Plinio Corrêa de Oliveira

 

Carlos Magno,

pedra angular da Idade Média

 

 

 

 

Santo do Dia, 30 de outubro de 1972

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A D V E R T Ê N C I A

O presente texto é adaptação de transcrição de gravação de conferência do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira a sócios e cooperadores da TFP, mantendo portanto o estilo verbal, e não foi revisto pelo autor.

Se o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira estivesse entre nós, certamente pediria que se colocasse explícita menção a sua filial disposição de retificar qualquer discrepância em relação ao Magistério da Igreja. É o que fazemos aqui constar, com suas próprias palavras, como homenagem a tão belo e constante estado de espírito:

“Católico apostólico romano, o autor deste texto  se submete com filial ardor ao ensinamento tradicional da Santa Igreja. Se, no entanto,  por lapso, algo nele ocorra que não esteja conforme àquele ensinamento, desde já e categoricamente o rejeita”.

As palavras "Revolução" e "Contra-Revolução", são aqui empregadas no sentido que lhes dá o Prof. Plínio Corrêa de Oliveira em seu livro "Revolução e Contra-Revolução", cuja primeira edição foi publicada no Nº 100 de "Catolicismo", em abril de 1959.

 

Monumento localizado junto à praça em frente à catedral de Notre-Dame, em Paris, representando Carlos Magno ladeado por seus pares Roland e Olivier

        Temos uma ficha sobre Carlos Magno, do conceituado historiador J.B. Weiss, "História Universal":

"Em 772, com 30 anos, Carlos tomou o governo do reino dos francos. Com razão Carlos se chamou Magno. Mereceu esse nome como general e conquistador, como ordenador e legislador de seu imenso império e como incentivador de toda a vida espiritual do Ocidente.

"Por seu governo, as idéias cristãs alcançaram vitórias sobre os bárbaros. Sua vida foi uma constante luta contra a grosseria e a barbárie, que ameaçavam a Religião Católica e a nova cultura que nascia.

"Nada menos que 53 expedições militares foram por ele empreendidas, a saber: dezoito contra os saxões, uma contra a Aquitânia, cinco contra os lombardos, sete contra os árabes da Espanha, uma contra os turíngeos, quatro contra os ávaros, duas contra os bretões, uma contra os bávaros, quatro contra os eslavos, cinco contra os sarracenos da Itália, três contra os dinamarqueses e duas contra os gregos.

"No Natal do ano de 800, o Papa São Leão III o elevou à dignidade de Imperador, fundando assim a mais nobre instituição temporal da Cristandade, o Sacro Império Romano Alemão. A 29 de fevereiro de 814, Carlos faleceu, depois de ter recebido a Sagrada Comunhão. Foi enterrado, segundo a legenda, em um nicho da Catedral de Aix-la-Chapelle, em posição ereta, sentado em um trono, cingido de espada e com o livro dos Evangelhos nas mãos.

"É ele o modelo dos imperadores católicos, o protótipo do cavalheiro e a figura central da grande maioria das canções de gesta medievais".

Na Basílica de São Pedro, em Roma, alguns passos após se adentrar pela nave central, pode-se admirar a famosa "rota porphyretica", um grande disco de porfírio, um esplêndido mármore vermelho-vinho. Sobre ela Carlos Magno foi sagrado Imperador pelo Papa São Leão III, no Natal do ano 800.

 

Quando se fala de Carlos Magno, de seus feitos e de sua grandeza, não sei por que me vem à idéia a figura extraordinária de Moisés, também com seus feitos e sua grandeza. Moisés fundou a ordem no povo eleito, o qual era a pré-figura da Cristandade. Ele foi quem recebeu a revelação dos Dez Mandamentos da Lei, quem conduziu o povo eleito até as portas da Terra Prometida, tirando-o do cativeiro e constituindo, assim, os elementos fundamentais para que o povo eleito se fixasse e dele viesse a nascer o Salvador.

Carlos Magno teve uma tarefa que, considerada em essência, foi análoga à de Moisés. Ele tomou o povo católico, que estava sujeito a uma servidão iminente da parte dos piores adversários e, por uma luta tremenda, venceu a todos e estabeleceu os fundamentos da Civilização Cristã.

Para nos darmos conta um pouco de qual foi a tarefa de Carlos Magno, é preciso considerar as condições de seu tempo.

Os Srs. sabem que até o século V de nossa era, o Império Romano do Ocidente cobria toda a Europa Ocidental. E, em linhas muito gerais, estendia as suas fronteiras desde o Reno e do Danúbio até Portugal, no sentido do ocidente; até a Inglaterra no sentido do norte, e até a Itália no sentido do sul. Era, portanto, uma imensa unidade. Ainda mais imensa porque as vias de comunicação muito mais lentas naquele tempo do que no nosso, faziam com que fosse muito difícil um imperador governar toda essa extensão. De maneira que as dimensões de um tal Império, calculadas em relação com a máquina administrativa e política que deveria mantê-lo uno, eram proporções verdadeiramente gigantescas.

