Plinio Corrêa de Oliveira

 

Comunismo:

ateísmo + igualitarismo

(ser humano - natureza - universo

ou cosmos) = antireligião

 

 

 

 

 

 

Conferência de 10 de maio de 1975

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A D V E R T Ê N C I A

Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor.

Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá Dr. Plinio em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 


Os elementos fundamentais para se ter uma noção clara do comunismo, que inclusive um bom pai e uma boa mãe não podem dispensar-se de conhecer. Para aprofundar o tema, vide por exemplo a obra "Revolução e Contra-Revolução" (Parte I, Cap. III, n. 5).

 

[...] são dez para as onze, nós temos mais ou menos 45 minutos para tratar da questão do comunismo. Então nós vamos entrar na questão diretamente.

O comunismo é, propriamente, o que se poderia chamar, uma anti-religião. E é antes de tudo uma anti-religião. Quer dizer, o comunismo trata de economia, de política, de sociologia, de história, de ciência – a doutrina comunista versa a respeito de todos os assuntos, ela influencia todos os assuntos. Mas há um elemento único que é o que influencia em todos esses assuntos. E esse elemento é uma tomada de posição perante a questão religiosa.

É porque o comunismo é a negação radical de toda a religião, de todo o princípio religioso e até da existência de Deus ou da espiritualidade da alma, é por esta razão que os comunistas tirando daí consequências para os mais variados campos, constroem uma concepção da vida, uma concepção da sociedade, da família, da cultura, da arte, da política, de tudo quanto os srs. queiram, que é uma concepção própria e especificamente ateia. É a conclusão do ateísmo.

Então os srs. podem dizer que há um certo paralelismo entre a Idade Média e o comunismo. Na Idade Média os homens todos reconheciam a Igreja Católica como única Igreja verdadeira. E daí tiravam, então, conclusões que eles aplicavam aos mais variados campos da vida humana. Isso deu origem a uma cultura e a uma civilização.  A cultura se chama cultura católica; a civilização se chama a civilização católica.

Poder-se-ia dizer: mas há uma só civilização católica? Não poderia haver várias civilizações católicas? Vamos dizer, por exemplo, se os chineses se convertessem, não poderiam continuar usando seus quimonos, ter seus prédios característicos, sua língua, sua arte característica? Eles não teriam, portanto, uma civilização que seria católica, mas que seria diferente da civilização medieval? Há várias civilizações ou há uma só civilização que é a católica?

A resposta é: a palavra civilização tem um sentido lato e um sentido estrito. No seu sentido lato, a palavra civilização se aplica como um denominador comum a todas as civilizações e aquilo que as civilizações têm de comum e faz com que elas sejam adequadas ao homem. Aí há uma só civilização porque há uma só natureza humana.

A ordem de coisas, o estilo de pensamento que são relacionados com a natureza única do homem no mundo inteiro, adequadamente relacionados, e que nos dão, portanto, a verdade a respeito não só do universo, mas sobretudo a respeito de Deus Nosso Senhor, isto constitui a civilização católica ou a cultura católica.

Sendo que pode haver várias formas de cultura católica, várias formas de civilização católica. Mas, em essência, a civilização católica é una; a cultura católica é una.

O mesmo se pode dizer do ateísmo. Há uma só civilização ou cultura ateia. Se é que se pode chamar isso de “civilização” e de “cultura”. Se os srs. me lembrarem, no final – não da reunião de hoje – mas das exposições que eu pretendo fazer sobre o comunismo, eu tratarei dessa questão: se há uma civilização ateia e se há uma cultura ateia; se o comunismo é uma civilização, ou é uma anti-civilização; se ele é uma cultura ou uma anti-cultura. Isso nós trataremos depois.

Mas eu digo que seja ele civilização ou uma anti-civilização, uma cultura ou uma anti-cultura, em qualquer caso há uma só civilização ou uma anti-civilização ateia. Uma só cultura ou uma anti-cultura ateia. Essa cultura ou essa civilização está presente inteira no comunismo. Quer dizer, o comunismo reúne todas as características do ateísmo. Ele é, portanto, uma das formas possíveis do ateísmo, mas é uma das formas mais radicais. Em nosso século ele é o ateísmo por excelência.

Qual é a doutrina fundamental do comunismo? O comunismo declara que a razão humana, a inteligência humana, não só não prova a existência de Deus – todas as provas da existência de Deus são falhas, não são racionais, segundo eles – não só não prova a existência de Deus, mas chega a provar que Deus não existe.

