Plinio Corrêa de Oliveira
Carlos Magno: sua gesta, sua figura em vida e depois de sua morte Um "profeta" e inspirador da Idade Média
Santo do Dia – 9 de abril de 1973 |
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A D V E R T Ê N C I A Gravação de conferência do Prof. Plinio com sócios e cooperadores da TFP, não tendo sido revista pelo autor. Se Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:
Nós temos aqui para Santo do Dia de hoje uma descrição da personalidade de Carlos Magno, tirada do Weiss, “História Universal”. Eu creio que ainda não fiz comentário dessa descrição, aqui, anteriormente? Alguém se lembra? Levante o braço. Já foi comentado? Então, vamos tomar outro rumo. (Dr. Camargo: inaudível) É reversível, porque como ninguém se lembra, não sei se vale a pena comentar... (Sr. Carlos Ibarguren: muita gente se lembra mas não quis dizer nada para ter a alegria de o Sr. comentar novamente) [risos] A saída é muito amável... muito veraz, não sei. (Sr. Gregório: Dr. Plínio o senhor comentou Carlos Magno, mas não era uma ficha do Weiss. Era de outro autor). Eu vou atender a solicitação respeitável do Dr. José Fernando, e calorosa dos outros, mas eu vou repetir, ouviu? “Eginhard nos mostra a personalidade Carlos Magno mais de perto”. Agora vêm as palavras textuais do Eginhard: “Era de corpo grande e robusto, de sete pés de altura, seus olhos eram muito grandes e vivos. Tinha formosos cabelos brancos, e o rosto amistoso e alegre. Quer estivesse sentado ou de pé, sua fisionomia oferecia uma aparência em extremo digna e imponente. Seu passo era firme, suas atitudes varonis, a sua voz clara. “Nessa figura heróica, se derramava um espírito alegre. Um monge de Saint Gal conta que quem tivesse chegado triste junto a Carlos Magno, separava-se dele, sereno, somente pelo efeito de sua presença e de algumas palavras. A frescura e a claridade de sua índole, confortavam a todos que se punham em contato com ele. “A majestade não consistia nele numa soberba rigidez, nem numa sombria reserva, mas na serena grandeza de sua personalidade que superava tudo e, não obstante, carecia de pretensões e repousava sobre si mesma. “A terrível impressão que produzia como guerreiro frente a seu exército, nos corações de seus inimigos, no-la descreve o monge de Saint Gal: então, se viu o férreo Carlos Magno, que tinha a cabeça coberta de um elmo de ferro, os braços revestidos de braçadeiras de ferro; na mão esquerda levava a férrea lança e, na direita, sua espada de aço, sempre vitoriosa; os músculos cobertos por escamas de ferro e o escudo não era senão de ferro. Então, ressoou um grito de dor de todos os habitantes de Pavia: ó férreo, ó férreo! “Este homem de ferro tinha um coração profundamente sensível. Carlos chorava como menino a morte de um amigo. O vencedor de cem batalhas cuidava fraternalmente dos pobres. O homem, sob cujos passos de gigante, tremia a Europa por cujos grandes planos foram subjugados um milhão de homens, era o mais terno pai de família, que em sua casa nunca podia comer sem seus filhos. “A religião deu o mais nobre impulso ao seu espírito, forte e fecundo. Deu consagração ao seu poder, e tomou sob seu amparo os povos que sua espada havia submetido. “Carlos Magno saiu do círculo de seus bispos e heróis, e entrou na tranqüila morada da morte. Mas sua imagem sobreviveu no coração dos povos. Porque seu corpo descansava na catedral de Aix-la-Chapelle, ali se coroavam os reis da Alemanha, porque havia cingido coroa, levado espada, manto, luvas e sandálias, essas passaram a ser as relíquias do Império. “Quando o Ocidente se pôs em movimento para libertar o Santo Sepulcro, todos creram que Carlos Magno havia ido a Jerusalém para ser ele o modelo da Cavalaria. E assim ele sobreviveu pelos séculos, pois o tempo e a morte perderam seu poder ante sua grandeza espiritual”. * Esse magnífico retrato de Carlos Magno me serve de ocasião para dois comentários de natureza diversa. Um comentário é a respeito de Carlos Magno em vida. Outro comentário, mais