Plinio Corrêa de Oliveira

 

O direito de propriedade e a livre iniciativa no projeto de emenda constitucional no. 5/64 e no projeto de Estatuto da Terra

 

 

 

 

Catolicismo, n° 168, Dezembro de 1964, págs. 2 a 6

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I - Introdução: o direito de propriedade e a livre iniciativa, direitos da pessoa humana e princípios fundamentais da civilização cristã

Os autores do presente estudo desejam esclarecer preliminarmente o alcance do duplo critério sob o qual consideram os projetos de Estatuto da Terra e da correspondente emenda constitucional, ora em curso no Congresso Nacional.

Não é raro ouvirem-se, sobre a matéria, considerações segundo as quais o direito de propriedade constituiria um privilégio pessoal, oposto por natureza ao bem comum. E a livre iniciativa seria, na mesma ordem de idéias, uma forma de atividade voltada fundamentalmente para o bem do indivíduo, mas esquecida por isso mesmo dos interesses da coletividade.

O defeito de ambas essas maneiras de ver está em que consideram o indivíduo, com suas posses e suas liberdades, como um perigo para a coletividade. Importa isso em esquecer que é, em última análise, de indivíduos que se constitui a sociedade. Tudo quanto engrandece o indivíduo engrandece a sociedade. E reciprocamente.

Essas considerações bastam para mostrar que velar pela propriedade privada e pela livre iniciativa implica em velar por elementos fundamentais do bem comum.

* * *

Mas, dir-se-á, quando ocorre conflito entre os direitos do indivíduo e da sociedade, é cabível velar por aqueles e não por estes?

Nos casos em que tal conflito ocorre, os direitos individuais são chamados a cumprir sua função social. Pois todo direito individual – e não apenas o de propriedade – tem uma função social a cumprir.

Mas ainda aqui há uma ponderação a fazer. É que a verdadeira solução em casos de conflito não consiste em imolar as pessoas em holocausto à sociedade, ou permitir que esta se dissolva para não sacrificar as pessoas.

Quem fala em função fala em órgão. A função social de um direito individual está para este como qualquer função está para o respectivo órgão. Nestas condições, o ponto de equilíbrio consiste em que o órgão execute plenamente sua função, mas esta não mutile nem extenue o órgão.

É o que objetivamos com os presentes reparos e sugestões aos projetos de emenda constitucional e de Estatuto da Terra.

* * *

Digamos algo agora a respeito da livre iniciativa.

Sendo o homem um ente dotado de inteligência e vontade, está em sua natureza prover por si mesmo à própria subsistência. Este é o fundamento do direito do homem à livre iniciativa. Quando se lhe nega esse direito, ele é um escravo.

Esse direito, como todos os outros, tem suas legítimas limitações:

1. Ele não pode ser exercido contrariamente aos direitos de terceiros ou da sociedade;

2. Nenhum homem é capaz de prover só por si a todas as suas necessidades. No que ele não se baste, deve auxiliá-lo subsidiariamente a família. No que esta não baste a si própria, deve auxiliá-la o município. E assim por diante se chega, de ação subsidiária em ação subsidiária, até o Estado (ou União, na atual estrutura política do Brasil). É o que se chama o princípio de subsidiariedade, esplendidamente desenvolvido na Encíclica Mater et Magistra.

A ação do indivíduo só deve ser coarctada quando comprovada e gravemente nociva ao bem comum. A ação dos grupos e órgãos subsidiários, de si, não é feita para coarctar mas para completar a ação individual.

Está na índole desta doutrina admitir que habitualmente os homens sabem exercer com suficiente capacidade as profissões a que se dedicam, e que grosso modo, ressalvadas as situações excepcionais, a serem comprovadas em cada caso, o exercício reto dessas miríades de atividades individuais realiza o bem comum.

Infelizmente, a esses conceitos, que nada têm de comum com o liberalismo desenfreado da Revolução Francesa e das escolas econômicas do século XIX, são infensos não só os liberais, raros em nossos dias, como as pessoas de formação consciente ou subconscientemente socialista.

Tendem estas cada vez mais a ver no progressivo dirigismo estatal a normalidade da vida. O homem, elas o vêem, sempre mais, agindo quando a lei e o Estado mandam agir e parando quando eles mandam parar. Esta tendência aflora em vários dispositivos do Estatuto da Terra, que adiante analisaremos.

Ainda aí há, para a consciência cristã, um justo equilíbrio a preservar entre livre iniciativa e Poder público.

* * *

Velando por que a propriedade privada e a livre iniciativa não sejam mutiladas pela emenda constitucional e pelo Estatuto da Terra, cumprimos um dever de nossa consciência cristã.

A livre iniciativa e a propriedade privada são princípios basilares da civilização cristã. Encontram elas fundamento na própria lei de Deus.

