conclaves, Papas, Pontificados (de Pio IX a João Paulo II), clique em https://pliniocorreadeoliveira.info/Especial_Pontificados_Papas.htm


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