[vira a fita]

...é natural que a alma humana não seja espiritual. Porque se não há um Deus, espírito puríssimo, criador do céu e da terra, não pode haver almas espirituais. A espiritualidade da alma é um corolário da espiritualidade de Deus.

De outro lado, dizem eles, a ciência nunca provou se existe a alma. Pelo contrário, ela prova que a alma não existe. Resultado é que o comunista é ateu e porque ateu, muito logicamente, porque eles são lógicos no erro – e esse é o grande mal deles – eles não só professam o erro mais radical, mas eles levam o erro até as últimas consequências, muito logicamente eles são cruamente materialistas. Quer dizer, para os comunistas só existe uma realidade, essa realidade é a matéria.

Vamos nos entender agora, bem, sobre essa realidade.

É matéria... está bem. Mas o que vem a ser a matéria? Dizem eles o seguinte: o homem – portanto, com sua capacidade de pensar, de querer etc., com aquilo que nós explicamos pela espiritualidade do homem – o homem não é o ser superior que o católico afirma.

Para o católico, a criação consta de uma hierarquia: primeiro, os Anjos, puros espíritos. Depois, os homens, espírito e matéria, portanto, menos do que os Anjos. Depois, então, todos os outros seres, que são matéria. Mas esses seres também são divididos em uma hierarquia, porque existem os seres animais, os seres vegetais e os minerais.

Os seres animais vivem e têm notícia da existência de um mundo externo. Um boi, um cavalo, um cachorro, eles não têm uma intelecção, eles não raciocinam sobre o mundo externo, mas eles têm notícia, os sentidos deles lhes fazem sentir, perceber a existência de um mundo externo a respeito do qual eles ignoram tudo. Tanto é que os srs. estendendo para um gato um pote de leite, ele bebe o leite; dando a um rato um queijo, ele come o queijo. Quer dizer, ele percebeu, seu corpo quis e ele se dirigiu para aquele leite, para aquele queijo e comeu. Quer dizer, ele percebe o mundo externo; não conhece porque conhecer é objeto da inteligência – quem não tem inteligência não conhece – mas ele tem notícia do mundo externo.

Depois, abaixo do animal, nós temos o vegetal. O vegetal não é capaz de se mover, como o animal. Ele não tem movimento próprio a não ser a partir de sua própria raiz. Quer dizer, ele é atado ao lugar onde ele está. E ele não tem propriamente uma notícia do mundo externo. É verdade que certas plantas manifestam sensibilidade – mas a palavra “sensibilidade” aqui vai entre aspas – em relação ao sol. De maneira que quando bate o sol, elas se orientam, crescem na direção do sol, beneficiando-se assim da vantagem do sol. Mas esta capacidade de “entender” alguma coisa que tem a planta (a flor se abre, certas flores à noite se fecham etc.) isso não é propriamente nem movimento, nem sensibilidade. É apenas uma espécie de receptividade química muito elaborada que eles têm e que os levam a tomar essa posição.

Depois, abaixo de tudo, nós temos os minerais. Os minerais são como essas pedras aqui: inteiramente inanimadas, inteiramente sem sensibilidade, sem receptividade nem nada. Há, portanto, uma hierarquia completa nos seres da criação.

Essa hierarquia o comunismo nega fundamentalmente. Ele diz o seguinte: que o homem é só corpo e que como está provado pela teoria do “turbilhão vital” que mais ou menos de 7 em 7 anos o homem muda todo o seu corpo, exceto o esqueleto; como de outro lado está provado, também, que o esqueleto do homem se degenera com a morte, se transforma em pó e que esse pó é assimilado por outros seres e passa a integrar outros seres, então, dizem eles, não há uma diferença de hierarquia fundamental entre o homem e os outros seres.

Há, por exemplo, uma partícula qualquer, uma célula minha, que no momento constitui o meu dedo. Bem, porque constitui meu dedo, faz parte desse ser que se chama Plinio Corrêa de Oliveira, mas daqui a pouco, pela fricção, essa célula cai. Ela passa para o ar e ela vai se incorporar, se integrar, os elementos que a constituem vão se incorporar numa galinha, numa planta, ou vão ser, por uma reação química qualquer, absorvidos por uma pedra. E aquilo que era Plinio Corrêa de Oliveira passa a ser galinha, planta ou pedra.