aventurado, mais audaz é a respeito de Carlos Magno depois de morto. Em Carlos Magno em vida os senhores têm uma dessas obras primas da Providência em que Deus se compraz não em explorar, para a glória dEle, e beleza dos contrastes, mas pelo contrário a beleza de todas as coerências e de todas as conformidades. Em muitas ocasiões Deus quis celebrar homens de um engenho possante num corpo pequeno. E fazer do contraste exatamente a afirmação da independência da alma, do fato de que a grande alma pode vivificar um pequeno corpo. Mas ela não depende do corpo senão na medida muito menor do que aquela em que o corpo depende da alma. Em outras ocasiões, pelo contrário, Deus quis que homens de corpo enorme, mas de cabeça pequena, se tornassem célebres pela sua virtude, mostrando como a grandeza do corpo não é nada sem a grandeza da alma. Mas uma inteligência pequena pode ser apagada facilmente pela grandeza da virtude. Assim se conta de São Cristóvão que era um santo corpulento, fortíssimo, mas que era muito cândido, muito ingênuo, quase se diria um pouco insuficiente mentalmente. Entretanto, desse homem super suficiente fisicamente, e um tanto insuficiente intelectualmente, Deus tirou uma obra prima de candura, uma obra prima de frescor de alma e de força posta a serviço de uma ingenuidade encantadora. No caso de Carlos Magno Deus fez o contrário. Ele quis uma perfeição que fosse perfeita em tudo. Em que o contraste não se operasse, mas a coerência de todas as coisas. Uma grande inteligência, animando um grande corpo; um grande corpo que servia de espelho para elemento da transparência da grandeza de sua alma. Que realizou uma grande obra, alcançou uma grande virtude, e deixou uma grande memória. Grandeza por todo lado. Essa é a nota que Carlos Magno realizou. Os senhores o vêem, antes de tudo, como guerreiro. Eu não sei se é muito fácil para um homem contemporâneo, se dar idéia do que possa ser, numa guerra em que os elementos mecânicos de destruição, e químicos, não tinham quase atuação ou quase nenhuma atuação, qual era a importância da força física de um guerreiro. Sobretudo de um guerreiro bem armado. Era uma importância fundamental. Carlos Magno avançava no meio dos adversários mais ou menos como um tanque, hoje, no meio da batalha. Quer dizer, ele era um tanque em corpo humano, ele era todo blindado e possante, e onde ele passava dava espadagadas monumentais, com uma espada estupenda, que nunca o traiu, que nunca se fendeu durante o combate. Ele ia arrastando o adversário, e ia abrindo atrás de si uma esteira, um sulco de caminho livre para os que o seguissem. Os senhores podem imaginar que beleza seria Carlos Magno no momento da guerra. Aqui vem a descrição. Os senhores podem imaginar um homem alto, numa ancianidade já começada mas ainda vigorosa, com os cabelos brancos, elmo de ferro, todo coberto na sua musculatura possante, montado num cavalo e que está pronto, lealmente, para atacar o adversário. O pai do povo que assume sobre si os riscos de todo o povo, que vai na frente para levar todo o povo para a vitória, e que ele mesmo abre caminho para os seus filhos. Os senhores imaginem então os guerreiros de Pavia vendo aparecer aquele colosso, e gritando: “Ó férreo! Ó férreo”! E gemendo. E Carlos Magno olhando com um olhar que traspassava mais do que sua própria espada, e se preparando para fazer uma arrazora nos habitantes de Paiva. Não era só – e é este ponto que me interessa para a segunda parte do comentário – não era só dizer que ele era férreo. A coisa é mais preciosa e mais profunda: é que a gente vê que ele incutia um ânimo férreo aos guerreiros que lutavam com ele. E que quando ele estava presente, todos se tornavam férreos. E que o exército que seguia o imperador férreo era um exército que se tornava de ferro. Ele “ferrificava” aqueles que lutavam com ele. E era por isso que ele era mais do que um simples combatente, ele era uma fonte de combatividade. E ele comunicava uma eficácia férrea a todos os seus guerreiros. É com certeza por causa