Esse Império foi derrubado pela avalanche dos bárbaros. Estes, como os Srs. também sabem, eram arianos ou pagãos. O arianismo era uma heresia que pode ser vagamente comparada ao protestantismo. O ariano era tão anti-católico quanto o é o protestante. Um bispo chamado Úlfilas, bispo ariano, tinha pervertido os pagãos bárbaros para a religião ariana. De maneira que grande parte dos bárbaros que invadiram o Império Romano (católico) eram arianos que vinham com a intenção de impor sua religião. Outros eram pagãos e queriam impor o paganismo. Uns e outros eram bárbaros. E como bárbaros, eram incompatíveis por hábito, por psicologia, por tendência natural, à civilização. Eles se estabeleceram no Império Romano do Ocidente, e foram espandongando, querendo ou não querendo, a civilização.

Para os Srs. terem uma idéia de como esses povos invasores eram realmente bárbaros, basta dizer que em geral não compreendiam que se pudesse dormir dentro de casa, pois sentiam claustrofobia. Então dormiam nas praças públicas. Mas havia inclusive uma tribo bárbara que sentia falta de ar em dormir na cidade. Então, quando chegava a noite, mandavam abrir a porta da cidade e iam dormir no mato, porque na cidade tinham dificuldade de respirar. Não é preciso dizer mais nada...

Um problema muito grave que os bárbaros se colocavam era se valia a pena se alfabetizarem. Com efeito, eles viam que os romanos eram alfabetizados, mas eram muito decadentes, corruptos e maus soldados. E achavam que a razão disso era a alfabetização. E então tinham o maior desprezo ao homem que se alfabetizasse. O alfabetizado era mais ou menos o efeminado, em português se diria hoje o “maricas”. Os Srs. compreendem por aí as idéias convulsionadas dessa gente.

Quando os bárbaros começaram a se fixar sobre o solo europeu, e a impor sua tirania, verificou-se que no Império debandado ficou, entretanto, de pé a Igreja. O Império Romano do Ocidente desapareceu, mas a Igreja com suas dioceses, com seus conventos etc., continuou de pé.

Havia, então, um ponto de salvação para tentar sair do abismo: era fortalecer a influência da Igreja e, por essa forma, reerguer-se da situação miserável em que a Europa tinha caído.

Entretanto, ocorre nova catástrofe. A Península Ibérica é invadida por maometanos, por causa da moleza e do quinta-colunismo entre os ostrogodos que habitavam a Espanha. Esta ficou quase toda tomada, e a onda árabe começou a invadir a Europa semi-romana e semi-bárbara, a partir dos Pirineus.

Os maometanos tomavam barcos, desembarcavam na Itália, desembarcavam no sul da França e começavam suas invasões também. De maneira que esta chaga viva, que era a Europa daquele tempo, ainda começou a sofrer a pancadaria maometana.

Foi nesse momento, em que tudo parecia perdido, que Deus suscitou esse homem extraordinário que foi Carlos Magno. Um homem que – a meu ver – foi um profeta. Quer dizer, um homem que realizou o reino de Deus, porque tinha os dons de compreender no que tal reino consistia e de conduzir outros a unirem suas vontades para essa realização. Tinha o dom – além do mais – de vencer, de derrubar os obstáculos que se opusessem a essa realização.

Carlos Magno era de uma família que já há algum tempo, cerca de duas gerações, tinha o reino dos francos. Essa família – entretanto também ela dividida por guerras internas, lutas intestinas, etc. – tinha certo ascendente entre os francos e estes eram apenas um dos povos bárbaros que havia na Europa.

Carlos Magno, dirigindo os francos, fez uma série de guerras, como os Srs. acabam de ouvir, cinqüenta e tantas expedições militares em que espandongou os bárbaros completamente. Depois também conteve o poderio maometano. E com isto ele recuou as portas da Historia. Quer dizer, a Historia parecia condenar irremissivelmente o povo latino a desaparecer sob a pressão germânica e a pressão maometana. Carlos Magno salvou a latinidade. E salvando a latinidade, salvou a Cristandade

 

Carlos Magno, por Durer

Esse homem que realizou esses feitos tão extraordinários, era hercúleo, segundo o descrevem. De alta estatura, de traços muito regulares e muito bem feitos, tendo conservado até a ancianidade alguma coisa de moço, mas ao mesmo tempo, no seu tempo de moço com qualquer coisa da maturidade da ancianidade; quando moço, incutia respeito como se fosse um ancião. E, no tempo de sua ancianidade, sabia infundir entusiasmo como se fosse um moço.

