Plinio Corrêa de Oliveira

 

Heresia disfarçada:

mais difícil de combater do que erro declarado

O relativismo

 

 

 

 

Santo do Dia, 4 de outubro de 1975, Sábado

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A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.


Ilustração: Jazigo dos zuavos pontifícios que o Papa Pio IX mandou que fosse construído para os soldados que morreram pelo Papado (séc. XIX – cemitério do Verano, em Roma). Este bem-aventurado Pontífice quis ser enterrado o mais próximo possível desses valorosos soldados e, por tal motivo, suas veneráveis relíquias se encontram na basílica de São Lourenço fora dos Muros (San Lorenzo fuori le Mura).

Em tal jazigo, podem-se ler as seguintes frases: "Accipe sanctum gladium, munus a Deo, in quo dejicies adversarios populi mei Israel - Toma a espada sagrada como dom da parte de Deus; com ela abaterás os inimigos" (2 Maccab. XV, 16). E, do outro lado, esta outra: "Non in multitudine exercitus victoria belli, sed de coelo fortitudo est - a vitória na guerra não depende do número das forças, mas do Céu de onde provém o socorro" (1 Maccab. III, 19). A fotografia foi feita por José Luis de Freitas Baptista.

 

Eu fiz na última quinta-feira, uma conferência em Jasna Gora, a respeito de um assunto que os senhores me pediram ontem à noite para tratar aqui também. Eu passarei, portanto, a tratar da questão. Mas antes de tratar da questão quero expor bem aos senhores qual a utilidade que ela tem.

Na história da Igreja, e em geral na história das idéias, nós verificamos o seguinte: que muitas vezes quando uma pessoa está em contato com uma idéia que é violentamente oposta àquela que ela professa, ela tem uma certa facilidade de se defender; quando, pelo contrário, a pessoa está em contato com uma idéia que é meio diferente daquela que ela professa, ela tem uma certa dificuldade em se defender. Eu dou um exemplo.

Se os senhores colocam um indivíduo comum, que não tem preocupações doutrinárias especiais, mas que não é comunista, e que está habituado às idéias de bom senso a respeito da família, da propriedade privada, sobretudo da Igreja etc., um católico que tem Fé, se se coloca esse homem em contato com um comunista, ele tem facilidade em se defender contra o comunismo. Porque, como o comunismo apresenta erros que são flagrantemente contrários à verdade que ele sustenta, ele percebe a diferença que há entre o que o comunista pensa e o que ele pensa; e ele percebe também com facilidade o erro que há no que o comunista pensa. De maneira que ele pode com facilidade dizer "Não, isso aqui está errado em tal ponto, em tal outro", e não adere ao comunismo.

Já, se por exemplo, o mesmo católico, nas mesmas condições, tem contato, não direi com um comunista, mas com um socialista, e digamos que seja até com um socialista moderado, socialista que dirá a ele, por exemplo: "Não, nós estamos numa época em que as funções do Estado precisam ser muito aumentadas; nós estamos numa época de crise e a sociedade pode desarticular-se completamente se as atribuições do Estado não forem muito ampliadas. De maneira que eu sou de opinião de que em nossa época, mais do que em nenhuma outra, o Estado deve ter um grande poder, que poderá desenvolver-se até não sei onde".

Um católico diante desta afirmação, muitos dos senhores mesmos, aqui, que são moços e que não tiveram talvez tempo de estudar devidamente esse assunto, diante dessa afirmação muito mais facilmente poderão concordar com o indivíduo do que se ele der a formulação comunista.

A formulação comunista é: “O Estado é tudo e o indivíduo não é nada; o Estado pode tudo e o indivíduo não pode nada. Nós somos a favor da onipotência do Estado sobre o indivíduo”.

Esta formulação "O Estado é tudo e o indivíduo não é nada" esta formulação qualquer um com um pouco de bom senso recusa. Mas essa afirmação de que nossa época, uma época de caos, de desordem, o Estado tem que muitas vezes ampliar as suas funções, tem até qualquer coisa de verdadeiro. Sob certo ponto de vista é falso e até gravemente falso, mas sob certo ponto de vista é verdadeiro e até seriamente verdadeiro.

De maneira que a pessoa se defender contra essa tese não é tão fácil, perceber o que ela tem de verdadeiro e o que ela tem de falso, não é tão fácil. Eu mesmo se fizesse aqui a experiência com alguns dos senhores escolhidos a dedo e pedisse para me dizer o que é que há de verdadeiro e de falso nesta tese, não sei se todos me responderiam com a necessária precisão. Daqui a pouco vou tentar dar eu a resposta com a adequada precisão.

Depois essa segunda afirmação: "Em nossa época o Estado precisa ter poderes tão amplos que ninguém sabe até onde pode chegar". Os senhores estão vendo que está muito mais próxima do erro, e do erro declarado. Porque insinua que pode chegar à onipotência e portanto ao domínio do comunismo.

Na realidade o que tem é o seguinte: para resolver certos problemas catastróficos de nossa época é preciso, por vezes, que o Estado intervenha na vida social mais do que antigamente. Mas essa intervenção deve ser para se eliminar a si própria e o Estado sair do assunto.

Os senhores imaginem, por exemplo, questão de tráfico de drogas. O tráfico de drogas exige, para ser convenientemente reprimido, que o Estado exerça uma função policial muito enérgica, em que tenha liberdade de revistar qualquer indivíduo a qualquer hora etc.

O que é que deve fazer o Estado? Não deve revistar os indivíduos, não deve reprimir o tráfico de drogas para evitar de coarctar a liberdade individual? Seria um absurdo.

Então o que é que faz o Estado? Ele intervém e intervém até energicamente. Ele fiscaliza, ele faz todo o necessário para eliminar o tráfico de drogas. Mas feita a eliminação do tráfico de drogas ele se retira, e restitui aos indivíduos a liberdade que antes havia. Quer dizer, a finalidade do Estado quando ele vai além de sua função normal, é de exercer a sua função não normal, provisoriamente. Logo depois ele se retira.

Então a hipertrofia, o exagero da função do Estado, exigido por uma certa situação crítica, deve ser exercida essa hipertrofia de passagem. Cessada a situação crítica, o Estado se retira. Esta é a posição de bom senso.

Eu compreendo que uma pessoa não prevenida, não habituada a raciocinar a respeito desses temas, que uma pessoa, entretanto possa ouvir isso, fica meio impressionada e diz: "Não, esse homem tem razão". E sem perceber, embora não tome uma posição diretamente comunista, ela toma uma posição próxima do comunismo, quando ela chega à conclusão de que é razoável que em nossa época o Estado tome poderes tais que a gente não sabe até onde vai.

Quer dizer, a mesma tese comunista enunciada de um modo mais delicado, de um modo não inteiramente completo, tem uma outra possibilidade de circulação que não tem a tese comunista inteira.

* As várias fases de uma heresia, desde seu nascimento até sua extinção

Se isto está claro, eu explico também por que nós vemos na história da Igreja em geral o seguinte: Quando explode uma heresia na Igreja, a heresia explode muito categórica; até vamos dizer que toda história da heresia tem três fases.

A heresia explode meio velada, procurando ocultar o que ela tem de mau, primeira fase.

Segunda fase: a Igreja, nos bons tempos antigos, percebe o erro que está lá e condena.

Terceira fase: a heresia aí solta o seu erro por inteiro, e ataca a Igreja para derrubá-La.

Quarta fase: a Igreja se mantém, e a heresia some.

Aparece, quinta fase, uma nova heresia, que é aquela mesma primeira, mas encapotada, velada, sustentando apenas a metade ou a terça parte dos erros que sustentava antes.

Então os senhores têm, por exemplo, a heresia de Ario, no tempo do Império Romano do Oriente. Ele tinha doutrinas erradas a respeito das relações entre a natureza humana e divina de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ele, na primeira fase, procurou dar um calor católico, um aspecto católico a seu erro. Na segunda fase, Santo Atanásio, grande Doutor da Igreja, descobriu e apontou o erro do arianismo. E por toda parte pregou tanto contra o arianismo que o arianismo, que veladamente tinha tomado conta de quase toda a Igreja, o arianismo teve que voltar atrás. Terceira fase: o Papa condena o arianismo. Quarta fase: o arianismo morre e aparece outra heresia chamada semi-arianismo.

O que é que é o semi-arianismo? É aquele primeiro arianismo, mas não com tantos erros, podado dos erros mais gritantes, com as fórmulas mais veladas. E esse semi-arianismo precisa de novo passar pelo mesmo processo. Ele se oculta, a Igreja o denuncia. Ele então se afirma. A Igreja condena. Vem um semi-semi-arianismo. E é depois de uma longa pancadaria que se acaba com o arianismo na história.