disso que, vendo-o, os outros gritavam: “Ó férreo, ó férreo!” É que eles não tinham um férreo entre si. Não tinham um homem capaz de guiar o povo com uma força de ferro. Então, começava a grande matança do férreo contra o adversário que não tinha razão, que não tinha do seu lado a justiça, que era o agressor que ele ia perseguir e derrotar. Ou porque o adversário tinha atacado o nobre reino dos Francos, ou porque tinha atacado algo de incomparavelmente mais precioso: a Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana, da qual Carlos Magno era a destra. Essa era a presença do Férreo. Termina a batalha. O “Férreo” volta coberto de glória. As suas mãos estão tintas de sangue. É o suor dele que se mistura com o sangue do adversário e, quiçá, o sangue dele em algum ferimento. Ele entra debaixo da tenda, ele tira o capacete, os outros acorrem para ajudá-lo a se desvencilhar dos armamentos. Nós podemos imaginar uma mesa carolíngia, quase um tronco de madeira coberto por um pano precioso, uma taça de ouro de uma forma ainda meio primitiva, forte, vigorosa, com umas pedras não lapidadas, mas em “cabochon”, colocadas formando um anel em volta da taça, para ficar mais brilhante e ele que diz com uma voz tonitruante: “tragam-me tal vinho”. E entram alguns servidores, despejam o vinho, e ele bebe aquilo em altas porções. Porque um homem tão férreo em combater, deveria ser férreo no beber. Era justo que uma natureza tão possante fosse de um consumidor possante. Ele bebesse um cálice, bebesse dois cálices, pousasse o cálice e dissesse: “graças à Virgem Maria, foi ganha tal batalha, aconteceu isso, aquilo etc. e tal, tal”. Depois deu um comentário em conjunto, despretensioso e cheio de graça, o gigante deitava. Nós devemos imaginar então uma camona e um repousão. E era o grande repouso, comunicativo, de Carlos Magno. Quando Carlos Magno dormia na sua tenda, ele que tranqüilizava e comunicava serenidade a todo mundo que se aproximava dele, com certeza comunicava também serenidade aos seus guerreiros que repousavam. O Imperador está dormindo. Quer dizer que há razão para todo mundo dormir. E como é plácido o sono do Imperador! E como faz bem dormir ao ritmo do ronco do Imperador. Como tudo isso é tranqüilizante! Depois, como é tranqüilizante a idéia de que se houver um ataque noturno, o Férreo se levantará antes de todos e chefiará a batalha e nos protegerá a todos. Ele é, mesmo no seu sono, o anjo da guarda do exército que dorme. Amanhece, o Férreo se levanta. Todo mundo se levanta. Começa a faina de um acampamento. As pessoas vão falar com ele. Ele é plácido, ele é amável, ele é exorável, ele atende as pessoas, ele transmite alegria a todos, transmite a bondade a todos, ele é a fonte de satisfação de todo o campo. Ele é, no meio daquele campo, ao mesmo tempo como uma torre fortificada, e como uma fonte de água viva. Todo mundo se aproxima dele e vai beber um pouco da presença dele. Eu imagino, na hora em que estava proibido de entrar para não cansá-lo, um ou outro guerreiro jovem que passava, e simplesmente olhava, numa hora em que o Imperador não estivesse vendo, para ver um pouco de perto o Imperador, para admirar o Imperador e para haurir um pouquinho da alegria que ele comunicava em torno de si. Para se sentir um pouco filho desse homem que talvez não lhe conhecesse pessoalmente pelo nome, mas que ele estava certo de que estava preso a ele por vínculos especiais, e que era a satisfação de todo o acampamento, a satisfação de todo o reino dos Francos. O Imperador, a certa altura, recebe a visita dos Bispos. Coisa extraordinária: são bispos católicos, apostólicos romanos... que por isso, em vez de terem um sentido de rivalidade em relação ao Imperador, têm um sentido de estima, de afeto e de respeito. Eles sabem que eles são os Príncipes da Igreja de Deus e que o Imperador, em presença deles, não é senão um simples fiel. Mas eles sabem que Deus escolheu aquele fiel como um profeta para guiar os interesses da igreja no seu tempo e para lhe dar a vitória. Eles