Se violentar a consciência da menor e mais obscura das pessoas traz para quem sofre e para quem pratica a violência consequências imprevisíveis e das piores, o que se dirá dos efeitos que podem advir da imposição de uma lei – antes diríamos de todo um código rural – que violente a consciência cristã de toda uma nação, da mais populosa nação católica da terra?

O Poder público se verá obrigado a desenvolver uma ação cada vez mais rígida para, ao longo dos anos, ir sujeitando a Nação ao molde que sua consciência repele. Com isto se deteriorará progressivamente nossa vida pública, nossas instituições tomarão uma fisionomia sombria e draconiana, a que é tão avesso o feitio afável e até carinhoso do brasileiro, e com tudo isto só poderá lucrar a demagogia que a imensa maioria de nosso povo repudiou formalmente através do glorioso movimento de 31 de março.

II - O direito de propriedade no projeto de emenda constitucional no. 5/64 e no projeto de Estatuto da Terra

Segundo a doutrina católica, o direito de propriedade, em seus vários aspectos – isto é, a propriedade dos bens, e dos instrumentos e fatores necessários à sua produção – não resulta de uma concessão do Estado, mas da ordem natural das coisas, posta por Deus.

As seguintes considerações explicam a gênese e a legitimidade do direito de propriedade:

“Todo ser vivo é dotado por Deus de um conjunto de necessidades, de órgãos e de aptidões que estão postos entre si numa íntima e natural correlação. Isto é, os órgãos e as aptidões de cada ser se destinam diretamente a atender às necessidades dele.

O homem se distingue dos outros seres visíveis por ter uma alma espiritual dotada de inteligência e vontade. Pelo princípio de correlação que acabamos de enunciar, a inteligência serve ao homem para conhecer suas necessidades e saber como satisfazê-las. E a vontade lhe serve para querer e fazer o necessário para si. Está, pois, na natureza humana conhecer e escolher o que lhe convém.

Ora, estas faculdades não seriam úteis ao homem se ele não pudesse estabelecer um nexo entre si e aquilo de que precisa. De que adiantaria, por exemplo, ao habitante do litoral saber que no mar há peixes, como estes são pescados, ter vontade firme de enfrentar as ondas e efetuar a pesca, se não lhe fosse lícito formar um nexo com o peixe pescado, de forma a poder trazê-lo à terra e dispor dele, com exclusão de qualquer outra pessoa, para sua nutrição? Esse nexo se chama, no caso, apropriação. O pescador se torna proprietário do peixe. Este direito de propriedade resulta para ele – para qualquer pessoa, pois – da sua natureza de ser inteligente e livre. E Deus criou os seres úteis aos homens, para que estes se servissem deles habitualmente por apropriação.

Se é lícito ao homem apropriar-se desse modo dos bens que existem, sem dono, na natureza, e consumi-los, pelo mesmo motivo lhe é permitido apropriar-se destes bens, já não para os consumir, mas para fazer deles instrumentos de trabalho. Assim aquele que se apropria de um peixe, não para o comer, mas para usá-lo como isca. Esta verdade é ainda mais fácil de perceber quando alguém toma um objeto inapropriado e sem utilidade, um sílex, por exemplo, e, afiando-o, lhe confere uma utilidade que não tinha. Pois esta utilidade nova do sílex é produto do trabalho, e todo homem, por ser naturalmente dono de si, é dono de seu trabalho e do fruto que este produz.

Mas o homem vê que suas necessidades se renovam. Sua natureza, capaz de apreender e recear o perigo de um suprimento instável, desejosa por si mesma de estabilidade, pede que ele disponha de meios para se garantir contra as incertezas do futuro. É pois lícito que ele, além de ser dono de bens e de meios de produção, acumule pela poupança o produto de seu trabalho, prevenindo assim o futuro. E, sendo o caso, se torne também dono da fonte de produção. A apropriação de reservas móveis e de bens imóveis assim se justifica inteiramente” (Reforma Agrária – Questão de Consciência – D. Geraldo de Proença Sigaud, Arcebispo de Diamantina, D. Antônio de Castro Mayer, Bispo de Campos, Plinio Corrêa de Oliveira e Luiz Mendonça de Freitas – 4ª ed., p. 33).

Assim, não tem o Estado, em princípio, o direito de cercear a propriedade privada a não ser nos casos em que, comprovadamente, contrarie ela necessidades graves do bem comum, e não haja outros meios de atender a essas necessidades.

Em princípio a emenda constitucional e o Estatuto da Terra chocam-se com essas considerações, pois: a) declaram desapropriáveis os imóveis rurais não usados, ou inadequadamente usados; b) ressalvando, na aparência, da ação desapropriatória do Estado os imóveis rurais adequadamente usados, na realidade sujeitam a ela grandíssimo número destes. Esse último ponto será objeto de ulterior desenvolvimento.

1. A doutrina católica e a desapropriação das terras não cultivadas, ou inadequadamente cultivadas, nos projetos

Cuidemos agora do problema da legitimidade da desapropriação dos imóveis rurais não usados ou mal usados.