Isso os senhores encontram com quase todas as grandes heresias. O nestorianismo, o pelagianismo, depois com o protestantismo. O protestantismo passou por todas essas fases. Lutero não queria sair da Igreja católica, nem por nada. Foi preciso toda uma denúncia da pregação dele para ele ser excomungado, e de fato teve que sair da Igreja Católica.

Então ele salta por cima da Igreja. Há lutas, há até guerra de religião. Depois de tudo feito ficam os campos divididos: protestantes e católicos. Aparece no campo católico uma heresia chamada jansenismo, do bispo flamengo Jansênio. Esta heresia sustenta o mesmo que o calvinismo – que é uma forma de protestantismo –  mas velado, para ver se assim se inculca melhor aos católicos.

E assim nós poderíamos dar aos senhores não sei quantos exemplos históricos.

* A pessoa que quer ser inteiramente ortodoxa deve ter a atenção voltada para os erros que se apresentam disfarçados

Acontece, portanto, que se uma pessoa quiser ser inteiramente ortodoxa, inteiramente fiel aos princípios da Igreja, ela precisa absolutamente ter a atenção voltada para esses erros disfarçados; conhecer os erros disfarçados que há no seu tempo e saber combater esses erros porque do contrário ela engole o erro.

É mais ou menos como uma pessoa que vai jantar num restaurante com comida suspeita de putrefata. Ou ela sabe distinguir a comida podre da que não é podre, ou ela come algo que tem o aspecto muito bonito, mas está deteriorado, e pode morrer com a ingestão que faz de um alimento deteriorado.

Quer dizer, então nós chegamos a essa conclusão: há erros larvados, ocultos – primeira conclusão – que são lançados pelo espírito das trevas, pelos adversários da Igreja, são lançados com o intuito de iludir os católicos que tenham a intenção de continuar católicos. Essa é a primeira coisa.

A segunda coisa, para o católico não ser tragado por esse erro ele deve exercer uma vigilância enorme; mais vigilância contra os erros ocultos do que contra os erros declarados. Se ele não exercer essa vigilância, ele acaba perdendo a integridade da Fé.

* O relativismo: um erro que intoxica o mundo contemporâneo e é o contrário de nossa vocação

Depois de ter apresentado aos srs. essa preliminar com tanta clareza quanto me é dado fazê-lo, eu passo então a um erro que intoxica literalmente todos os ambientes do mundo contemporâneo, mas especialmente os ambientes que têm ares de ambientes bons, que têm ares de ambientes conservados, de ambientes saudáveis. E depois eu vou mostrar aos senhores como é que os senhores devem defender-se contra esse erro. Sem isso a fidelidade à Fé, e a fidelidade também à nossa vocação se torna impossível, porque este erro é diretamente o contrário da nossa vocação.

Os senhores devem, eu insisto nisso, notar que esse erro infecta o modo de pensar e o modo de agir de muitas pessoas que nós julgamos recomendáveis pela sua virtude. É um erro que não é espalhado pelos maus que têm cara de maus, mas pelos maus que têm cara de bons, que se fazem passar por bons, e que talvez com uma boa fé discutível, se imaginam bons.

Eu vou falar aqui exatamente do erro do relativismo de que um dos senhores me pediu ontem que me ocupasse hoje, e do qual eu tratei na quinta-feira passada em Jasna Gora.

Expostas as coisas de um modo muito sumário e sem pretensões filosóficas que não calhariam bem com as preocupações e o feitio de juventude deste auditório, eu poderia dar um exemplo concreto do que é o relativismo, depois do que é o contrário do relativismo.

Vamos dizer que eu faça a seguinte afirmação: "No dia 7 de Setembro de 1822 o Brasil se tornou independente de Portugal. Ora, a independência política é um bem. É bom para uma nação ser independente. Logo, a data de 7 de Setembro de 1822 deve ser comemorada festivamente pelos brasileiros".

É um raciocínio comum, no qual se baseiam todas comemorações que se fazem da independência nacional.

Esta afirmação é apresentada aos senhores em tom de certeza, quer dizer, é certo que isto é assim. São algumas verdades simples, algumas verdades elementares que, apresentadas, obtém a adesão da mente humana. E obtendo esta adesão o homem tem a certeza, forma-se em seu espírito a certeza.

Qual é, diante desta afirmação, a posição de um espírito relativista?

Um espírito relativista complica o problema. Diz: - "Será verdade que a independência é sempre um bem para uma nação? O Brasil não teria lucrado mais em não ser uma nação independente? Por exemplo o Brasil tornando-se independente teve que pagar os gastos da existência de uma corte aqui, manter um imperador, uma família imperial, e todo um cerimonial de corte, palácios, carruagens, uma porção de coisas aqui. Ora, se o Brasil estivesse ligado a Portugal, toda essa despesa correria por conta de Portugal, nós não tínhamos rei, não teríamos nenhuma despesa de corte, tudo isso se faria em Portugal, nós gastaríamos muito menos. Nós nos sentiríamos, portanto, com o nosso erário mais cheio. Não seria vantagem?

"Segundo ponto. O Brasil tornando-se independente caiu no giro econômico da Inglaterra. Não teria sido melhor que o Brasil continuasse sob a influência econômica de Portugal?

"Terceiro ponto. O Brasil se tornando independente ficava sujeito a uma porção de guerras regionais, como por exemplo, a guerra do Paraguai, a guerra Cisplatina etc. Se o Brasil tivesse ficado dependente de Portugal, Portugal teria tocado os assuntos brasileiros com mais modorra, e talvez tivesse impedido de o Brasil entrar na guerra. Nós teríamos evitado um grande derramamento de sangue.

“Logo, no total..." Diria essa pessoa relativista – vejam bem a resposta. A resposta não seria a seguinte: "Eu não acho que o Brasil devesse ter ficado independente".

A resposta seria outra: "Logo, não se pode saber se conviria ou não ao Brasil ficar independente, porque no fundo tudo é relativo neste mundo. Tudo tem tantos prós e contras que a gente não acaba sabendo nem onde está a verdade nem onde está o erro, nem onde está o bem nem onde está o mal. E, portanto, no total, nós devemos tomar tudo como coisa relativa. Festa da Independência... querendo fazer façam, querendo cantem o Hino Nacional na festa da Independência. Eu, por mim nem sei se foi um bem ou um mal porque eu nem sei sequer o que é bem o que é mal, eu nem sei sequer o que é verdade e erro. Eu acho tudo duvidoso. Eu não acredito em nada. Eu, por mim, fico em casa".

Um outro exemplo, uma pessoa afirma: "Nós temos que combater o divórcio, porque a dissolubilidade do vínculo conjugal é uma ruína para a família e, portanto, para o país, uma vez que a família é a base da sociedade".

Um outro dirá: "Não, eu sou divorcista”. Nós discutimos com ele. O relativista dirá: "Bom, essa questão do divórcio, questão complicada... Há tantas vantagens na indissolubilidade. Você tem razão. Há tantas outras vantagens na dissolubilidade, ou na solubilidade, você tem razão. Que eu por mim sou um pouco mais favorável à indissolubilidade, até voto com você que é contra o divórcio, mas sem muita certeza porque no fundo a gente não pode ter certeza de nada. Todos os problemas são tão complicados, são tão difíceis, apresentam tantos aspectos, que certeza de nada a gente pode ter. Logo, eu mantenho a minha dúvida".

Eu não sei se os senhores percebem que o católico tem muito mais facilidade em entrar em discussão com o divorcista do que entrar em discussão com um antidivorcista que vota como ele em candidatos antidivorcistas, que é capaz até de fazer um pouco de campanha contra o divórcio, com ele, no Viaduto, mas que vai o tempo inteiro dizendo: "Muito certo eu não estou. Quer um folheto? Muito certo não estou por causa daquela tal razão. Olha! O Brasil deve defender-se contra o divórcio..." e depois diz baixinho: "É o mais provável, certeza eu não tenho"...

É ou não é verdade que esse tipo relativista para muitas pessoas pode fazer mais mal do que bem? Que ele pode mais facilmente levar para o erro a um antidivorcista do que um indivíduo que seja claramente divorcista?

* Uma forte tentação de relativismo pela qual Dr. Plinio passou em sua juventude

Agora, o eixo do relativismo visto desse ponto de vista, o relativismo psicológico portanto, o eixo do relativismo visto desse ponto de vista está no seguinte: em última análise toda a realidade é complexa e inesgotável, e a gente não pode ter uma certeza a respeito dela. A inteligência humana é insuficiente para formar certezas a respeito disso. De maneira que eu não vou me aprofundar nessa matéria.