se aproximam com toda a segurança. Sabem que o Imperador não lhes disputará nenhuma prerrogativa, que os tratará com toda a honra e com todo o respeito. E que eles podem pedir ao Imperador tudo quanto queiram desde uma Cruzada, até uma esmola para a construção de uma Igreja, ou para o atendimento de alguns pobres em algum leprosário, que tudo o Imperador lhes dará. Qualquer coisa o Imperador estará disposto a conceder. Aliás, o leprosário está aí um pouco anacrônico, porque a lepra apareceu na Europa depois de Carlos Magno. Bem, entram, os senhores podem imaginar, então, alguns bispos, três ou quatro bispos, de aspectos diferentes: algum de barba branca, ascético, que passou longo tempo no deserto, fez parte dos últimos eremitas, não eremitas da areia mas eremitas da selva. E que foi chamado de repente, porque uma religiosa teve um sonho de Deus, dizendo que ele deveria ser o bispo, foi chamado por uma designação do legado papal para vir ser o bispo de tal lugar, e que administra tal Diocese. Outro é um bispo jovem, que foi recém ordenado, mas que deu tais provas de virtude que já foi nomeado bispo. Um outro será de uma idade entre os dois, e é um homem que ao mesmo tempo caminha paternalmente em relação ao mais moço e filialmente em relação ao mais velho. Assim imaginem de algum modo o quarto. Eles se apresentam graves, dignos, serenos. Quando chegam a sentinela faz uma reverência profunda, as conversas param, todos olham para eles. São Bispos da Igreja de Deus, querem falar com o Imperador. Alguém entra, curva-se diante de Carlos Magno e diz: senhor, quatro Bispos querem falar-vos. Carlos Magno levanta sua imensa estatura e recebe os bispos de pé. Que linda cena o encontro desses dois respeitos: o respeito do leigo pelo bispo, o respeito do bispo pelo herói que é Destra da igreja! Cumprimentos. Carlos Magno os faz sentar: meus ais, o que quereis? Queremos tal coisa, e tal coisa, e tal coisa. Carlos Magno a todos atende, dando um pouco mais do que queriam. Despedem-se satisfeitos. O exército levanta o acampamento e vai, ou para outra batalha, ou volta para Aix-la-Chapelle, ou para qualquer que seja a capital provisória do Império, para um período de repouso e de tranqüilidade. Aí está o grande Carlos Magno, uma espécie de luz que aumenta a cor de tudo: junto dele os Bispos se sentem mais bispos, os filhos se sentem mais filhos, as almas alegres se sentem mais satisfeitas, as almas guerreiras se sentem mais aguerridas. Há nela uma força vital, uma força propulsora de tudo, e que não é apenas o poder, a potencialidade da vitalidade física, mas é a potencialidade mental de uma grande alma. E mais ainda, incomparavelmente mais, um grande cabedal de graça que ele irradia em torno de si, e que faz com que ele seja a alegria do Império. Ele é a fonte de vida de todo o Império. E durante séculos a fio muitos bispos terão a psicologia mais inteiramente de bispos porque foram formados por bispos, que foram formados por bispos, que conheceram Carlos Magno. Muitos guerreiros serão mais inteiramente guerreiros porque foram formados por guerreiros que contaram a eles que conversaram com outros guerreiros, os quais eram netos de guerreiros que tinham visto Carlos Magno combater. Em muitas cortes o esplendor será maior porque lhes falarão da corte de Carlos Magno e da magnificência carolíngia da obra do grande Imperador. Muitos imperadores serão mais majestosos, muitos reis serão mais senhores, porque o calor da presença de Carlos Magno aí ficou. E o Weiss indica bem isso: Carlos Magno foi tão rei, foi tão imperador, tão soberano, que ele traçou o modelo de todos os outros soberanos, e os trajes dele passaram a ser relíquias para os trajes de coroação de todos os reis do Ocidente. Era [de bom espírito] quem pudesse ter algum resto do que foi de Carlos Magno, para se coroar. Porque ele foi o modelo perfeito do soberano, de cuja perfeição todos os outros participaram. Esse foi o grande Carlos Magno. Foi só isso? Aqui dou uma impressão puramente pessoal a