Ele era um homem tão amável, tão gentil, que a legenda popular dizia que ao longo de sua barba branca, quando sorria nasciam flores e que a sua barba era toda florida. Era chamado “o rei da barba florida”. Por aí os Srs. podem imaginar a riqueza dessa personalidade: terrível no combate - os adversários quando sabiam que Carlos Magno estava numa frente de batalha, já tinham a metade da batalha perdida - mas ao mesmo tempo tão amável, tão gentil, que os outros julgavam ver flores nascerem de sua barba.

 

Carlos Magno encontra-se com o Papa Adriano I, nas proximidades de Roma, o qual lhe pede que venha em auxílio da Santa Igreja, assediada por inimigos 

Esse grande guerreiro foi ao mesmo tempo um grande formador de homens. Formou um conjunto de varões, que passou para a Historia como o conjunto dos conjuntos, que foram os Doze Pares de Carlos Magno. Quando se fala de “Par de Carlos Magno”, se trata de uma relação ideal. Nunca - na ordem temporal, bem entendido - a relação entre um chefe e seus súditos foi tão nobre, tão elevada, tão forte, nunca a condição de súdito foi tão categórica, mas ao mesmo tempo comunicativa de tanta grandeza, quanto alguém ser um Par de Carlos Magno.

Entre Carlos Magno e seus Pares havia um andar, havia uma diferença. E de tal maneira ele era ele, que todos os Pares juntos não davam o que era Carlos Magno. Mas um seu Par de tal maneira era como que uma projeção de um aspecto de sua personalidade, que um Par de Carlos Magno era como um seu filho e um seu embaixador, trazendo consigo toda a carlomanicidade que tinha, participando da majestade de Carlos Magno, da força, da grandeza... Eram outros ele mesmo, embora ele fosse inconfundível.

Nessa relação está precisamente a beleza do nexo que os unia entre si. De outro lado, um aspecto muito bonito a ser considerado era a solidariedade desses Pares: uma solidariedade sem orgulho, sem inveja, que visava apenas o serviço do Imperador. E, em seu serviço, a Causa da Civilização Cristã. Portanto da Igreja Católica... Portanto de Nossa Senhora... e portanto de Nosso Senhor Jesus Cristo no mais alto dos Céus! Por isso eles eram intimamente unidos entre si.  O modelo ideal da amizade nobre, forte, varonil, despretensiosa e leal é a que reuniu os Pares de Carlos Magno.

Por causa disso, por uma tradição cristã em muitos países da Europa, a alta nobreza procurou tomar o título de Par: “Par do Reino”, no Reino Unido; “Par do Reino”, na França... Era uma cópia da relação de Carlos Magno com seus Pares, de tal maneira era a personificação de toda a perfeição de relações com os súditos, que elevava à condição de filhos e de outros ele mesmo, embora os mantivesse, ao mesmo tempo, claramente na posição de súditos.

 

Carlos Magno, com seus principais pares, recebe Alcuíno que lhe apresenta manuscritos realizados por seus monges. Jean-Victor Schnetz, 1830, museu do Louvre, Paris
 

Esse homem – de uma piedade acendrada – era ao mesmo tempo analfabeto... Esse analfabetismo nos mostra muito quão pouca coisa é esse aprender a ler e escrever apenas. Há um vício para os que aprendem a ler e escrever que consiste na equivocada idéia de que o pensamento começa no livro. Segundo tal concepção, quando o sujeito se dispõe a pensar qualquer coisa, o primeiro passo seria comprar um livro para ler algo a respeito do assunto a fim de poder pensar sobre o que leu...

Mas Carlos Magno, que não sabia ler nem escrever, sabia pegar as coisas por outro lado. E tinha uma tal noção das coisas, uma tal inteligência que organizou a instrução em todo o seu Império, chamando homens como Alcuíno, capazes de servir para ele como uma espécie de “Ministro da Cultura”...

Não só. Havia Concílios de Bispos em que estava presente. Via os Bispos decidirem, pois a esses cabe decidir nos assuntos da Igreja. Sem embargo do que Carlos Magno fazia uso da palavra, entrando nos debates teológicos que eram travados e, em geral, fazia-o com sucesso. Era ele que tinha a fórmula teológica certa, apesar de que fosse um homem que não passara por Seminários. Os Srs. compreendem o que era um varão desses... 