Há uma outra forma de relativismo que é mais radical do que esta e que afirma o seguinte: Não só a mente humana é incapaz, a respeito de muitas coisas ou de todas as coisas, de perceber a verdade, mas de fato nós nem sequer sabemos, cada um de nós nem sequer sabe qual é a verdade a respeito de nada.

Eu me lembro, quando era meninote, eu tive uma tentação contra a Fé muito forte neste sentido e que Nossa Senhora me ajudou a rechaçar e anos depois é que eu soube que havia filósofos, sobretudo alemães, que sustentavam esse erro contra o qual eu tive que me defender.

A tentação era o seguinte, eu me lembro perfeitamente que estava andando de bonde na rua da Consolação, a caminho do Colégio São Luís, lembro-me até do ponto, era perto da esquina da Rua São Luís, um pouco mais perto da Av. Paulista quando essa tentação me veio ao espírito, assim, violenta. E foi o seguinte:

"Eu estou aqui sentado neste bonde. Afinal de contas qual é a prova de que existe esse bonde, qual é a prova de que existe essa casa que eu estou vendo ali, qual é a prova de que esta gente que está andando na rua é gente que está andando na rua? Se eu estivesse deitado na cama, eu começasse a sonhar eu achava que a verdade era aquilo que eu estou sonhando. Quem sabe se agora eu estou sonhando também. E quem sabe se tudo o que está acontecendo não é senão produto de minha imaginação."

Aquilo veio como um estampido na minha cabeça.

Quer dizer, todo o mundo exterior é uma imaginação minha, não existe. Tudo é... eu sonho. O único ser de que eu tenho certeza que existe sou eu porque eu olho para dentro de mim e me sinto a mim próprio. O outro que está lá fora eu posso pegar nele, ele pode até me agredir, não será um pesadelo? Nós não poderíamos escrever um livrinho chamado: "O próximo, esse pesadelo"? Quantas vezes o próximo é um pesadelo para nós! Quase sempre é uma desilusão.

Então não será verdade que isso é assim, que eu estou engajado num sonho inteiramente carente da realidade?

É relativismo.

Como foi que eu consegui cortar esse erro?

Primeiro, rezando, porque percebi o seguinte: se isto é verdade, a religião católica é falsa, porque é uma imaginação como outra qualquer. Eu estou imaginando que ela é verdadeira e que existe padres, bispos e papa, mas não existe, é um sonho meu, é um delírio. Como Nosso Senhor Jesus Cristo também não veio à Terra, nem existiu, nem nada. É sonho meu. Tudo é sonho meu. Não tem apoio na realidade. Os senhores estão vendo que conduz ao ateísmo.

Eu então pedi o auxílio de Nossa Senhora e eu tive uma resposta que me pareceu decisiva a esse respeito: é que a minha imaginação, quando eu estou acordado, eu consigo imaginar o que eu quero. Se eu quiser, eu posso imaginar esse bonde à maneira de uma carruagem do Ancien Regime, por exemplo. Eu posso imaginar o que eu quero. Mas se é tudo imaginação, eu imaginando, tudo mudava de jeito. Se tudo não muda de jeito, tudo não é imaginação. E aí eu tive um desafogo e essa tentação passou.

Não sei se exprimi com clareza a réplica. A réplica é decisiva. Mas isso é um relativismo ainda mais categórico, ainda mais radical.

* O fato de as moças de família começarem a se pintar como "fassuras" representou um relativismo diante da prostituição

Manifestações desse tipo de relativismo nós as encontramos em muitos aspectos da vida contemporânea, e nós as encontramos, às vezes, não são claramente expostas, mas postas da seguinte maneira:

Os senhores tomem uma família, por exemplo. A família professa a idéia de que a prática do ato sexual fora do casamento é um pecado. Conforme o estado do indivíduo, se ele é solteiro, é um pecado contra o VI Mandamento; se ele é casado, é um pecado contra o IX Mandamento. Mas a prática do ato sexual fora do casamento constitui um pecado.

Está bem. A família, ao mesmo tempo considera que não há profissão mais vil, profissão mais indecente, mais asquerosa do que a profissão da “fassura” pública [mulher de condição moral péssima; neologismo proveniente do nome Fassur, personagem péssimo, citado no Antigo Testamento, em JEREMIAS, capítulo 20, tópicos 1, 2, 3, 6. Também no capítulo 21, tópico 1; capítulo 38, tópico 1. Cfr. https://www.paulus.com.br/biblia-pastoral/C8Q.HTM, n.d.c.] que se vende para praticar o ato sexual com os homens transbordantes de concupiscência que as procuram. E por isso, a muito bom título, com muita razão, mantém essa mulher longe de casa e tem por ela uma verdadeira abominação. De maneira que se uma mulher assim entrasse dentro de casa a família expulsaria a mulher da casa.

Normalmente se fosse uma casa pequena onde, vamos dizer por exemplo, de um quarto só, um apartamento com quarto e banheiro, a família está ali reunida e entra uma mulher pública, contra a vontade do dono, as senhoras se retiram imediatamente para outro apartamento, enquanto o homem chama a polícia para levar aquela mulher imunda para fora.

Porque é uma mulher tão indecente que a simples presença dela no mesmo quarto com outras senhoras que são de uma categoria inteiramente diferente, desdoura essas senhoras. É, portanto, uma atitude muito radical, muito categórica, que revela a certeza de que a prostituição é uma coisa infame, e que o ato sexual praticado fora do casamento é uma indecência.

Se nós vamos depois analisar o procedimento, não de todas as famílias, mas de um certo número dentre elas, a respeito de alguns outros aspectos dessa questão nós notamos que a coisa... [troca a fita]

Assim, por exemplo, essa transformação que eu tive ocasião de assistir. Quando eu era mocinho, entre quinze e vinte anos, uns dos traços característicos da fassura era de pintar-se. Colocar ruge nos lábios, no rosto, e usar sobrancelhas artificiais, às vezes raspavam a sobrancelha completamente e mandavam colocar sobrancelhas artificiais em salão de beleza, e de colocar no prolongamento do olho um traço escuro, um batom – chamava-se batom – um traço escuro que dava idéia de olheiras, e passar uma matéria qualquer aqui embaixo do olho que dava também impressão de olheira. De maneira que dava impressão que a fassura tinha feito orgias, que tinha passado a noite toda acordada etc., que era uma mulher que ostentava a vida indecente que levava.

Com a grande modificação de costumes que houve no Ocidente depois da Primeira Guerra Mundial de 1914-18, começa-se a introduzir na moda que as moças e mesmo as senhoras de família começam a usar coisas que distinguiam a fassura; que precisamente, segundo os costumes admitidos, demarcavam as diferenças entre a fassura e a mulher de família.

Então começavam, por exemplo, a se pintar. Depois de pintar o rosto, de pintar tão carregado que imitava a fassura. Depois pintar os lábios, e logo depois tão carregado que imitam a fassura. Depois começa a pintar o batom; depois começa a usar a tal sobrancelha artificial. E depois de algum tempo, quando a gente saía à rua, muitas vezes não sabia distinguir qual era a moça de família e qual era a fassura, de tal maneira a moça de família tinha tomado os ares da fassura.

Ora, se a fassura pratica uma profissão tão infame, e é uma pessoa tão digna de desprezo, como é que a gente pode admitir que uma moça de família, na sua pureza, na sua castidade, na dignidade que tem de moça de família, de futura esposa, de futura mãe, talvez de futura freira, que uma moça de família vá usar aquilo por onde a fassura declara para o mundo "venham me comprar, eu estou à venda, eu estou para alugar, eu não sou uma moça de família".

É ou não é verdade que há uma meia aceitação de sinais de infâmias sobre si. Mas quem aceita esses sinais de infâmia acaba, no fundo, dando a entender que essa infâmia não é tão infame assim.

Quer dizer, os senhores estão vendo aí uma posição relativista: diante da fassura expulsa de casa, mas ao mesmo tempo os pais de família pagam batom, pagam o ruge, pagam todo o salão de beleza para que a filha se vista tão parecido possível quanto a fassura. Quer dizer, há uma contradição. Essa contradição indica em última análise que a certeza que a pessoa tem de que é infâmia o meretrício, essa certeza não é uma certeza que vai até o fundo da alma, a tal ponto que a pessoa pratica algumas ações que estão em contradição com essa certeza. Relativismo.

* A contradição e o relativismo de pais que, considerando a prostituição uma infâmia, querem que seus filhos freqüentem lugares suspeitos

Um outro exemplo: eu conheço casos disso que é sintomático. Chega um rapazinho – isso já se dava no meu tempo –  faz quinze ou dezesseis anos. O pai ou a mãe observam o rapazinho e percebem que ele não vai ainda à casa de perdição. A mãe acha isso esquisito e diz: "Será que ele não é inteiramente normal?" O pai pensa: "Esse aqui é um bobo, está perdendo a ocasião de se divertir. Eu posso dar dinheiro a ele para se divertir. Ele está perdendo ocasião de se divertir".