respeito de Carlos Magno. É uma hipótese histórica, portanto, não é uma afirmação histórica. Mas essa hipótese me está na mente e não é descabido comunicar essa hipótese aqui aos senhores. Eu tenho impressão de que Carlos Magno foi, ao mesmo tempo que profeta, um patriarca da velha Europa. Isso aliás, é reconhecido. Quer dizer, toda a Europa nasceu da personalidade dele. Toda a história européia, toda a história da Europa dos bárbaros convertidos – não da Europa romana ou gaulesa – mas a história da Europa católica depois da queda do Império Romano do Ocidente, toda essa história não é senão uma preparação de Carlos Magno. E depois de Carlos Magno, toda a obra é uma continuidade de Carlos Magno, até vir a Revolução, ou até vir a Revolução Francesa. Mas é uma continuidade de Carlos Magno. Ele é uma espécie de ponto de encontro de dois cumes de losango, tudo concorre para ele e tudo parte dele. Esse dom patriarcal de Carlos Magno, essa capacidade de fundador – um funda uma Ordem Religiosa, outro funda um Reino, outro funda uma Diocese, outro funda uma Universidade. É uma glória, porque a personalidade dele fica na nascente daquilo que ele fundou. A capacidade de ser fundador de uma Europa que fundou tudo quanto existe de digno e de belo na vida. E depois do que, ou as outras coisas se inspiraram naquilo, ou não valeram nada, essa capacidade de ser fundador não mereceria uma análise especial e não comportaria uma hipótese? Eu tenho para mim como certo, que Carlos Magno foi o fundador da Cavalaria. Quer dizer, o ideal dele, aquele tipo perfeito que ele representou, deu a inúmeros outros homens a vontade de serem como ele. E no tatearem para serem como ele, o tipo de Cavaleiro se desprendeu, e a aspiração da Cavalaria nasceu da aspiração de ser como Carlos Magno. E eu me pergunto se Carlos Magno, como fundador, não era portador de uma graça que dele se irradiou e que com o tempo deu no ideal da Cavalaria, e que todos os Cavaleiros que houve depois não foram portadores, em última análise, de uma graça irradiada de Carlos Magno, mais ou menos como os membros de uma Ordem Religiosa são portadores de uma graça irradiada do fundador. O fundador não é apenas uma pessoa que juridicamente constitui e institui uma coisa, mas o fundador é aquele através do qual foi dada uma graça para que essa coisa exista. Então, me pergunto se Carlos Magno não tem uma ação misteriosa através da história, uma ação sui generis por onde o grande Imperador morto acabou, de algum modo, revivendo em toda a Europa, e revivendo assim por essa espécie de descendência espiritual, por onde o prolongamento das graças obtidas por ele, foram vivendo nos outros como a graça de Elias viveu em Eliseu, e depois nos Carmelitas. E se então, os reis, os cavaleiros, os sábios, os teólogos e tudo o mais que houve na Idade Média não eram o prolongamento dessa graça insigne que Carlos Magno recebeu. E se não há aí uma espécie de mistério sobrenatural de Carlos Magno, que nós deveríamos analisar mais exatamente, e que conduz a esse ponto: Carlos magno terá sido santo de altar? A vida de Carlos Magno tem sombras. O que se conclui daí? Conclui-se que é parecida com a vida de Davi, que tem sombras também e a respeito do qual a Igreja diz que é santo. Ele é reconhecido como santo, pode-se rezar para Davi; pode-se fazer uma catedral em louvor de Davi e tudo o mais. Então, pergunta: isso só prova que ele não foi grande santo? O ele ter deixado essa grande obra não é uma prova de que Deus perdoou os pecados dele? Retificou a alma dele? E que ele foi, no fundo, um dos maiores santos de toda a História? Esta é uma questão que fica como uma pergunta junto a nós. O fato é que mesmo aqui quando eu comecei a falar aos senhores a respeito de Carlos Magno, e na amável disputa que os senhores tiveram para que eu falasse a respeito de Carlos Magno, eu senti presente isso: é que os senhores por uma percepção - a qual não é talvez inteiramente alheia o discernimento dos espíritos - percebem através de séculos, uma coruscação