Por outro lado, Plinio Corrêa de Oliveira come uma galinha, e assimila pela digestão, uma parte da galinha; então, a galinha vai ser Plinio Corrêa de Oliveira. Então, o que é no fundo Plinio Corrêa de Oliveira? Plinio Corrêa de Oliveira é uma denominação para uma composição instável e passageira da matéria. Durante algum tempo a matéria aglutinada em torno de determinados ossos constitui Plinio Corrêa de Oliveira. Quando, em torno desses ossos, a matéria morrer e os ossos morrerem também, e se desagregarem esses ossos, deixou de haver Plinio Corrêa de Oliveira. Mas se Plinio Corrêa de Oliveira é um elemento tão instável, tão precário, tão passageiro, o que ele tem de superior em relação à matéria que o compõe? Não tem de superior absolutamente nada.

Então, conclusão: Plinio Corrêa de Oliveira é nada, vale tanto quanto um cabo de vassoura, quanto uma galinha morta ou quanto uma rosa que está refulgindo esplendidamente no jardim do “Buissonnets” [nome dado à sede da TFP brasileira à Rua Martinico Prado, 246, na capital paulista, em homenagem à Santa Teresinha do Menino Jesus, cuja residência tinha o mesmo nome de “Buissonnets”, n.d.c.]. Porque tudo se transforma em tudo. Nada se diferencia de nada. E, portanto, tudo é igual a tudo.

É evidente que esta doutrina tem apenas uma parcela de verdade, que existe o “turbilhão vital”, existe. Mas o que caracteriza o homem não é a matéria que em determinado momento o compõe. O que caracteriza o homem é exatamente a alma, que estabelece uma ligação entre ele desde o nascimento até a morte. Alma que sobrevive a ele e que irá ao Céu [ou ao inferno] e à qual se juntará o corpo ressurreto no dia do Juízo final.

De maneira que pela doutrina católica nós temos, então, uma fundamental superioridade do homem sobre todos os seres. Mas, pelo contrário, segundo os ditames do ateísmo, todos os homens são absolutamente iguais entre si e são iguais a todos os outros seres. E nada equivale a nada. Então, no fundo do fundo, matar um homem, matar uma galinha, serrar uma árvore, o que são de diferentes?

Nós dizemos, baseados na doutrina católica, e na evidência dos fatos, que matar o homem é uma crueldade; matar uma galinha pode ser um ato de bom senso: é para comer a galinha. Matar uma planta... é o que a galinha faz. Ela vive de plantas. Portanto, está na natureza dela.  E está na ordem natural das coisas que a galinha coma a planta, e que o homem coma a galinha. Mas não está na ordem natural das coisas que um homem mate outro homem. Porque nós homens somos tão superiores, dotados de uma alma imortal e criados para a glória de Deus –   nós somos tão superiores  –  que o homem não tem o direito de matar outro homem para seu proveito próprio. Isso ele não pode fazer.

Então, consequência é essa: segundo a doutrina católica, na desigualdade fundamental da criação, há uma série de direitos e deveres que daí decorrem, que nós vamos analisar daqui a pouco, que a doutrina comunista nega que decorram.

O que existe, então, para o comunismo e o que existe para o católico?

Para o comunismo, eles acham que o homem... o comunista é evolucionista. Ele acha que existe, na natureza em geral, uma força obscura que impele todas as coisas a melhorarem continuamente. Todos os seres a melhorarem de estado, de cor, de felicidade e de perfeição constitutiva, continuamente. E que o homem é a matéria posta pela natureza no seu mais alto estado, que com o curso dos milênios o homem vai atingir um estágio mais alto do que o de homem. E os animais vão passar a ser homens; as plantas vão passar a ser animais; os minerais vão passar a ser plantas.

E que assim pode-se dizer que o homem é a cabeça de uma imensa serpente, que seria uma cauda feita de animais, de vegetais e de minerais que vão correndo atrás dele, ou vão se arrastando atrás dele nesse imenso caminho do progresso. Desde que o homem progrida, ele arrasta tudo atrás de si; se ele não progredir, o progresso universal pára, como numa cobra. Se a cabeça da cobra está imóvel, a cobra toda pára; se a cabeça da cobra, movida pela espinha, tende para a frente, toda a cobra anda.

Assim também o progresso do homem é o progresso do cosmos, é o progresso do universo. E a única coisa que verdadeiramente existe é o universo. Todas essas partículas do universo chamadas planta, homem, animal, Plinio Corrêa de Oliveira, Marcos Ribeiro Dantas, Fernando Furquim de Almeida Filho etc., nada disso tem importância. A única coisa que tem importância é que essa imensa cobra, essa imensa lagartixa que se chama a natureza, vá progredindo, e o resto é nada.

Os srs. analisando essa doutrina, os srs. percebem que está presente nela aquilo que o comunismo tem de mais característico: é a preocupação da igualdade. A única desigualdade que eles não podem negar – porque é evidente, que salta aos olhos – é a desigualdade entre os homens, os animais e as plantas, e depois os minerais. Porque salta aos olhos.