A esse respeito, afirmemos antes de tudo que, segundo a doutrina católica, o direito de usar ou não usar um imóvel rural é inerente à propriedade. Ensinou-o o Papa Pio XI na Encíclica Quadragesimo Anno “(...) a fim de pôr termo às controvérsias que acerca do domínio e deveres a ele inerentes começam a agitar-se, note-se em primeiro lugar o fundamento assente por Leão XIII, de que o direito de propriedade é distinto do seu uso(Enc. Rerum Novarum, § 35). Com efeito, a chamada justiça comutativa obriga a conservar inviolável a divisão dos bens e a não invadir o direito alheio, excedendo os limites do próprio domínio; mas que os proprietários não usem do que é seu, senão honestamente, é da alçada não da justiça, mas de outras virtudes, cujo cumprimento ‘não pode urgir-se por vias jurídicas’ (cfr. Enc. Rerum Novarum)”. E mais adiante: “É alheio à verdade dizer que se extingue ou se perde o direito de propriedade com o não uso ou abuso dele”.

O direito de não usar inclui a fortiori o de usar de modo deficiente ou inadequado.

Esse direito só pode sofrer restrição caso o uso insuficiente ou o não uso da terra traga à sociedade um dano grave, que não possa ser remediado de outro modo.

Mas esse dano grave precisa ser comprovado. Não se pode restringir ou aluir com fundamento em um fato incerto um direito certo.

Baseados nesses princípios, dizemos que a emenda constitucional e o Estatuto da Terra ferem o direito de propriedade enquanto expõem ao risco de desapropriação os imóveis rurais não usados ou insuficientemente usados, e admitem como notório que nossa situação agrária apresenta problemas graves que tais desapropriações, e só elas, podem resolver. Ora, nem isto é notório, nem as mensagens e justificativas de ambos os projetos apresentam nesse sentido a menor prova. Como mostramos no livro Reforma Agrária – Questão de Consciência, os dados estatísticos de que se pode dispor orientam o espírito em sentido oposto, e esses dados não foram, até agora, objeto de qualquer refutação convincente.

Por outro lado, o Brasil é um país de Constituição escrita rígida, a qual só pode ser reformada em condições muito especiais, e mais difíceis que as que se exigem para modificar a legislação ordinária.

Está na índole de nossa Constituição, como das congêneres, que os direitos fundamentais da pessoa humana fiquem inscritos nela, a salvo do vaivém das leis ordinárias.

Ora, aprovado o projeto de emenda constitucional, o direito de propriedade dos imóveis não usados ou usados insuficientemente ficará exposto a todos os riscos. Como provaremos no item seguinte, algo de análogo se poderá dizer da propriedade das terras convenientemente aproveitadas. É, pois, todo o direito de propriedade relativo a imóveis rurais que ficará desprotegido.

E isto, repetimos, sem que se tenha provado a necessidade da desapropriação dos imóveis rurais não usados e insuficientemente usados (nem, ainda menos, dos convenientemente usados) na realidade brasileira.

* * *

Para compreender os dispositivos concernentes à desapropriação dos imóveis não explorados ou mal explorados, cumpre antes de tudo ter em vista os seguintes conceitos adotados pelo Estatuto da Terra:

“Art. 4º - Para os efeitos desta lei são estabelecidas as seguintes definições de imóvel rural, suas várias modalidades, bem como as de parceleiro, Cooperativa Integral de Reforma Agrária, e Colonização:

I – “Imóvel Rural”, o prédio rústico, de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destina à exploração extrativa, agrícola, pecuária ou agroindustrial, quer através de planos públicos de valorização, quer através da iniciativa privada;

II – “Propriedade Familiar”, o imóvel rural que atenda simultaneamente as seguintes condições:

a) seja direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, ou com eventual ajuda de terceiros;

b) absorva toda a força de trabalho do conjunto familiar;

c) garanta-lhes a subsistência, progresso social e econômico;

III – “Minifundio”, o imóvel rural que, dentro das condições regionais, ainda que suficiente para o sustento de uma família, não lhe possibilite progresso social e econômico conforme os termos do inciso II deste artigo;

IV – “Latifúndio”, o imóvel rural que:

a) exceda a dimensão máxima fixada na forma do art. 48, § 1º, alínea “b”, desta lei, tendo em vista as condições e sistemas agrícolas regionais;

b) ainda que não excedendo o limite referido na alínea anterior, mas de área igual ou superior à dimensão do módulo de propriedade rural, seja mantido inexplorado em relação às possibilidades físicas, econômicas e sociais do meio, visando a fins especulativos, ou seja explorado com formas manifestamente deficientes ou inadequadas, de modo a vedar-lhe a inclusão no conceito a que se refere o inciso seguinte;

V – “Empresa Rural”, a pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que explora racionalmente imóvel rural, o qual, simultaneamente:

a) apresente rendimentos considerados satisfatórios e explore uma percentagem mínima de área agricultável, a ser fixado pelo IBRA, de acordo com as condições ecológicas e econômicas da região;

b) adote práticas conservacionistas;

c) ofereça aos que nele trabalham, condições que garantam nível de vida não inferior ao assegurado pela remuneração que constitui o salário mínimo regional;

(...).