da figura do grande Imperador e tiveram a esperança de que no Santo do Dia um pouco dessa coruscação aparecesse. Quer dizer, os senhores ainda sentem Carlos Magno mais capaz de coruscar para os senhores do que a vida de muitos santos. Essa coruscação não será a “chuva de rosas” dele? Santa Terezinha disse que depois de morta ela derramaria uma chuva de rosas pelo mundo inteiro. Não há uma chuva de rosas carolíngia? Grande, universal, perpétua e perfumada à altura do grande Imperador? E aquele que apresentasse o grande Imperador armado, em dois painéis de um mesmo díptico: de um lado, incutindo terror em Pavia; e de outro lado, sentado num trono do alto do Céu, e espalhando essas "graças róseas", mas de um perfume sobre toda a humanidade? Esses não teriam bem uma idéia do que foi o grande Carlos Magno? Então não há um prolongamento da personalidade e das graças de Carlos Magno, misterioso, místico, até os nossos dias? Isso não nos ajudaria melhor a ver o grande Imperador? Eu talvez pudesse dizer aos senhores uma coisa minúscula, pequenininha como pode ser um grão de areia nas memórias de um menino: a primeira vez que eu ouvi falar de Carlos Magno foi na Estação da Luz. Naquele tempo se viajava exclusivamente de trem e o trem era uma coisa com aspecto ultra sinárquico - aliás, é mesmo - e a Estação ultra sinárquica. E eu me lembro que ao lado esquerdo de quem entra, do lado direito e do esquerdo descem duas escadarias – não sei hoje, tudo mudou – mas naquele tempo haviam duas escadarias para a plataforma em baixo. Na escadaria à esquerda havia uma dessas bancas que vendiam revistas, livros etc., etc. E eu vi num livrinho muito pechisbeque, de escadaria assim, a figura de um homem possante, sentado num trono assim com dois varais em cima dele, e bem sentado. Escrito em baixo: “História de Carlos Magno e de seus Doze Pares”. Eu olhei e pensei: mas que homem bem sentado! Que homem forte! Eu não conheço ninguém que se sente como esse homem. E que domine estando sentado, quando os outros dominam estando em pé. Este domina estando sentado. “Papai, quer me comparar essa vida de Carlos Magno? Quem foi Carlos Magno?” – “Menino você perde o trem. Que é que você quer? Aqui. Está bom, compra depressa”. – Bem, comprei e fui lendo pelo trem. Eu julgo que quando eu vi a estampa popular, ingênua, de Carlos Magno bem sentado, eu tive um primeiro flash da grandeza carolíngia, e que de lá para cá não tem feito senão se confirmar a meus olhos. Par de Carlos Magno! Eu pensava com meus botões: mas que tristeza eu não ser Par de ninguém! Não tem ninguém para eu ser Par. Nem existe Par no meio dessa gente. Esse é o mundo dos ímpares! Ó desolação! ó tristeza! ó isolamento neste trem! ó esperança! Um dia eu conhecerei algo que me dará a alegria de tocar com as mãos neste mundo. Vamos para a frente! Fechado o livro, guardado na mala, zupado [esquecido] depois em qualquer dia da minha vida; na minha cabeça, não. Aí nasceu minha admiração por Carlos Magno. Eu tenho impressão de que muitos dos senhores tiveram impressões carolíngias assim, quando ouviram falar de Carlos magno pela primeira vez, ou qualquer coisa assim. Tiveram flash de Carlos Magno. Vamos fazer o teste: os que tiveram alguma coisa assim, levantem o braço. Bem, os senhores veem que quase toda a sala. Isso não é um poder de falar às almas especial que ele tem? Único, que ele tem? De fazer acender uma luz que só ele tinha? Então, não é o caso de nós pedirmos a Carlos Magno que ele torne mais vigorosa essa luz, e que por assim dizer ele volte a esse mundo, o férreo e o aprazível, o paterno e o terrível, para cortar as montanhas, encher os vales e preparar o caminho para o Reino de Maria? É bem o que nós podemos pedir. Se o Santo do Dia se estendeu um pouco mais do que devia, a culpa foi dos senhores. A apetência carolíngia dos senhores me deu a idéia de fazer essa forma de Santo do Dia. De maneira que aqui está a questão para ser apresentada aos senhores. Bom, está terminado o Santo do Dia, nós podemos encerrar. |