O pai e a mãe combinam – eu conheço casos desses, exceções, mas conheço, no meu tempo já, hein! – o pai e a mãe combinam com primos, com amigos, dão uma festinha qualquer em casa e depois levam o rapaz para a casa fassura. E às vezes levam à força o rapaz para a casa fassura e obrigam o rapaz a pecar com a fassura.

É possível que algum dos senhores tenham ouvido falar de casos assim. Até por curiosidade, os que ouviram falar de casos assim levantem os braços para eu ter idéia. É a sala quase toda. Os senhores vejam que inquérito interessante.

Ora, como é que pode uma senhora, ou um homem, que considera uma meretriz um ente infame, querer tomar o seu filho e jogar nos braços da meretriz? Como é que ele pode, se aquela meretriz faz um comércio infame, querer que seu filho seja o cúmplice desse comércio, pagando ele com o dinheiro dado até pelo pai, pagando ele com o dinheiro à mulher para fazer aquilo que eles desprezam a mulher porque ela fez?

Depois, se ela é infame porque ela consente no ato sexual fora do casamento, o filho que pratica o ato sexual fora do casamento não é infame também? Como explicar uma coisa dessas? Os senhores estão vendo uma contradição. Essa contradição significa o quê? Significa que no fundo a certeza da infâmia é uma certeza relativa. A pessoa acha que é infame praticar ato sexual fora do casamento. Mas... assim... começar por achar que para o homem muitas vezes, acham que não é infame, é só para a mulher. E daí para fora.

Uma porção de contradições que indicam que essa certeza é meio da boca para fora, e que a pessoa está entre a certeza e a incerteza. Relativismo.

* Quem está entre o erro e a verdade está, de fato, no erro

Uma vez eu me encontrava numa roda, e numa roda de gente muito recomendável pela moral. E eu pus para essa roda de gente uma pergunta – eu vou adaptar um pouco a pergunta porque eu não quero que os senhores tenham a menor idéia de qual é essa roda – eu pus a seguinte pergunta: imagine que nós recebamos o convite, nós, seis ou sete pessoas que estamos aqui, para ir para a Europa, e para ir num navio pequeno, meio carga, meio passageiros. Mas como acontece, sobretudo em certos navios alemães, a sessão de passageiros magnificamente bem montada.

Como o navio é pequeno, nós lotamos inteiramente a sessão de passageiros. Mas somos muito bem tratados: garçons excelentes, limpadeiras de quarto excelentes. Enfim, tudo o que se pode imaginar de melhor. Tudo magnífico. E o preço extremamente barato, tão barato que nós que não temos muito dinheiro – todos lá éramos meio pobretões – podíamos pagar essa viagem para a Europa.

Quando chega mais ou menos dois ou três dias depois de ter começado a viagem, e nós contentes no tombadilho do navio, chupando uma laranjada, qualquer refresco agradável, com sanduíches com presunto estrangeiro, manteiga magnífica etc., conversando... ouvindo por exemplo, uma gravação de uma música esplêndida, mar alto, azul como o céu etc. De repente um diz o seguinte:

"Vocês não sabem o que é que eu descobri. Nós devemos encostar amanhã na baía, e para nós se põe um problema. Todo esse pessoal que está aqui é um pessoal que faz essa viagem de ida e volta, de fato, para fazer propaganda comunista. Eles chegam em terra firme, trocam a tripulação, descem comunistas entram outros, e esse navio faz intercâmbio de propaganda comunista. De maneira que nós aqui estamos num ninho de comunistas.

"E este garçom tão amável, aquele maître de hotel tão excelente, aquela copeira, ou arrumadeira de quarto tão prestativa, aquele comandante de bordo tão boa prosa, todos no fundo são comunistas.

"E além do mais o seguinte: esses em concreto são comunistas torcionários, todos eles especializados em torturas. Aprenderam a torturar na Rússia e vem aqui para o Brasil, para os países da América do Sul para ensinar torturas e guerrilhas com as pessoas com quem eles vão tomar contatos.

"De maneira que à noite, quando entrar o jantar fumegante e delicioso, lembre-se: aquele homem é um torcionário, ele gosta de ouvir as vítimas dele darem gemidos e gritos e morrerem nas mãos dele. Aquela mulher é especialmente torcionária de crianças, ela cegou 15 crianças. E assim por diante. Foi o que eu descobri ouvindo uns bêbados deles falar, e depois eu tomei outras informações, e descobri isso.

"Então para nós agora tem uma saída: ou nós continuamos até a Europa, porque para nós eles não farão nada, nossa viagem magnífica continuará, ou nós descemos na baía e será o bluff de nossa vida, porque não temos dinheiro para ir à Europa e voltamos por terra, de ônibus, no pau-de-arara para São Paulo, para recomeçar a vida de todos os dias".

Eu perguntei: "Vocês o que é que fariam?"

A resposta de um foi mais ou menos o seguinte: "Você se soubesse disso não nos devia contar, porque nos evitava um caso de consciência horroroso, e nós iríamos para a Europa tranqüilamente. Ao descer, você contava".

Outros disseram: "Não, é obrigação contar e contar desde logo. E amanhã nós saltamos na baía. Não queremos mais saber desta gente".

Outros disseram: "Não, a viagem está tão boa. Deixe esses comunistas que são seres malfazejos serem benfazejos para nós pela primeira vez na vida. Nós vamos até a Europa com eles".

Tomaram as três posições possíveis.

Ao primeiro eu respondi logo: "Você acha que descendo em terra firme eu deveria contar?"

"Ah! isso sem dúvida".

Eu disse: "Não, não devia. Porque depois que você já desceu, que você não tem mais nada que ver com isso, aí é que não havia razão para te contar. Havia uma razão para contar na hora. Se você acha que era necessário saber isso você está em contradição achando que era só na hora de descer. Era a bordo que você devia saber. E eu te contei. Está dentro de teu ouvido e dentro de sua cabeça. Está criado o seu caso de consciência. Resolva o seu caso de consciência, eu quero ver como é que você resolve".

O sujeito não respondeu.

Aos outros que disseram que continuavam a bordo eu disse: "Vocês são relativistas. Vocês são homens que não têm a convicção da maldade do comunismo. E por isso, para vocês, o trato, a vizinhança com comunistas, e ainda mais com comunistas torcionários, não causa nenhum inconveniente. Desde que a comida esteja boa, a cama limpa, a banheira lavada, e o corpo possa se espraiar, para vocês não tem nenhum inconveniente. Tudo está bom, tudo está certo. No fundo, vocês se dizem anticomunistas, como vocês não o são, porque um anticomunista relativista é um comunista encapotado, não é um anticomunista verdadeiro".

Os que acham que minha posição era verdadeira queiram levantar o braço para eu ter uma idéia...

Os srs. podem com isso chegar à tese que me agrada defender como a tese verdadeira, a tese que todo bom católico deve sustentar: quem está entre o erro e a verdade não está entre o erro e a verdade, está no erro. O relativista aceita no fundo o erro que ele não ousa confessar, e a verdade vinda da boca para fora. O que tem nele de profundo é o erro.

* Ao cabo de alguns anos, o relativismo leva a pessoa a professar idéias contrárias às que tinha anteriormente

E eu estava dizendo lá em Jasna Gora essa coisa característica: as mesmas pessoas que eu vi em 1920 a 1925 passarem a usar traços externos de fassura, passaram a fazer gradualmente ao longo dos anos uma porção de outras coisas que elas censuravam. Por exemplo, começaram a usar maiô de banhos cada vez mais curtos, até chegar ao biquíni; passaram a ser pessoas que admitiam o divórcio não para si, não se divorciaram, mas tiveram pena e concordaram em conviver com pessoas divorciadas. Começaram a usar pantalonas. Tudo aquilo que elas julgariam horroroso, elas acabaram fazendo.

Em 1975 essas pessoas são o contrário do que elas eram em 1925. Ao longo de meio século de evolução elas chegaram quase a ponto de dizer: "Olhe, a fassura é uma pobre coitada, e a gente deve ter pena dela". Quase, só falta isto para terminar toda a evolução que fizeram.

O que é que são? São pessoas relativistas. E essas pessoas relativistas estão sempre, e é a característica que elas têm, elas estão sempre dispostas a aceitar um erro novo, nunca dispostas a defender até o último ponto uma verdade tradicional. Elas estão sempre como quem vai se entregando ao erro. Aos poucos e devagar, é verdade. Por quê? Porque no fundo da alma delas elas não ousam confessar para si próprias, mas no fundo da alma delas de fato elas estão no erro.