§ único – (...).

Art. 5º - A área fixada nos termos do art. 4º, inciso II, alínea “d”, é o módulo da propriedade rural para todos os efeitos desta lei.

§ 1º - Em cada zona, com características econômicas e ecológicas homogêneas, serão fixados módulos, na forma do art. 48 § 1º, alínea “a”, separadamente para tipos de exploração que nela possam ocorrer; hortigranjeira; agrícola intensiva; agrícola extensiva; pecuária intensiva; pecuária extensiva; extrativas florestas e outras.

§ 2º - Nos casos de exploração mista, os módulos serão fixados pela média ponderada das partes do imóvel destinada a cada um dos tipos de exploração considerados no § 1º.

A desapropriação dos latifúndios será feita “especialmente nas áreas prioritárias” (Estatuto da Terra, art. 23 – item I) e portanto também fora delas. Note-se que, segundo a estranha terminologia do projeto de Estatuto da Terra, latifúndio não é só um imóvel de dimensões superiores às permitidas pela lei, mas qualquer propriedade de área igual ou superior ao “módulo”, desde que não seja usada, ou seja explorada “com formas manifestamente deficientes ou inadequadas” (art. 4º - item IV – letra “b”). uma propriedade de dimensão familiar pode ser considerada latifúndio. E todo latifúndio cuja área seja superior a três vezes o “módulo” é desapropriável (art. 22 - § 3º - letra “a”). Fica, pois, plenamente caracterizado o papel do não uso ou do uso inadequado da propriedade, como elemento de desapropriação.

O art. 23, item VII, do Estatuto da Terra também inteiramente concludente neste sentido:

“Art. 23 – O Poder público, para efeito de realizar desapropriações, nos termos da presente lei e da sua regulamentação, observados os planos regionais, deverá ter em vista a seguinte prioridade:

(...);

VII – as terras cujo uso atual não seja, comprovadamente, através de estudos procedidos pelo IBRA, o adequado à sua vocação de uso econômico”.

Há uma circunstância que agrava a colisão entre esse sentido expropriatório dos projetos de emenda constitucional e de Estatuto da Terra, e a doutrina católica.

O art. 45 prevê que em certas áreas, nas quais se verificam crises ou tensões, se deve proceder à Reforma Agrária, “com progressiva eliminação dos minifúndios e dos latifúndios”. Assim, nessas áreas o remédio normal para a tensão ou crise é pelo menos em parte a desapropriação.

Esse modo de proceder não parece tomar em consideração que a região crítica constitui parte integrante de um País em cujo imenso território cabem uma área apropriada considerável e uma imensa reserva de terras devolutas. O art. 45 procede como se cada área crítica fosse um pequeno país independente.

Ora, a justiça manda que só se recorra à desapropriação no caso de os problemas da área crítica não terem nenhuma possibilidade de serem resolvidos pelo Poder público através do povoamento de outras áreas já ocupadas mas suscetíveis de melhor aproveitamento, ou, conforme o caso, de terras devolutas.

Segundo esse princípio, caberia quanto às zonas críticas a seguinte ordem de prioridade: a) aproveitamento das terras devolutas, no interesse da expansão interna do País; b) não sendo isso possível por motivo de excesso de despesas ou outras razões, deve o Poder público canalizar o superávit de população para as áreas não sobrecarregadas do ponto de vista demográfico; c) só em último caso a desapropriação.

Mas, perguntar-se-á, pelo menos as áreas devidamente cultivadas e de tamanho permitido pelo Estatuto da Terra escapam à ação desapropriatória do Estado? É o que veremos no item seguinte.

2. Também as terras bem cultivadas estão expostas ao arbítrio do IBRA em matéria expropriatória

Quem ler sumariamente os 133 artigos do projeto de Estatuto da Terra poderá ficar com impressão de que ele confere ao Poder público meios efetivos de promover a expropriação e fraccionamento de imóveis rurais, mas que só ficam sujeitos a essa ação expropriatória os imóveis inexplorados, ou mal explorados, cujos proprietários, indolentes, incompetentes, ou ávidos de ganhar na mera especulação, não proporcionem existência condigna ao trabalhador rural e sua família, nem produzam suficientemente para contribuir para o progresso rural do País.

Assim, pense-se o que se pensar da desapropriação das terras acima referidas, pelo menos afigurar-se-ia certo que os proprietários diligentes e bem sucedidos estarão fora do perigo de uma expropriação.

O art. 4º, com suas várias definições, e especialmente as de “minifúndio” (item III), “latifúndio” (item IV) e “empresa rural” (item V), parece deixar claro que esta última nenhuma sanção tem que temer. E isto tanto mais quanto o art. 22 § 3º, letra “b”, declara taxativamente que as “empresas rurais” não estão sujeitas a desapropriação.