Eles então dão uma explicação dessa desigualdade dizendo que fundamentalmente tudo é igual, tanto é que cada um desses elementos será o que o outro que está nascente, é. Quer dizer, não há barreiras fechadas. Para nós, um gato jamais será um homem. Para eles o gato e o homem são composições materiais efêmeras. Haverá gatos, e os gatos que houver vão ser cada vez mais parecidos com o homem. Haverá ratos; os ratos que houver vão ser cada vez mais parecidos com o homem. Daí para diante.

O caminho está franqueado, e se hoje não somos iguais, em todo caso um dia virá em que o homem atinge o fim da sua meta e depois vai sendo atingido pelos outros. E todos ficarão completamente iguais.

E, sobretudo, não há Deus, não há Anjo, não há Céu. De maneira que não existe esse imenso, onipotente e eterno Monarca de toda a criação que é Deus criador de todas as coisas. Esse não existe. Nem criou anjos puros espíritos, superiores a nós. Tudo é absolutamente igual. A preocupação do igualitarismo hipnotiza inteiramente os comunistas. E eles construíram para si uma concepção do universo que é ao mesmo tempo inteiramente ateia e inteiramente igualitária.

Eu chamo a atenção dos srs. para o nexo entre as duas coisas: quem é inteiramente igualitário, tem que ser inteiramente ateu, porque não pode estar de acordo com a existência de um Deus. Quem é, pelo contrário, inteiramente ateu, tem que ser inteiramente igualitário. Porque se Deus não existe, o resto da lógica comunista é verdadeira.

De maneira que o problema do igualitarismo e o problema da religião são problemas intimamente ligados entre si. Quem tem espírito ateu, tem espírito igualitário; quem tem espírito igualitário, tem espírito ateu.

E por causa disto, o católico apostólico romano, verdadeiro, é muito afeiçoado às desigualdades. Porque as desigualdades justas e razoáveis existentes na terra são uma imagem das desigualdades que há do Criador para com as criaturas. E Ele criou as criaturas desiguais entre si para que umas representassem a Ele perante as outras. Os maiores são representantes de Deus perante os menores. Mas todo o maior é um representante de Deus e enquanto tal deve ser respeitado e acatado pelo menor.

Por sua vez, o maior sabendo que é um representante de Deus, não usa o menor para sua fruição, mas usa o menor para o benefício do menor, para orientá-lo, para protegê-lo, para esclarece-lo etc.

Há, portanto, como os srs. estão vendo, no fundo uma diferença radical entre comunistas e católicos. E falar de “comunismo católico” é a mesma coisa que falar numa “religião ateia”. Ou num “deísmo ateu”, ou num “ateísmo religioso”. São expressões absurdas. E estes que querem encontrar um denominador comum entre os comunistas e católicos, querem propriamente um estapafúrdio, querem reunir, num mesmo amálgama, doutrinas que são fundamentalmente e radicalmente opostas.

Se isto está claro eu passo, então, a outra parte da exposição. Eu pergunto se está claro ou algum dos srs. gostaria que eu elucidasse um ponto dentro dessa exposição. Aqueles para quem está claro tenham a bondade de levantar os braços para eu ter uma ideia. Obrigado.

* * *

Isto posto, nós temos então que analisar o papel de duas instituições dentro da concepção comunista: a instituição da propriedade e a instituição da família.

Eu falo primeiro da propriedade porque é mais fácil explicá-la e depois da família. De fato, a família é uma instituição mais elevada e mais nobre que a propriedade; é, aliás, um corolário da propriedade. Mas eu falo primeiro da propriedade por causa disso.

Se é verdade que existe em mim uma alma imortal, se é verdade que eu tenho um corpo que vai ressuscitar quando Deus Nosso Senhor chamar todo o mundo para o Juízo final e depois para a glória do Céu ou para o opróbrio do inferno, se isto é verdade – como é verdade  –  a consequência é que eu fui criado, eu não existia mas existo. E a partir do momento que existo, eu sou eterno, porque nunca mais deixarei de existir. No Céu ou no inferno, eu nunca mais deixarei de existir.

Se isto é verdade, foram-me dadas as minhas aptidões intelectuais e materiais para salvar a minha própria alma. Eu devo, então, utilizar tudo aquilo que constitui minha pessoa, para a salvação de minha alma, para o conhecimento de Deus, conhecimento da religião verdadeira; o serviço de Deus e o serviço da religião verdadeira nesta terra, e para a organização para mim de uma vida conforme a minha natureza. E vivendo a qual, eu possa chegar até o Céu.