* O relativismo é o passaporte para disseminar toda espécie de erros

Eu me lembro de um fato que se deu comigo, também em mocinho. Havia um senhor que era muito chegado à minha família, e era um senhor cuja apresentação, cuja aparência e cuja genealogia era de um fidalgo. Homem, aliás, rico, com muito boa posição etc.

Numa ocasião, numa reunião de família – ele freqüentava muitíssimo a minha família – aconteceu por essas [ou aquelas circunstâncias que] estávamos todos em pé comendo doces, sanduíches etc. Eu me lembro que eu e ele estávamos tomando um cafezinho, e aconteceu por essas coisas fortuitas que os dois ficamos sós um em face de outro. Ele me disse o seguinte, cortando o assunto e falando baixinho, como um amigo muito mais velho fala para um moço, ele disse:

"Plinio, eu queria aproveitar esse momento que eu estou só com você para lhe dizer uma coisa. Eu noto que você tem idéias muito, muito reacionárias, muito conservadoras, que não são para sua geração. Eu queria que você não se iludisse com isso. Você deve ser um socialista e um socialista da esquerda".

Eu caí das nuvens. Logo daquele homem!... com aquela aparência... em que parecia uma personificação, exatamente, da Contra-Revolução.

Eu disse: "Mas como você pensa assim?"

Ele disse: "Olhe, tudo é relativo. E cada geração tem uma doutrina que ela lega à geração seguinte que vai alterá-la". Verdade inteira numa geração, meia verdade na geração seguinte, erro completo na outra geração.

Então, dizia ele: "Minha mãe é uma senhora que tem idéias reacionárias que eu recusaria. Minha mãe é monarquista e eu sou republicano. Mas eu sou um republicano burguês e conservador. Meus filhos...  – eram mais ou menos da minha idade –  "... meus filhos já [devem ] ser republicanos socialistas, e meus netos têm que ser comunistas. Porque a evolução do mundo é essa. E você ficando firme nas suas idéias como você fica, você faz o papel de bobo, porque você não compreende que tudo é relativo"...

Relativismo! Isso é o relativismo.

Os senhores compreendem então qual é o mal que o relativismo faz. O relativismo é o passaporte para disseminar toda espécie de erros, para disseminar toda espécie de mal, e para justificar o processo revolucionário que consiste precisamente nisso: em que pouco a pouco, as pessoas vão mudando de idéias, vão mudando de gostos, vão mudando de hábitos, de tal maneira que ao cabo de muitos anos elas sem se darem conta, vão ficando cada vez mais revolucionárias; e ao longo dos anos as gerações vão ficando comunistas sem perceberem.

Eu sustento que esse relativismo faz mais mal para a causa da civilização cristã, é mais nocivo para a Fé, é mais nocivo para a Religião Católica do que o próprio comunismo declarado. Porque se todos aqueles que se dizem anticomunistas o fossem de fato, se todos aqueles que se dizem católicos o fossem de fato, não seriam possíveis as mudanças catastróficas que nós presenciamos em torno de nós.

Se essas mudanças se tornam possíveis e o mundo vai ficando cada vez mais comunista, não é por causa da propaganda comunista. O número dos comunistas absolutos cresce pouco ao longo do tempo. É essa marcha gradual de todo o mundo para a paganização, esse abandono gradual de toda doutrina e de toda moral católica para a aceitação gradual do extremo oposto, é isto que é o grande perigo. E é contra isso sobretudo que nós temos que lutar.

É claro que também - e em que medida enorme! - contra o comunismo declarado. Nós, os senhores todos que estão aqui, sabem quanto temos lutado contra o comunismo.

Eu quero dizer, entretanto que para atrair os bons, o comunismo não é um tal perigo. O perigo é o semi-comunismo, as idéias que têm algo de comunistas professadas por pessoas que às vezes falam mal contra o comunismo. Esse é o modo pelo qual a humanidade aos poucos, aos poucos, aos poucos vai ficando cada vez mais próxima do comunismo. É o grande modo de ação do comunismo.

Eu volto a dizer: a luta direta contra o comunismo é indispensável e urgente. É de uma importância transcendental. Mas ela por si só não basta. Nós com ela conseguimos evitar o comunismo para o dia de amanhã. Nós não conseguiremos evitar o comunismo para daqui a dez ou vinte anos. Porque cada vez mais, cada vez mais vai se achando natural o comunismo. E com isso nós chegamos até onde?

* Nós devemos ser homens que vivem continuamente à procura do Absoluto

Qual é a conclusão que se tira daí? É que o verdadeiro católico deve pensar de modo diametralmente oposto. Para ele, ele deve ter a convicção de que a realidade externa existe; não só de que a realidade externa existe mas que ele é capaz de conhecer verdadeiramente, objetivamente.

Mais ainda, que ele é capaz de conhecer que por detrás de tudo quanto há de mutável, de efêmero, de passageiro na vida humana, no universo, há um Criador eterno e absoluto, causa e fonte de todas as perfeições e de todas as qualidades que existem em todos os seres. Mas que nos seres podem variar. Nele não variam nunca.

E quando nós percebemos ou consideramos aquilo que é variável nós somos levados então a consideração daquilo que é invariável. E vendo o relativo, somos levados a consideração do absoluto.

Essas flores, por exemplo, que estão em torno de Nossa Senhora. A flor é apontada pela Sagrada Escritura como símbolo da fragilidade, da fugacidade das coisas que passam. Há um trecho do Antigo Testamento que diz: "O homem é como a flor do campo. Passa-se de manhã e ela está com toda a sua beleza; volta-se à tarde, ela já não existe mais". É fugaz.

Olhando essas flores eu vejo que elas são fugazes. Elas são flores que estão cortadas, elas já estão fadadas à morte. Elas podem estar bonitas, mas a morte delas já é inteiramente inevitável. Entretanto eu devo ver nelas um símbolo de Deus, eterno, absoluto, imutável, que tem em Si de modo perfeitíssimo as qualidades de que essas flores são um símbolo e que nEle nunca mudam, e que nos convida a nós para uma eternidade na presença dEle, para conhecermos e adorarmos a imutabilidade e o dom, a qualidade absoluta de todos os predicados dEle.

Nós devemos ter uma vontade do Absoluto, uma vontade do Eterno, uma vontade do imutável. Nós devemos exatamente querer sair desta vida para chegar a uma existência mais alta, onde nada mais mudará, e onde tudo estará fixo e eterno, repousando na contemplação da beleza e da perfeição e da santidade absoluta de Deus que nunca mudará, mas que é inesgotável, porque eu sou limitado e Deus é ilimitado.

E portanto considerando-O eu terei sempre algo de novo a ver, algo que para mim será uma novidade eterna a mais. Durante toda a eternidade e não conhecerei Deus inteiramente. E por causa disso Deus será para mim sempre novo, sempre absoluto, sempre perfeito.

Por causa disso também as minhas convicções devem ser como Nosso Senhor Jesus Cristo diz no Evangelho, que deve ser a nossa linguagem. Nosso Senhor Jesus Cristo disse: "Seja a vossa linguagem, sim, sim; não, não". Em linguagem comum no Brasil se diz: "Pão, pão; queijo, queijo". Se o pão não é queijo, o queijo não é pão.

Quer dizer, o que é, é; e o que não é, não é. Quer dizer, espíritos afirmativos, espíritos categóricos, espíritos que crêem no que dizem, que só dizem o que crêem, e que sobretudo têm uma crença absoluta na Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana.

* Há certas verdades às quais, ou a pessoa adere com entusiasmo, ou é relativista

E quando nós virmos em torno de nós pessoas que parecem ter as nossas convicções, mas que são moles no adotar essas nossas convicções, não se entusiasmam ao adotar essas nossas convicções, nós já podemos desconfiar que são pessoas relativistas. Porque não é possível uma pessoa ouvir certas coisas sem se entusiasmar. E se não se entusiasma é porque não crê. Se cresse de fato, se entusiasmava.

Vamos dizer, por exemplo, uma pessoa que ouve – aqui está o exemplo característico: os francos primitivos quando foram convertidos por São Remy, bispo de Reims, eles ouviam a Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, e Clóvis e seus guerreiros levantavam as lanças quando ouviam as infâmias que eram feitas contra Nosso Senhor Jesus Cristo; e Clóvis disse: "Por que é que eu não estava lá com os meus guerreiros?" Para pegar aquela gente e pôr os pingos nos "is" de uma vez só, segundo o bom sistema, o bom sistema!

Não se pode ver matar o Filho de Deus e achar que o “bom sistema” é ficar de braços cruzados. É a conivência com o deicídio.