É compreensível que esta restrição à ação expropriatória do Poder público seja reputada como preciosa pelos que, por motivos ideológicos, ou na defesa de seus direitos de proprietários, têm o desejo de evitar que, sob a alegação especiosa de combate ao latifúndio e ao minifúndio, o Estatuto da Terra propicie de fato a fragmentação de todos os imóveis rurais para impor ao Brasil uma estrutura agrária constituída exclusivamente de propriedades de dimensão familiar.

Realmente, abolida a garantia constitucional contra os abusos da ação expropriatória do Estado, mercê da emenda constitucional proposta pelo Executivo, contra esses abusos a única defesa que resta são os mencionados dispositivos do Estatuto da Terra.

Isto posto, legítimo é que perguntemos de que alcance concreto serão essas garantias, uma vez que seja aprovado o Estatuto da Terra.

* * *

Ponderemos inicialmente que o latifúndio (art. 4º - item IV) ou é tal em virtude de seu tamanho, ou em virtude de ser inexplorado ou explorado de modo deficiente ou inadequado.

Ora, quanto ao tamanho, dir-se-ia talvez, feita uma primeira leitura do art. 4º, inciso IV, letra “a”, combinado com o art. 48, § 1º, letra “b”, que ele é bem definido: será latifúndio toda propriedade que exceda a seiscentas vezes o módulo médio da respectiva zona. Essa impressão, porém, se desfaz com uma análise mais atenta dos aludidos dispositivos. Estes estabelecem “os limites máximos”, acima dos quais toda e qualquer propriedade é latifúndio. Mas deixam aberta a possibilidade de ser marcado um nível qualquer, inferior, a este, para caracterizar o latifúndio. Qual a medida mínima deste nível? O Estatuto da Terra não o diz. Fica ele, pois, ao critério dos regulamentos que o Executivo pode fazer e alterar a qualquer momento, e que forçosamente deverão ter adaptações às diversas zonas e culturas, adaptações essas também deixadas ao arbítrio do Executivo.

O latifúndio ainda pode ser tal em razão de outro critério (art. 4º - Item IV – letra “b”). é o de estar inexplorado, ou “explorado com formas comprovadamente deficientes ou inadequadas”.

Ora, em que casos uma forma de exploração é “deficiente”? em que casos é simplesmente “inadequada”? quem decidir dessa questão – e é o Poder público – terá a faculdade de classificar ou desclassificar como latifúndio ou empresa rural um imóvel determinado. E poderá fazê-lo, dado o silêncio do Estatuto da Terra, por meio, também, de regulamentos.

Assim, apesar da aparente nitidez das classificações contidas no art. 4º, fica facultado ao Poder público voltar a sua ação expropriatória contra um número indefinido, e certamente muito grande, de propriedades.

Análoga afirmação se pode fazer, como se verá pouco adiante, no que se relaciona com a qualificação das zonas prioritárias pelo IBRA, e correspondentemente nas respectivas esferas, com a atuação das IBRAR.

Também se poderiam fazer essas observações, mutatis mutandis, a propósito das possibilidades de pressão tributária contra as propriedades grandes e médias.

* * *

Antes de entrar nestes pormenores, cumpre acentuar que alcance prático eles têm.

Muitos são, no Brasil e fora dele, os estudiosos que, levados por uma visualização romântica da pequena propriedade familiar, nela vêem a solução perfeita e quiçá única de todos os problemas rurais. Dedicam-se eles a inquéritos, análises e estatísticas cujos resultados se lhes afiguram sempre comprobatórios da tese bem amada, se pessoas com essa tendência – enfática e  impetuosa como soem ser as tendências utópicas – forem nomeadas por algum Presidente da República para constituir o órgão supremo do IBRA, nenhum recurso há no Estatuto da Terra para garantir contra elas a sobrevivência da propriedade grande e média. A isto ficará reduzida a garantia do direito de propriedade no Brasil!

Fatos bem recentes mostram quanto é possível à demagogia iludir a opinião pública e através do exercício regular do sufrágio universal assenhorear-se do poder. Se o Estatuto da Terra estivesse vigente sob o governo de nossos dois últimos Presidentes, nada, absolutamente nada os teria impedido de exercer uma ação tremendamente niveladora na estrutura rural brasileira.

Para isto lhes teria sido de especial socorro o art. 26, que, considerando irreversíveis as desapropriações feitas pelo IBRA, expões os proprietários a uma ação dispendiosa, longa, resolvível tão-somente em perdas e danos calculados em nossa moeda eventualmente depreciada.