O que quer dizer o seguinte: que eu sendo um ser espiritual e eterno, tenho um direito sobre mim mesmo. Existe um eu que não se confunde com nada nem com ninguém. E que nunca mais se confundirá, por todos os séculos dos séculos, nunca mais se confundirá. Esse eu tem um direito sobre mim, porque eu não fui criado para os outros mas eu fui criado para Deus, para um ser mais alto do que eu. Eu não posso ter sido criado para um homem igual a mim. Eu só posso ter sido criado por Alguém que é mais do que eu.

Então, eu fui criado para Deus. E Deus tem um direito sobre mim e tem um direito que eu exerça meu direito sobre mim, porque Ele me deu a porção de inteligência que eu possa ter, Ele me deu as qualidades intelectuais que eu tenho ou que eu não tenho, Ele me deu os sentidos, Ele me deu o corpo para eu utilizar para essa finalidade.

Quer dizer, existe algo que sou eu. E que sou distinto de todo o mundo. E da convicção que existe algo que sou eu, nasce a convicção de que existe algo que é meu. O eu e o meu derivam uma coisa da outra. Eu digo “eu quero”, eu digo “minha vontade”. Eu digo “eu faço”, eu digo “meu braço que faz”. Quer dizer, o que quer dizer “meu”? É algo que pertence ao meu eu, que faz parte do meu eu e que porque faz parte do meu eu e pertence ao meu eu, é meu. A palavra “meu” deriva da palavra “eu”.

A palavra “meu” traz consigo a noção de propriedade. De que maneira ela traz noção de propriedade? De um modo muito simples: se Deus me deu inteligência, vontade, sensibilidade, capacidade de trabalhar, Ele deu essas coisas antes de tudo para eu manter a minha própria vida, manter o meu próprio corpo, aperfeiçoar minha própria alma. E, portanto, eu que sou dono de mim, sou dono do trabalho que eu produzo.

Então se, por exemplo, eu vou andando num mato que não tem dono e encontro uma fruta, a minha inteligência me mostra que esta fruta é boa para a manutenção do meu corpo, eu deito a mão na fruta. Colho a fruta e digo: esta fruta é minha. Por que é minha? Porque meu trabalho tirou a fruta de um galho onde estava pendente, inútil, e colocou no âmbito da minha atividade, no âmbito da minha ação.

Fazendo isso, essa fruta passou a ser útil para mim. Ela passou a ter um valor. Ela é minha porque ela não tinha dono, eu me apropriei dela pela regra da natureza. Eu fiquei dono dela.

É também isto verdadeiro para um homem que anda no começo do mundo, encontra um chão que não tem dono e que então declara: eu vou morar aqui. Eu traço a minha propriedade e nesta propriedade eu sou dono, vou começar a trabalhar aqui, vou morar aqui. Aquilo é meu. Quer dizer, é do meu eu, porque não tinha dono. Deus fez para isso, para que os homens fossem se apropriando disso, por esta capacidade que tem cada um de cuidar de si próprio. Para que eles fossem se apropriando disso e se apropriando fossem se tornando proprietários.

A noção do eu traz a noção do meu, traz a noção da propriedade.

 Bem, essa mesma noção do eu e do meu traz a noção de família. O homem conhece uma jovem, ele entende, pelo conhecimento, que essa jovem está adequada para com ele terem filhos, ele vê que o terem filhos impõem a ambos obrigações para a vida inteira. E que, portanto, esse nexo que ele estabelece com esta jovem é um nexo de ordem moral que por causa da finalidade do nexo que é de ter filhos, impõe a finalidade de nutri-los e educá-los. E que ele com seus filhos e com essa jovem ele constitui um todo. Ele dá a esse todo o nome de família. E ele diz “minha mulher”, diz “meus filhos”; e ela diz “meu marido” e “meus filhos”.

Por que? Porque a partir do momento que eles constituíram esse nexo, ele ficou com um direito sobre ela. Está na ordem natural das coisas que a mãe dos filhos de um homem, seja exclusivamente desse homem. Está na ordem natural das coisas que o pai dos filhos de uma senhora seja exclusivamente dessa senhora. Isto quer dizer, são marido e mulher. Eles têm reciprocamente direitos de um sobre o outro. E têm direito sobre os filhos. Como os filhos nascidos dele, têm direito sobre ele.