 

Estátua de Carlos Magno na basílica de São Pedro, Vaticano, Agostino Cornacchini, 1725

Ele foi o muro da Igreja, o arrimo da Igreja, a glória da Igreja, o filho da Igreja. Não invadiu os direitos da Igreja, respeitou Sua soberania, reconheceu-Lhe todo o poder. E, por causa disso, a Igreja também o coroou.

 Todo mundo sabe o lindíssimo fato de que no ano de 800 ele se achava na primeira basílica papal, ou seja na então igreja de São João de Latrão (hoje Basílica), em Roma, genuflexo, rezando antes de o Papa entrar para celebrar a Missa de Natal. Quando o Sumo Pontífice ingressou, veio trazendo uma coroa de ouro e, na pessoa de Carlos Magno reconstituía o Império Romano esboroado, proclamando-o Imperador. O povo aclamou: "Viva Carlos Magno, nosso Imperador!" Estava restaurado assim o Império Romano, que haveria de durar cerca de mil anos.

Esse gesto é lindíssimo! É a Igreja reconhecendo e coroando na terra aquele que Deus por certo terá coroado no Céu.

A sagração de Carlos Magno como Imperador pelo Papa São Leão III. Iluminura de Jean Fouquet

Há também outro aspecto bonito a ser considerado: o poder de um Papa! O Império Romano é uma instituição que não nasceu dos Papas. O senado romano foi quem criou a grandeza romana e os imperadores romanos nasceram da decadência da república romana, uma instituição pagã, portanto, mas que se cristianizou com Constantino. O Papa se julgava e estava no poder de recompor o Império Romano. Recompôs e fundou o Sacro Império Romano, ou seja, o Império Romano Sagrado, feito para a defesa da Fé.

Nessa noite de Natal, Pedro acabava de forjar para si um gládio de ouro, que era o Sacro Império Romano Alemão, com a missão de defender a Fé por toda a Cristandade...

Maravilhas, belezas! Elas nos lembram dias tão diferentes dos que hoje vivemos. Mas há certos ideais que nunca morrem, porque são diretamente deduzidos da Fé, e são imortais como a Fé! E quando se ouve narrar fatos desses, a gente compreende que a Historia do mundo não pode terminar simplesmente numa derrota de Deus. Tem que haver uma monumental desforra. E a Revolução gnóstica e igualitária tem que ser derrotada de maneira a se constituir o Reino de Maria, para o qual o mundo foi criado. O mundo foi criado por Deus para que, em determinado momento, o reino dEle sobre o mundo fosse pleno. É preciso que isto se realize.

Temos então da recordação desses fatos uma esperança no futuro, e aquilo constitui - usando a expressão norte-americana que achei tão boa - um “anacronismo criativo”. Nada de mais anacrônico do que o Império de Carlos Magno, mas é um anacronismo criador. A lembrança desse Império cria a esperança de um futuro, cria a certeza de um futuro. Nós caminhamos para a restauração daquela ordem de que Carlos Magno foi um símbolo.

O Prof. Plinio venera o trono de Carlos Magno, por ocasião de sua viagem a Aachen (Aix-la-chapelle), em outubro de 1988

Podemos pedir a Carlos Magno que reze por nós. Nem todos os episódios da vida de Carlos Magno são inteiramente claros. A Igreja não se pronunciou bem exatamente sobre se ele é santo ou não. Mas, em certas regiões da Europa, por costume se festeja uma festa do “bem-aventurado Carlos Magno”. No tempo do Papa  Bento XIV (séc. XVIII), os antepassados dos progressistas tomados de zelo - porque nessas horas os progressistas têm zelo... - quiseram abolir a festa de Carlos Magno. E Bento XIV lançou um Breve no qual declarava que nos lugares onde Carlos Magno era cultuado como bem-aventurado, tal culto podia continuar.

Podemos, portanto, na noite de hoje, se não de um modo público ao menos no interior de nossas almas, pedir a Carlos Magno que nos dê essa força invencível para colaborarmos com a fundação do Reino de Maria, assim como ele fundou a Idade Média, da qual foi a pedra angular.

Isto é a intenção do Santo do Dia de hoje.

(Aparte: A respeito da devoção a Carlos Magno, vem a propósito lembrar o que dizia Santa Joana d'Arc: a missão dela se devia às orações de “Monseigneur São Luís e Monseigneur São Carlos Magno”...).

Não pode haver coisa mais bonita! Tanto mais quanto Santa Joana d'Arc recebia revelações do Céu e saberia bem onde estariam “Monseigneur São Luís e Monseigneur São Carlos Magno”, não é? Então, digamos como Santa Joana d'Arc: Monsenhor São Luís e Monsenhor São Carlos Magno, rogai para que acabe com a Revolução gnóstica e igualitária e que venha logo o Reino de Maria!


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