* * *

Vejamos agora, através da análise de diversos artigos, que oportunidade o Estatuto da Terra oferece para que pessoas dotadas da aludida mentalidade dêem livre curso, caso colocada à testa do IBRA ou das IBRAR, às suas tendências expropriatórias:

“Art. 45 – O IBRA promoverá a realização de estudos para o zoneamento do País em regiões homogêneas do ponto de vista sócio-econômico e de características da estrutura agrária, visando a definir:

I – As regiões críticas que estão exigindo uma Reforma Agrária com progressiva eliminação dos minifúndios e dos latifúndios;

II – As regiões em estágio mais avançado de desenvolvimento social e econômico e nas quais não ocorram tensões nas estruturas demográficas e agrária;

(...)”.

Que características deve ter uma zona para ser considerada críticas? Em outros termos, que é definidamente uma crise? Qualquer que seja o grau de intensidade de uma crise, constituirá ela razão suficiente para determinar uma reforma de estrutura? Na hipótese negativa, a partir de que grau passa a crise a ser razão suficiente para o dito fim? Que características se exigirão para definir esse grau? Quem determina quando a crise deve ser resolvida pela “progressiva eliminação dos minifúndios e latifúndios”? por exemplo, se há vários meios, entre os quais também este, para debelar a crise, quando é o caso de usar este ou os outros meios?

O inciso II se refere às regiões onde não cabe a Reforma Agrária. Como esta cabe nas “regiões críticas” (I) e não cabe nas regiões “nas quais não ocorram tensões” (II), vê-se que, para o Estatuto da Terra, crise equivale a tensão, pois para ele existe crise onde há tensão, e reciprocamente. De si a palavra “crise” é mais enérgica do que a palavra “tensão”; uma pequena crise sempre importa em uma apreciável tensão. Uma pequena tensão não importa, de si, em crise.

A terminologia do Estatuto da Terra, pela inesperada sinonímia entre crise e tensão, amplia muito o conceito de crise, e com isto torna ainda maior o número de casos em que a Reforma Agrária pode ser aplicada.

Para se dar conta disto, basta repetir a propósito do conceito de tensão as perguntas acima feitas relativamente ao conceito de crise.

“§ 1º (do art. 45) – Para a elaboração do zoneamento e caracterização das áreas prioritárias serão levados em conta, essencialmente, os seguintes elementos:

a) a posição geográfica das áreas, em relação aos centros econômicos de várias ordens, existentes no País;

b) o grau de intensidade de ocorrências de áreas em imóveis rurais acima de 1000 hectares e abaixo de 50 hectares;

c) o número médio de hectares por pessoa ocupada;

d) as populações rurais, seu incremento anual e a densidade específica da população agrícola;

e) a relação entre o número de proprietários e o número de rendeiros, parceiros e assalariados em cada área”.

O advérbio “essencialmente”, na cabeça deste parágrafo, se presta a confusão. Significa apenas “necessariamente”? ou também “principalmente”? em que medida esses fatores se deverão conjugar com os outros, não “essenciais”, para os quais o Estatuto da Terra deixa a porta aberta? Quais são esses fatores não “essenciais”, variáveis provavelmente, pelo menos em grande número de casos, de zona para zona?

Em que medida se combinarão entre si os elementos definidos nas letras “a” e “e”? Segundo que critérios?

E se considerarmos cada um desses elementos isoladamente, como determinar, quanto a cada um deles, em que consiste uma situação de “tensão”?

Uma observação que se pode relacionar com vários fatores analisados a seguir é que eles são considerados de um modo apenas estático, abstração feita das formas de exploração que existam nas áreas respectivas ou a que estas se prestem. Ora, tais fatores só exprimirão a realidade concreta se se tiver em conta essa forma de exploração. Mas, a ser ela tida em conta, tal é a multiplicidade de aspectos a ponderar quanto a cada elemento, que nenhuma lei e nenhum regulamento poderá abranger todos esses aspectos. E isto porá em mãos do IBRA uma latitude de apreciação às vezes indefinida.

Consideremos agora em si mesmos alguns destes elementos:

Elemento “b” – Quanto a este elemento também cabem várias perguntas. A “ocorrência” de que trata esta alínea “b” tem significado bem diverso em terras destinadas à pecuária ou à lavoura, às atividades hortigranjeiras por exemplo, de sorte que a adoção de um critério único para a ponderação deste fator, aplicável a quaisquer terras, chegaria ao absurdo. Será, pois, indispensável relacionar este elemento com os diversos tipos de uso da terra. De outro lado, ao fazer essa relação, será preciso ter em conta a influência de circunstâncias locais sobre o alcance concreto deste fator. Por exemplo, ele pesará de um modo em zonas mecanizadas ou facilmente mecanizáveis, e de outro modo em zonas que não o sejam. Segundo que critérios estabelecer esta relação para o efeito de caracterizar uma eventual “tensão”?

Elemento “c” – Quanto a este fator caberiam perguntas análogas às formuladas para o anterior.

Elemento “d” – Este fator dá ensejo também, sempre para o mesmo fim, a diversas perguntas. A importância da população, de seu incremento e densidade, varia forçosamente de significado segundo as diversas zonas. Assim, um será o seu alcance no polígono das secas, outro no Norte do Paraná e em Santa Catarina. Quais os elementos a ter em vista e a combinar entre si, para determinar em cada caso a importância desse fator, e a existência de uma possível “tensão”?