É natural que eles tenham direito sobre os filhos. Eles não são donos de si? São donos dos filhos que geraram. É natural que os filhos tenham um direito sobre eles, à proteção, à educação, ao carinho deles. Não nasceram deles? Então, eles são consequências dos pais. E os pais têm obrigação em relação aos filhos que eles geraram.

Então, da mesma doutrina que dá fundamento à propriedade privada e da doutrina da espiritualidade da alma, e da existência de Deus, essa mesma doutrina dá fundamentação à família. A família e a propriedade privada são galhos nascidos do mesmo tronco. Qual é esse tronco? A ideia que existe um Deus imortal, espiritual; de que o homem tem uma alma que é puro espírito e que é ligada à matéria no corpo dele. E que ele tem direitos e deveres dele sobre o seu próprio corpo e depois sobre o que ele faz. Daí vem a família e a propriedade privada. 

Qual é a posição do comunismo perante a família e a propriedade privada?

Antes de tudo a propriedade privada. Se o bem não consiste no bem de um homem, mas consiste apenas no bem dessa massa imensa de seres que se chama o universo; se este é o bem, então chega-se à conclusão de que não há um bem pessoal, há um bem do todo. Então, ninguém é dono do que faz, ninguém é dono do que produz, porque ninguém é dono de si. Por que? Porque o próprio eu não existe, é uma composição transitória da matéria.

Imaginem os srs. que alguém vá mexer no ovo de uma galinha e ouve a galinha dizer: “não pode, isso é meu”. A pessoa cairia na gargalhada porque a galinha não é “eu”, ela cacareja, mas ela não é eu. E, portanto, não é uma coisa que seja dela.

Bem, o mesmo diz o comunista da criatura humana. A criatura humana que procura se apropriar dos seus filhos, ou apropriar-se de seu esposo ou de sua esposa, conforme o caso, é ridículo como uma galinha que aspirasse à monogamia, ou um galo que aspirasse um direito aos seus próprios ovos.

Quando a gente observa a natureza a gente vê que a galinha durante algum tempo choca os seus ovos, que dali nascem outros galináceos, se misturam com a galinha dentro do galinheiro. E que aquilo dá no que os srs. sabem.

Assim também são as criaturas humanas. Não há direito do homem à esposa, nem aos filhos.  A esposa não existe. O que é a esposa? É uma pessoa com a qual um outro homem contraiu, porque quis, e durante o tempo que quis, uma união passageira. Tanto é que o casamento na Rússia existe apenas sob essa forma: são pessoas que resolvem morar juntos e que avisam a polícia. E que quando resolvem mudar de casa avisam também e se separam. É um puro fato de uma residência em comum. Perfeitamente como os animais.

E o direito sobre os filhos também não existe. De acordo com a doutrina comunista, os filhos, apenas nascidos, devem ser entregues ao Estado. E o Estado tem umas chocadeiras enormes, umas criadeiras, onde as crianças são entregues. E os pais nunca mais sabem quem são seus filhos; como os filhos nunca saberão quem são seus pais. A escola do Estado cria.

Eles não têm dinheiro para montar essa máquina. E então deixam os filhos pendurados nos pais. Mas os pais se largam, se entregam, de repente está uma criança abandonada em casa – ou 4 ou 5 – porque os pais saíram e o governo as deixa morrer ou leva então para as famosas creches do Estado ou estabelecimento do Estado para ali educar as crianças. Mas isso dá-se exclusivamente como se dá entre animais. Não se dá como dá entre gente.

De maneira que entre os comunistas não há família. Mais uma vez, igualitarismo. Não existe a superioridade do esposo sobre a esposa, nem dos pais sobre os filhos. Tudo é absolutamente igual.

Quanto à propriedade privada, também não existe. Porque o homem trabalha, mas não trabalha para si. Uma vez que isso que nós chamamos “a pessoa humana” não existe. Existe um número, 5.002, que trabalha para o todo – porque ele não é um “eu” e não tem um “meu” – porque ele trabalha para o todo. O resultado é que o que ele produz pertence ao todo.

E ele não tem direito sobre si. E por causa disso também o todo representado pelo governo, tem o direito de mandá-lo trabalhar em qualquer lugar. É por isso, por exemplo, que devemos ver na segunda-feira uma notícia trágica de Saigon, mostrando que toda a cidade foi limpada de habitantes. O governo comunista resolveu que eles vão morar no campo. Um de nós diria: “é um absurdo, eu tenho minha casa, minha família, tenho minha propriedade, tenho minha liberdade... como é que eu vou ser mandado para o interior?!”