Se eu vejo matar uma criança na rua, mais ainda, se vejo matar um criminoso por alguém que não representa a mão da justiça do Estado, eu não intervenho, eu sou cúmplice, quanto mais vendo matar o Filho de Deus. Se eu não intervenho, o que é que eu sou senão um cúmplice? É evidente. Esses homens tinham fé.

Agora, um que fosse capaz de assistir a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo. "Coitado... como está sangrando. É verdade, são uma hora da tarde, provavelmente às três horas da tarde Ele vai morrer. Está bom, coitado, eu estou com pena dEle. Agora deixe eu tomar o meu refresco". Esse não podia crer que era o Filho de Deus. Essa indiferença é de tal maneira contraditória com a crença de que é o Filho de Deus que nesta indiferença já entra o germe do relativismo, já entra o primeiro passo do relativismo.

* O espírito sem relativismos é aquele cuja Fé é capaz de mover montanhas

Depois quando nós vemos pessoas que nos afirmam que têm princípios bons, mas que de cá, de lá e de acolá sustentam pelo contrário coisas contraditórias, erradas, também nós devemos tirar a conclusão de que são pessoas relativistas, que querem no fundo nos contaminar com seu relativismo.

E nós devemos então, não só negar o erro que a pessoa tem, mas negar o espírito relativista, e dizer: diante da convicção mole dele a minha reação é uma reação de um ato de fé, profundo, verdadeiro, sincero, que desagrave a Nossa Senhora. A fé que move as montanhas. Nosso Senhor no Evangelho louva isto: um homem que tenha uma fé tal que quando ele reza as montanhas se movem; é a fé que move as montanhas. Esse é o espírito sem relativismo. E assim deve ser a nossa fé.

Bem entendido, isso supõe uma análise muito exata de todo o ambiente, por exemplo, o ambiente colegial onde os senhores se movem, de todo ambiente que os senhores têm em torno de si; os artigos que lêem em jornais, e outras coisas do gênero; supõe uma análise exata.

Não quer dizer que os senhores estejam em discussão com todos que são relativistas. "Olha lá, está vendo, isso é relativismo, etc." Muitas vezes isso é imprudente. Nós não devemos estar discutindo nem criando encrencas com as pessoas às quais nós devemos respeito e consideração, às quais nós devemos uma caridade especial. Muitas vezes não é oportuno nós discutirmos, mais convém ficarmos quietos.

Mas na nossa alma nós devemos conservar a convicção da verdade. E a verdade é esta: Veritas Domini manet in aeternum diz o Antigo Testamento. "A verdade de Deus permanece eternamente". A lei de Deus, os dogmas da Igreja, os princípios da ordem natural, tudo aquilo que é verdadeiramente base da civilização e da civilização cristã, isto não mudará nunca.

E mesmo quando o mundo tiver acabado e que Deus vier julgar os homens, essas verdades e esses princípios e essas leis continuarão em vigor. Nosso Senhor disse: "Passarão o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão". Quer dizer, se há um exemplo de crença absoluta e de afirmação das verdades eternas nós a encontramos em Nosso Senhor Jesus Cristo, modelo de todas as virtudes.

E assim devemos ser nós. Quer dizer, cautos com a influência do relativismo, e ao mesmo tempo muito enérgicos, muito firmes, muito coerentes no professar as nossas idéias, embora com a prudência necessária nos ambientes em que nós vivemos. Com isso está feita a exposição sobre o relativismo.

Eu pergunto se fui claro ou se queriam fazer alguma pergunta.

(Aparte inaudível)

* A contínua procura de novidade da parte das pessoas mais ricas é uma prova de que tudo nesta vida é efêmero

A coisa é o seguinte: eu mover-me pelo meu interesse é propriamente eu fazer um absurdo, pela seguinte razão. Eu sei que todas as coisas na terra, por mais que eu as tenha, e por mais prazer que elas me derem, dão-me um prazer efêmero e passageiro. Primeiro, porque tudo quanto há na terra que possa me agradar, ao cabo de algum tempo não me agrada mais.

Basta eu olhar as pessoas mais ricas que há na terra, elas estão continuamente, se os costumes delas são maus, trocando de esposo ou de esposa; ao lado disso tendo uma outra coleção de fassuras ou de "fassures"; estão sempre trocando de automóveis; estão sempre viajando e se deslocando nos vários lugares; estão sempre à procura de novidade; televisão ligada por toda parte; só querendo saber do que acontece fora.

O que quer dizer tudo isto, essa eterna procura de outras coisas, se não que as coisas que elas têm não as satisfizeram? Entra pelos olhos.

O que caracteriza o rico que não faz bom uso de sua riqueza – e infelizmente na nossa época de neopaganismo, portanto a grande maioria dos ricos –  o que caracteriza o rico que não faz bom uso da sua riqueza é a contínua mudança de tudo; gostam até de mudar de casa, de mudar de móveis; do que podem. Mudar de modas então nem se fala. A mudança contínua de tudo é a própria regra do prazer na vida. Se isto é assim é porque nada lhes satisfez completamente. Quer dizer, eles vivem continuamente na ponta de uma insatisfação, procurando uma satisfação que eles sabem que vai dar uma insatisfação nova.

É isso o espírito deles. Ainda mais em nossa época sem tradição, em que nada se conserva, em que as coisas do passado também não se conservam, tudo é continuamente vendido, dilapidado, recomprado pelas mesmas pessoas. Tudo está completamente na sarabanda...

* Ou há um Absoluto para o qual tendemos continuamente, ou não valeria a pena existir

Depois, imaginem que isso não fosse assim, e que as coisas terrenas a mim me satisfizessem. Eu sei que virá um momento em que eu terei que deixar essas coisas e que eu vou ter que morrer. Porque eu passo como essas coisas passam. Eu descendo, de Adão para cá, de quantos homens, de quantas mulheres? Nem sei, nem se poder escrever, nem ninguém conhece todos os elos que me prendem ao primeiro homem. Todos morreram. Eu vou morrer também.

Agora, do que me vale todo o prazer que a terra possa me dar se eu estou refletindo continuamente sobre este ponto: de um momento para outro tudo isto pode passar, e eu, ou vou ser eternamente infeliz ou caio no vácuo do não ser, eu morri.

Meu exemplo pessoal é uma prova disso. Há sete ou oito meses atrás eu estava andando numa esplêndida Mercedes, numa estrada do interior de São Paulo, e muita gente que me via passar pela estrada deveria pensar: "Que delícia ser aquele homem, dono daquele esplêndido automóvel". Eu nem me lembro quando, e eu talvez estivesse dormindo no carro, chega a hora destinada pela Providência para uma grave provação para mim, e eu sofro um acidente que por pouco não me mata. Podia me ter morto.

Agora, qual é a reflexão de quem vê aquele Mercedes amarrotado como ficou, à beira da estrada? É que esse homem poderia ter morrido ali. Aquela delícia dele do que é que valeu? Ele foi do automóvel cômodo para o leito de dores, do qual ele ainda não se separou ao cabo de sete ou oito meses de tratamento incômodo, molesto, penoso. A realidade é esta.

Então, o que é a vida? Para que me esforçar, para que cuidar dos meus interesses se os meus interesses me abandonam; para que procurar o prazer se o prazer não me sacia? Ou existe um Ser absoluto para o qual eu vivo, e que é capaz de dar-me aquela estabilidade no prazer, na felicidade que eu procuro, ou existe este Ser ou eu quase me pergunto se não é melhor eu me aniquilar. Essa é a verdade para quem queira olhar de frente as coisas.

Agora, agora, pode acontecer que arrebente nesta noite uma guerra mundial, e pode acontecer – ninguém sabe essas coisas estratégicas como são – que resolvam jogar uma bomba atômica em São Paulo. Pode acontecer. Por exemplo, para paralisar toda a indústria brasileira, que tem o seu ponto nevrálgico em São Paulo. Pode acontecer.

Pode acontecer, portanto, que enquanto o senhor ou eu estivermos comodamente dormindo em nossas camas, de repente nos desintegremos sem saber, e comparecemos diante da presença de Deus, infinitamente majestoso, mas para o qual a era da misericórdia terá acabado. É a hora da justiça: "Dê-me conta de sua vida. O que é que você fez?" E eu da cama vou para o Juízo de Deus. Do Juízo de Deus para onde é que eu vou?

Quer dizer, ou eu tenho a convicção de Deus absoluto e eterno, razão de ser de todas as coisas, para O qual eu vivo, ou a vida é uma loucura, a vida é uma gagueira com tudo que ela tem de precário. O senhor imagina que noite o senhor passará se na hora do senhor apagar o seu abat-jour, coisa que o senhor faz com tanta comodidade toda a noite, o senhor apaga o abat-jour e pensa: "Agora uma bomba atômica pode me consumir durante esta noite", e o senhor entra calmamente no sono!