Elemento “e” – Quanto a este fator, sempre para efeito de determinação da “tensão”, cabe uma pergunta análoga, relativa não só à zona, como às características de cada tipo de cultura.

§ 1º (do art. 48) – Nas áreas prioritárias de Reforma Agrária serão complementadas as fichas cadastrais elaboradas para fornecer aos Estados bases para os lançamentos fiscais, com dados relativos ao relevo, às pendentes, à drenagem, aos solos e a outras características ecológicas que permitam avaliar a capacidade do uso atual e potencial, a fixar uma classificação das terras para os fins de realização de estudos micro-econômicos, visando, essencialmente, à determinação por amostragem para cada zona e forma de exploração:

a) das áreas mínimas ou módulos de propriedade rural determinados de acordo com os elementos enumerados neste parágrafo e mais, a força de trabalho do conjunto familiar médio, o nível tecnológico predominante, a renda familiar a ser obtida;

b) dos limites máximos permitidos de áreas dos imóveis rurais, os quais não excederão a 600 vezes o módulo médio da propriedade rural nem a 600 vezes a área média dos imóveis rurais, na respectiva zona;

c) das dimensões ótimas do imóvel rural do ponto de vista de rendimento econômico;

d) do valor das terras em função das características do imóvel rural, da classificação e capacidade potencial de uso e da vocação agrícola das terras;

e) determinação dos índices mínimos de produtividade agrícola, para confronto com os mesmos índices obtidos em cada imóvel rural nas áreas prioritárias de Reforma Agrária”.

Letra “a” – Este parágrafo e sua letra “a”, enunciando as informações que o Estatuto da Terra reputa necessárias para “a determinação por amostragem, para cada zona e forma de exploração”, da extensão da propriedade familiar, ou seja, “das áreas mínimas ou módulos de propriedade rural”, põem em evidência a multiplicidade e complexidade dos critérios a serem seguidos, bem como a influência das circunstâncias locais na avaliação do alcance de cada critério. O órgão a quem compete determinar o módulo – o IBRA ou a IBRAR, também neste ponto o projeto não é claro – ficará em sua própria esfera com uma elasticidade de movimentos análoga à que terá o IBRA na determinação das zonas críticas.

Letra “b” – Essa amplitude de movimentos do órgão competente é circunscrita pela letra “b” no que diz respeito à existência de propriedades muito grandes. Não pode ele admiti-las além das medidas expressamente designadas aqui. Porém, fica com a atribuição de reduzir “os limites máximos permitidos de áreas dos imóveis rurais” em toda a gama que vai de uma propriedade-módulo até seiscentas vezes o tamanho desta. Segundo que critérios se fará essa limitação, em cada zona? Essa formidável atribuição, que dá ao órgão competente os meios de modelar larguissimamente nossa estrutura rural, poderá evidentemente ser exercida em 1965 com um critério que em 1970, por exemplo, já esteja substituído por outro mais restrito.

Letra “c” – Os critérios para a qualificação dessas “dimensões ótimas” ficam indeterminados no Estatuto da Terra.

Letra “d” – Entre as várias perguntas que se poderiam fazer quanto a esta alínea sobreleva uma, referente à “vocação agrícola” de uma terra. O conceito de “vocação agrícola”, que várias vezes se encontra no projeto, o que significa? Neste caso, uma terra pode ter várias vocações agrícolas equivalentes. Com que critério o órgão competente preferirá uma delas? Influirá, neste critério, a maior remuneração do produto para o proprietário? Então, a vocação agrícola pode oscilar com as circunstâncias do mercado? A conveniência que tenha o País, de se plantar um produto de preferência a outro para atender ao conjunto de seu desenvolvimento, pode influir também na caracterização da vocação agrícola? Em que medida se combinarão esses três critérios? Pode o último tornar-se preponderante?

Letra “e” – Cada imóvel das zonas prioritárias passará, pois, por um exame, feito à luz de um critério sobre o qual o Estatuto da Terra não dá qualquer indicação. Como fixar esses índices mínimos?

- Assim, pois, a margem de apreciação deixada ao órgão competente torna, como de início dissemos, indefinido o número dos imóveis rurais sujeitos à desapropriação.

“Art. 57 – O imposto territorial rural será regulado pela lei estadual, nos limites e de acordo com as normas gerais traçadas nesta lei. A lei estadual fixará a alíquota do imposto entre os limites de 0,2% e 0,5%, para obtenção do valor básico para a tributação, fazendo essa alíquota incidir sobre o valor cadastral inscrito pelo IBRA, como previsto no artigo 48, § 7º.