Se alguém dissesse isso em regime comunista e for alguém de muita sorte, leva umas chicotadas, umas chicotadas.... [vira a fita] ....para andar a pé. Por exemplo, nessa estrada que sai de Saigon, trajeto de pelo menos 100 quilômetros, é mandado pela estrada afora, para ir trabalhar onde mandaram. Por que? Porque liberdade, que sentido tem? Eu sou livre porque eu tenho inteligência e vontade e disponho de mim. Mas o sujeito que é uma parcela de um todo, ele é mandado pelo todo, ele é escravo do todo.

Então, o representante do todo se resolve que ele vai trabalhar num lugar, manda. E então os srs. veem o que está acontecendo em Saigon. Entra numa casa um soldado, sapatos com pregos, sapatões, chicote na mão, revólver na cinta: “aqui moram quantas pessoas? Ah, aqui é a casa tal, número tanto, está bem, você vai para tal parte do país – é a mulher. Você vai para outra, você vai para outra, essa criança vai para um estabelecimento do Estado e acabou-se. Quinze minutos para levarem o que puderem”. Separam-se. E separam-se para todo o sempre. Não tem mais nem correspondência. Porque as relações familiares cessaram. E nunca mais nenhum vai ver o outro. “Toca depressa para fora”.

E um convívio afetuoso, fundado na lei de Deus e na natureza criada por Deus, esse convívio cessa bruscamente porque um homem que tem um fichário, contendo os nomes de todos os habitantes, resolveu na letra “a”, vê os números 5000 a 5200 ao longo do rio tal. Então manda pegar em todas as cidades a letra “a” os números 5000 a 5200 e manda para o rio tal. São pessoas de idade... tudo diferentes, lá vão a pé para o rio tal.

E as pessoas letra “f” vão para tal outro lugar o número 4 mil e tantos para o número 8 mil e tantos. Se o homem chama Antônio e a mulher Selma, nunca mais se verão. Está acabado. E é natural porque está na ordem das coisas  [em um regime comunista].

Quer dizer, o pior dessa barbárie toda é que é uma barbárie raciocinada, é uma barbárie refletida. É uma barbárie coerente com um primeiro erro monstruoso, que é a negação de Deus. E com outro erro segundo e monstruoso também, dependente do primeiro, que é a negação da espiritualidade da alma.  Admitidos esses dois erros, a série de abismos em que o comunismo se joga é lógica.

Pelo contrário, negados esses erros, afirmadas as verdades opostas, nós temos o mundo sacral, o mundo hierárquico, que teve uma tão alta expressão na Idade Média e que terá uma expressão mil vezes mais altas no Reino de Maria.

Aqui os srs. tem então a diferença fundamental entre ambas as doutrinas.

Eu devo, na próxima reunião, desenvolver as consequências dessa diferença. Mostrar também algo da organização do partido comunista, do Estado comunista etc.

Pergunto se consegui ser claro e se algum dos srs. quer me perguntar alguma coisa. Aqueles que acham que fui claro queiram levantar o braço. Aqueles que querem me perguntar alguma coisa tenham a bondade...

(Aparte: é extraordinária essa explicitação que o Sr. fez sobre a relação entre a família e a propriedade. O que se passou nos meios católicos para que isso não fosse ensinado, ou fosse esquecido?)

O sr. encontra essa demonstração na maior parte dos moralistas católicos. Ela não tem absolutamente nada de original. Quando eu a li, pela primeira vez, eu a li em Leão XIII, ele tem várias encíclicas em que trata disso. E eu fiquei pasmo e maravilhado diante da lógica dessa demonstração e do talento verdadeiramente superior com que Leão XIII desenvolve essa doutrina.

Depois estudei em Taparelli d´Azeglio, vários outros tratadistas, num tratadista bem esquecido hoje mas que é muito interessante, Belliot, “Manuel de Sociologie catholique”, etc. E eu olhava em torno de mim e notava essa coisa curiosa: que a maior parte das pessoas – note que isso se dava por volta de 1928, 29, 30 por aía maior parte das pessoas que me cercavam era a favor da família e a favor da propriedade privada. Mas se a gente lhes quisesse dar uma demonstração, eles não se interessavam, dizendo: “não, é evidente que deve haver família, por que uma prova? Por exemplo, você não vai demonstrar que o homem, porque tem fome, deve comer. Ele tem fome, come. Pode-se provar, mas não interessa a prova. O evidente não interessa”...

Também a mesma coisa com a propriedade privada. Não independem de prova, a prova não interessa.

É por uma razão análoga que inúmeros pregadores consideravam inútil desenvolver essa doutrina que Leão XIII recomendava e até mandava que fosse desenvolvida. “É evidente... tem que haver sempre...”