E quanto mais o progresso se acentua, tanto mais isso é assim, e tanto mais nós ficamos dotados do senso de nossa precariedade. Se nós tivermos bem isso diante do espírito nós compreenderemos que esses que vivem correndo atrás do seu próprio interesse são os que caíram no erro do demônio, porque eles colocaram os seus interesses onde não está. O verdadeiro interesse do homem está onde está o fim de sua vida. E o fim de sua vida é Deus Nosso Senhor. O resto é zero.

Alguém dirá: "Bom, mas pode ser que eu fique pobre".

É verdade. Mas o que é pior: ficar pobre ou ficar demônio? Tomem um pobre mais pobre que possa haver na terra, coberto de lepras e de chagas. Uma certeza ele tem; aquilo vai acabar, e depois ele tem o Céu.

Os senhores tomem um demônio, está no inferno totalmente infeliz, por toda eternidade; nunca acabará mais. Quem é mais infeliz?

Logo, o nosso grande interesse é procurar o nosso fim. Ainda que nós fôssemos interesseiros nós seríamos desinteressados tratando de servir a Deus Nosso Senhor. Servir a Deus é uma palavra vaga. Como é que a gente serve a Deus? É praticando os Mandamentos da lei de Deus e lutando por Deus contra os inimigos de Deus. Para isto nós temos a TFP. Esta é a nossa vocação. Ela é que dá o sentido a nossa vida.

Há mais alguma pergunta?

(Pergunta: O senhor disse que as coisas criadas são filhas de Deus e elas refletem algum absoluto de Deus. Agora, a Revolução também tem suas filhas e tudo que ela produz ela impregna desse relativismo. Por exemplo, esse microfone. O senhor podia mostrar como é que nós podemos ver o relativismo nesse microfone?)

Começa por aí, que não pode haver maior manifestação de contingência do que a de um microfone. O mais admirável dos microfones faz uma coisa que se um homem vivesse para isso ele recusaria viver. É estar aqui como uma espécie de orelha mecânica a ampliar tudo quanto se diga dentro dele, inclusive os maiores desaforos para ele, e a registrar. Parado, quieto, imóvel, reduzido a um serviço mecânico, de tal maneira, que até se eu quisesse eu poderia me distrair em destruí-lo.

De maneira que ele é tão contingente, tão dependente, que até para isso ele não vale nada.

Mas há mais. Os senhores dirão: "Mas o microfone não é uma maravilha do progresso humano?" Em certo sentido é. Agora, eu queria que os senhores me dissessem o seguinte: para as modernas escolas filosóficas estruturalistas, para os quais nenhum progresso é bom e o homem deve voltar à era da pedra lascada – é a última novidade em matéria de filosofia – o que é esse microfone? É um lixo, uma porcaria. A grande novidade é a pedra lascada ou polida com que o homem primitivo vive.

De maneira que é tão passageiro que em todas maravilhas dele de repente vira lixo. E a pedra da rua que ele desprezaria se ele pudesse pensar nela, é atrás dela que a loucura humana vai correndo. Isto é o microfone.

Não sei se minha resposta responde sua pergunta.

(Pergunta)

* O desejo que Dr. Plinio tinha de viver em função do mar e como fez para frear tal desejo

O senhor imagine uma pessoa que vê alguém pôr uma bengala dentro d'água. Como o senhor sabe uma bengala colocada dentro d'água, por um fenômeno de refração, dá impressão de estar quebrada.

Vamos dizer, uma criança põe uma bengala dentro d'água, a bengala do pai, e tem impressão que quebrou. Diz: ah! ... Puxa a bengala fora d'água para examinar o desastre e vê que a bengala está reta. Curioso! Põe a bengala dentro d'água de novo, quebra. Então a criança mete a mão dentro d´água para ver se a bengala quebrou. E ela tem a sensação de continuidade quando sua vista apresenta uma sensação de descontinuidade. A criança fica então convidada a fazer um juízo sobre o fato: quebrou ou não quebrou a bengala? A criança chega à conclusão: a bengala não quebrou. Essa é a criança ordenada intelectualmente.

Isso se repete ao longo da vida do homem, mil e mil vezes. Nós temos continuamente impressões contrárias a razão. E nós devemos educar as nossas impressões na hora em que vem a impressão, detestando aquela impressão como sendo uma fraqueza nossa, um fruto do pecado original e dos defeitos que nós adquirimos na vida, e nos pondo com energia na convicção oposta. Então aquilo que se chama vivência, desaparece.

Eu lhe dou um exemplo. O mar. É uma sensação, que eu tenho, que eu tinha já quando era pequeno, quando era mocinho eu tomava banho de mar; não devia fazer, mas fazia. Eu não tinha começado ainda minha atuação como católico etc.

Eu me lembro que quando eu entrava no mar eu tinha tal satisfação e alegria de estar dentro do mar, no banho de mar, aquilo me dava uma tal conaturalidade, um tal contentamento que minha idéia era de nunca mais sair de dentro do mar.

Eu dizia: "Eu agora vou ficar aqui, minha felicidade seria ficar aqui no mar o tempo que puder, quando não agüentasse mais ia para praia e ia comer frutos do mar e depois que eu tivesse acabado de dormir, eu voltava para o mar. Porque toda essa história, colégio, ficar advogado, ter relações, o que é isso em relação com a onda que vem?... Isso aqui é a coisa, que me diverte, que me agrada, que me entra pelos poros. O resto são construções do espírito que esses bobos que estão em torno de mim fazem. A coisa é a onda...

Eu até vou lhe contar mais – eu estou me atrasando muito... depois, essas reminiscências pessoais não... interessam muito menos – mas eu me lembro desse fato. Uma vez eu estava tomando banho de mar, eu, em geral, ia com grupo de pessoas tomar banho de mar, mas depois me afastava tanto quanto eu podia, não demais, mas um pouco, para degustar o mar só de mim para comigo, para entender, para inalar inteiramente as delícias marítimas, o ruído das ondas, o impacto do mar que chega, o vai-e-vem, o gostoso de me mover na água meio carregado por ela e meio empurrando a ela. Acho uma coisa de primeira ordem!

Sobretudo, meu gosto pessoal não eram as ondas que quebravam, eram as ondas que não quebravam e que me carregavam, maravilhosos colchões ambulantes e macios para pessoas de temperamento calmo como sou eu.

Uma ocasião aconteceu isso: veio uma onda, era um dia claro, muito bonito, sol etc., veio uma onda e eu fui para baixo e toquei com os pés no chão, estava um pouco fundo; toquei com os pés no chão; mas estava tão bonito, tão bonito lá dentro que eu não senti falta de respiração, até hoje eu não sei como explicar isso, tanto mais que eu sou muito sensível a falta de ar. Não senti falta de respiração. E vi ali dentro aquela natureza glauca. Eu tinha impressão que estava vivendo dentro de uma pedra preciosa. E tive a idéia seguinte: "Quer saber de uma coisa? Eu não vou para cima, eu vou agora ficar aqui. Acabou a história”

Se não fosse a idéia de que isso poderia ser um suicídio e que era contra a moral católica, e eu não queria pecar por nenhum preço, eu não sei que disparate eu teria feito naquela ocasião. Era a delícia do mar.

Mas, eu corrigi isso de dois modos. Primeiro, chegando em casa – quem toma banho de mar, ao menos acontecia comigo, não sei se acontecia com os senhores – ficava meio marítimo durante algum tempo depois ainda... E os senhores riem porque sentem que é isso.

Eu naquilo fazia a reconstrução: "Olha, que delícia besta, como isto me afasta da realidade, como isso é tonto, como não pode ser. Eu não posso absolutamente me convencer daquilo que minha vivência me apresenta que a vida de um homem vivendo no mar inteiramente seria boa". Depois dentro do mar, na hora de chegar a onda: "Olha que besteira, que vergonha, que coisa cretina estava passando pela minha cabeça". Até reeducar a postura de minha alma perante o mar.

Assim eu fiz com muitas coisas revolucionárias; e quantas, e quantas e quantas...!

Assim nós devemos fazer. Aí as tais vivências baixam o facho. E, uma vez que se fala em ulteriores desenvolvimentos da TFP etc., eu creio que um dos pontos da vida espiritual na TFP que precisa ser posta em ordem e regularizada é exatamente um modo acessível a todos, com a graça de Nossa Senhora, esta posição, esta atitude de retificação das vivências.

O senhor dirá: "Não é fácil". Eu digo: Não, não é fácil, não. Diga logo de uma vez: é dificílimo! Há um dogma de fé que diz que ninguém pode durante muito tempo praticar simultaneamente os Mandamentos todos da lei de Deus. Um homem que pratica a lei de Deus é um milagre. Está bem. Peçamos esse milagre. Pratiquemos a lei de Deus também nesse ponto.