Sentirão um pouco mais isso aqueles dentre os srs. – eu creio que o sr. não está nesse caso – que nasceram em cidades pequenas do interior. Nas cidades pequenas do interior a ordem natural das coisas é muito mais palpável do que nas cidades grandes. E procurar provar numa cidade do interior que deve haver família é expor-se à brincadeira. O sujeito dá uma risada e diz: “puxa, mas você acha que precisa provar isso? E você acha que estou disposto a ouvir sua prova? Para mim é uma coisa evidente! é claro que tem que haver família! qua, qua, qua...”.

E com a propriedade, mais ou menos a mesma coisa.

Quer dizer, o que houve? Houve uma grande tradição, desde que o mundo é mundo, uma tradição de existência da família e de existência da propriedade. Mas não houve a ideia de que o homem sendo fraco, concebido no pecado original, tudo pode acontecer. E que havendo no mundo o Partido Comunista, era especialmente necessário provar aos homens que a propriedade é legítima, a família é legítima para que eles saibam reagir contra o partido comunista.

Mais ainda. Não houve quem mostrasse aos homens que não basta ser evidente que a propriedade e a família existem, mas é preciso compreendê-las para usá-las bem, para admirá-las convenientemente e para usá-las bem.

Ninguém pode ser bom pai de família em toda a força do termo se ele se recusa a estudar essa doutrina; não pode ser boa mãe de família quem se recusa a estudar essa doutrina. A não ser que esteja num tal estado de pobreza ou de ignorância que então a graça supre. Mas normalmente deve estudar. As pessoas não quiseram.

O resultado o sr. tem aqui diante de si... Não sei se está claro.

(Aparte: E por que não só abandonaram esta doutrina certa, mas adotaram a doutrina errada?)

 Por uma razão muito simples – isso eu pretendo explicar para os srs. muito mais detalhadamente em outra conferência, se me lembrarem, o sr. por exemplo pode ficar encarregado de me lembrar, nesses termos mesmos. Eu dou uma resposta aqui muito sumária: ...ao orgulho humano é penoso ter alguém acima de si. E quando começa alguém a ensinar a igualdade, se o homem é de um orgulho muito requintado, ele prefere não ter ninguém abaixo de si para não ter ninguém acima de si.

E então ele ouve dizer que não existe Deus, ou que não existe o próprio eu. Ele, na medida que isso favorece o igualitarismo, ele tem uma certa simpatia, embora não dê uma adesão intelectual. Mas ele forma o filho dele nessa simpatia. Essa simpatia vai crescendo com as gerações; o neto já adere.

O sr. dirá: “mas como isso se transmite no clero quando a condição eclesiástica não se transmite hereditariamente?” O padre da geração do avô, no seminário, teve uma pequena simpatia pelo ateísmo. Ele forma um padre muito mais simpático ao ateísmo, mas que ainda não acredita no ateísmo, procura dominar-se. Mas domina-se mal. Se esse padre formar-se, está prontinho para aderir ao comunismo. É um jogo psicológico.

(Aparte: Na campanha contra o divórcio havia muita repercussão assim: é evidente que o divórcio é mau... não precisa fazer a campanha... Não é esse mesmo estado de espírito?)

É exatamente isso.

(Aparte: Haveria uma resposta a dar?)

Para os erros brutais, não há resposta rápida. Por exemplo, eu posso responder rapidamente ao sr. uma coisa qualquer demonstrando que existe a alma. Mas seu tiver que demonstrar ao sr. que há um lustre pendurado neste teto, quer dizer, um erro muito mais palpável, eu tenho que começar por perguntar ao sr. se o sr. vê bem... se o sr. acredita no que vê, explicar o que é um lustre, para depois provar que tem lustre suspenso no teto. Quer dizer, quanto mais primitiva a verdade, tanto mais é preciso tempo para demonstrá-la.

Uma resposta, entretanto, que teria algo de incisivo, seria a seguinte: o sr. não nega que há muitos divorcistas, se os há é porque eles pensaram como o sr., perderam as convicções porque não estudaram.

(Aparte: Posso anotar?)

Pode, perfeitamente. Então, a objeção é: não preciso comprar porque a malícia do divórcio é evidente, a maldade do divórcio é evidente.

A resposta é: é igualmente evidente que o número de divorcistas é grande. Como ficaram divorcistas? Porque pensavam como o sr. sobre a inutilidade da refutação do divórcio.

Há alguma outra pergunta? Estou à disposição. Não havendo, eu pediria ao Padre Antonio o favor de encerrar a reunião.


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