Está claro?

Eu quero ver quantas perguntas são porque eu ainda tenho que dizer uma palavrainha sobre Nossa Senhora de Fatima. São duas perguntas, além do senhor. Pois, não, faz favor.

(Pergunta: Pediria que o senhor refutasse toda essa distensão com o comunismo, porque é toda relativista, não? No Manifesto da Resistência o senhor fala de passagem, que não justifica que para favorecer os católicos de trás da cortina de ferro... O senhor podia explicar a "détente" do ponto de vista relativista?)

* O homem que não tem Fé não é capaz de retribuir um bem recebido. Ele paga o bem com o mal

A distensão com o comunismo tem como pressuposto um grave erro de doutrina católica. Porque supõe o seguinte: que a causa real da malícia dos comunistas é o ele estar em luta comigo. Mas que se eu tratar com bondade ele fica agradecido e muda de idéia. Portanto ele é apenas um indivíduo bom, equivocado. Se ele for bem tratado ele muda. Isso é o que está no fundo da détente.

Então começam os americanos a dar tesouros nem sei de que valor para os comunistas. Paulo VI a facilitar não sei de que maneira a aproximação com os comunistas. E depois do exemplo dele mais outros, com a idéia de que podem mudar a posição dos comunistas. Ora, isso é o erro.

Aquele que é ateu este não é capaz de ter uma reciprocidade adequada aos benefícios recebidos. Isso só consegue o católico quando ele é muito bom católico, por causa da graça de Deus. Porque o homem pela sua natureza é mau, ele é ruim. E quando ele se afasta de Deus e ele se fixa no ateísmo, não é por meio de agradinhos que nós o podemos fazer voltar, mas nós podemos e devemos fazê-lo voltar pela convicção e impedi-lo de agir, de fazer mal aos outros, se for preciso, pela luta; naturalmente dentro da observância das leis, do contrário é uma loucura.

Basta pensar um pouquinho nos dez leprosos do Evangelho. Desses dez um só veio agradecer a Nosso Senhor. Entretanto graça maior na ordem material, temporal, não se pode dar a alguém do que sará-lo da lepra.

Agora, como se explica que nove foram tão ruins? Porque o homem é ruim, é concebido no pecado original; e se ele não tem Fé e não pratica direito a Fé, é como ele paga, ele paga o bem com o mal.

Agora, pensar de modificar a atitude dos comunistas com agradinhos é o quê, então? É a utopia das utopias. É um modo relativista de tomar a doutrina católica sobre o pecado original. A gente acredita, mas na hora de aplicar, aplica outra coisa.

(Pergunta: O que fazer para não relativizar essa doutrina que o senhor deu?)

* Método para não relativizar a doutrina dada nesta reunião

O verdadeiro, meu caro, é o seguinte: não há outro modo: é estudar, reduzir a alguns princípios e praticar. Porque do contrário, a memória do homem é como areia, sopra o vento em cima e leva à breca.

Como pode nos adiantar uma doutrina que nós esquecemos? Temos que estudar, não tem por onde escapar. E depois de estudar, aplicar. Quer dizer, fazer um roteiro. Uma vez por dia, por exemplo, eu vou notar um exemplo de relativismo que eu encontrei em torno de mim. Depois duas vezes por dia, depois três vezes por dia... progressivamente. E aí eu vou me adestrando em notar o relativismo. Depois da terceira vez eu começo então a adestrar-me a detestar o relativismo, pensar no que aquilo tem de ruim. E assim aos poucos eu fico um anti-relativista completo.

Eu compreendo que você possa dizer: "Mas isso precisa ser disciplinado dentro da TFP".

É verdade. Por isso é que, se a Providência não dispuser outras provações para nós, o que é sempre possível, ninguém sabe, do dia de amanhã, se nós pudermos nós metodizaremos nesse sentido a TFP.

(Pergunta: O senhor podia dizer quais são as fontes por onde o relativismo mais penetra dentro do Grupo, pode penetrar ou existe?)

Eu creio que o ponto que mais penetra o membro do Grupo no relativismo é ele imaginar que as pessoas que são relativistas, no fundo têm a mesma mentalidade que ele. Ele deve habituar-se a notar que embora as convicções na sua formulação possam ser iguais, no relativista elas tem um matiz que as muda substancialmente. No espírito do relativista a certeza é uma hipótese apenas. No nosso espírito a certeza é uma certeza. É o que se deduz do que eu disse.

(Pergunta: O relativismo, o espírito democrata-cristão se opõe a qual qualidade de Deus?)

Em tudo, porque Deus se definiu a Moisés: "Eu sou Aquele que é", e Ele é perfeito e absoluto em tudo, o relativista em qualquer atitude que toma, ou atitude interior ou externa que toma conforme às suas idéias, ele está afirmando uma dissemelhança dessas coisas com Deus. Porque todas elas tendem ao serviço de Deus, elas tendem ao serviço do absoluto, e ele declara: "Não há absoluto"; no fundo "Não há Deus".

* No início da novena a Nossa Senhora de Fátima

Bem, meus caros, uma palavra a respeito de Nossa Senhora de Fátima.

O Santo do Dia durou muito mais do que eu queria, o tema é complexo, eu sou obrigado a reduzir a matéria sobre a qual eu quereria fazer uma exposição muito mais longa. Os senhores vêem a situação internacional como é, e os senhores percebem perfeitamente que dada essa situação internacional, de um momento para outro se descarrega sobre o mundo o castigo que Nossa Senhora previu em Fátima. Quer dizer, muitas nações serão aniquiladas, etc., e no fim, "O Reino do Meu Imaculado Coração triunfará!"

Agora, Nossa Senhora em Fátima justifica, portanto, um dos títulos que a Igreja Lhe dá na Ladainha Lauretana, Regina Profetarum. Ela é a Rainha dos profetas. Ela fez uma previsão do futuro, nesse sentido uma profecia, com a ciência revelada que Ela tinha daquilo que Deus lhe contou. E Ela comunicou por meio dos três pequenos pastores, essa profecia para o gênero humano.

Nós o que é que devemos pedir a Nossa Senhora hoje? Nós vemos que na situação em que o mundo está é cada vez mais penoso e difícil praticar o bem; e de outro lado, o mal se torna cada vez mais aliciante e atraente. E que por causa disso o número dos bons que se perde é cada vez maior.

Ora, o eixo da História são os eleitos, o eixo da História são os bons. E eu creio que se pode afirmar que nunca houve uma época tão difícil para os bons como essa época que nós estamos vivendo. É talvez por isso que nós vemos que o demônio vai retardando, retardando a deflagração da Bagarre indefinidamente; cada vez demora mais um pouco. É porque ele quer apodrecer completamente os que aqui estão, todos os bons que há na terra para que depois ele possa estabelecer o seu império.

Se é isso que o demônio está querendo, nós devemos pedir a Nossa Senhora o contrário. E devemos pedir a Ela que se Ela, na sabedoria dEla não há outro meio de libertar de perigos da alma, gravíssimos, aqueles a quem Ela quer tanto salvar, que Ela então descarregue o cumprimento dessas profecias.

Os senhores sabem que São Pedro disse que o Dilúvio foi ocasião para muita gente se salvar, que muita gente teria morrido na cama e teria ido para o inferno, por causa do castigo do Dilúvio salvou-se. De maneira que o Dilúvio, que evidentemente foi um castigo, considerado nos seus aspectos mais profundos, para um número de almas que só Deus conhece, foi entretanto uma grande misericórdia.

Nós não estamos pedindo, portanto, que Deus cesse suas misericórdias para com o mundo, mas que até para com os maus Ele tenha essa misericórdia. Ele os castigue, se não houver outro meio, de maneira tal que pelo menos pelo castigo eles se convertam, e eles não tenham a eterna infelicidade da condenação eterna.

Nós devemos pedir a Nossa Senhora: "Venha a nós o vosso Reino, pela destruição da conjuração de todos os vossos inimigos e eventualmente pela debelação e pela destruição daqueles inimigos que está nos planos da providência Divina que sejam destruídos, para que seja feita assim a vontade de Deus assim na Terra como no Céu". E dessa forma o Reino de Maria se implante quanto antes.

Eu recomendo aos senhores que rezem nessa direção. E para começarmos hoje, juntos, a novena que hoje começa, eu proponho que antes das orações do Grupo nós rezemos três "Padre- Nosso", três "Ave-Marias", três "Glória ao Padre" em louvor de Nossa Senhora de Fátima, como homenagem e pedindo-lhe essas graças.

Vamos nos levantar e rezar.


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