§ 1º - Levando-se em conta a área total agricultável do conjunto de imóveis de um mesmo proprietário no País, esse valor básico será multiplicado por um coeficiente de progressividade de acordo com a tabela seguinte:

a) área total, no máximo, igual à média ponderada dos módulos de área estabelecidos para as várias regiões em que se situem as propriedades: coeficiente 1;

b) área maior do que 1, até 10 vezes o módulo definido na alínea “a”; coeficiente 1,5;

c) área maior do que 10, até 30 vezes o módulo definido na alínea “a”: coeficiente 2,0;

d) área maior do que 30, até 80 vezes o módulo definido na alínea “a”: coeficiente 2,5;

e) área maior do que 80, até 150 vezes o módulo definido na alínea “a”: coeficiente 3,0;

f)  área maior do que 150, até 300 vezes o módulo definido na alínea “a”: coeficiente 3,5;

g) área maior do que 300, até 600 vezes o módulo definido na alínea “a”: coeficiente 4,0;

h) área maior do que 600 vezes o módulo definido na alínea “a”: coeficiente 4,5.

§ 2º - O produto da multiplicação do valor básico pelo coeficiente previsto no parágrafo anterior, será multiplicado por um coeficiente de localização, que aumente o imposto em função da proximidade aos centros de consumo definidos no inciso II do artigo 8 e das distâncias, condições e natureza das vias de acesso aos referidos centros. Tal coeficiente, variando no território nacional de 1,0 a 1,6, será fixado por tabela a ser baixada por decreto do Presidente da República, para cada região considerada no zoneamento previsto no artigo 45.

§ 3º - O valor obtido pela aplicação do disposto no parágrafo anterior será multiplicado por um coeficiente que aumente ou diminua aquele valor, segundo a natureza da posse e as condições dos contratos de trabalho na forma seguinte:

a) segundo o grau de alheamento do proprietário na administração e nas responsabilidades de exploração do imóvel rural, segundo a forma e natureza dos contratos de arrendamento e parceria, e quanto à falta de atendimento de condições condignas de conforto doméstico e higiene aos arrendatários, parceiros e assalariados – coeficientes que aumentem aquele valor variando de 1,0 a 1,6, na forma a ser estabelecida na regulamentação desta lei;

b) segundo o grau de dependência e de participação do proprietário nos frutos, na administração e nas responsabilidades da exploração do imóvel rural; em função das facilidades concedidas para habitação, educação e saúde dos assalariados – coeficientes que diminuam o valor do imposto de 1,0 a 0,3, na forma a ser estabelecida na regulamentação desta lei.

§ 4º - Uma vez obtidos os elementos cadastrais relativos ao item III do art. 48 e fixados os índices previstos no § 1º daquele artigo, o valor obtido pela aplicação do dispositivo no parágrafo anterior será multiplicado por um coeficiente que aumente ou diminua aquele valor segundo as condições técnico-econômicas de exploração, na forma seguinte:

a) na proporção em que a exploração se faça com rentabilidade inferior aos limites mínimos fixados na forma do § 1º do art. 48 e com base no tipo, condições de cultivo e nível tecnológico de exploração – coeficientes que aumentem o valor do imposto variando de 1,0 a 1,5, na forma a ser estabelecida na regulamentação desta lei;

b) na proporção em que a exploração se faça com rentabilidade superior ao mínimo referido na alínea anterior e, segundo o grau de atendimento à vocação econômica da terra, emprego de práticas de cultivo ou de criação adequadas, e processos de beneficiamento ou industrialização dos produtos agropecuários – coeficientes que diminuam o valor do imposto, variando eles de 1,0 a 0,4, na forma a ser estabelecida pela regulamentação desta lei.

§ 5º - Quando o imposto territorial rural lançado for superior ao do exercício anterior, mesmo quando a área agricultável explorada de um imóvel rural for inferior ao mínimo necessário para classificá-lo como empresa rural, nos termos do art. 4º, inciso V, alínea “a”, será permitido ao seu proprietário requerer ao Estado redução até 50% do imposto lançado, desde que elabore projeto de ampliação da área explorada e o mesmo seja considerado satisfatório pelo órgão competente do IBRA, em função das características ecológicas da zona onde se localize o referido imóvel.

§ 6º. – Para pleitear o benefício de que trata o parágrafo anterior, o proprietário anexará ao requerimento comprovante de aprovação do projeto pelo órgão competente do IBRA.

§ 7º - O órgão competente do IBRA deverá pronunciar-se no prazo de 990 dias, contados da apresentação do projeto, considerando-se este aprovado desde que não haja pronunciamento.

§ 8º - Aprovado o projeto, o proprietário, o proprietário terá o prazo de 90 dias para assinar, junto ao órgão competente do IBRA, termo de compromisso de sua execução.

§ 9º - Se ao final de 2 anos contados da data da aprovação do projeto, não estiverem executados no mínimo 30% dos trabalhos nele previstos, o IBRA fará ao Estado competente notificação, para efeito de ser cobrada a parte reduzida dos impostos lançados, acrescida da devida correção monetária prevista nesta lei”.

Depois de ver a impressionante amplitude de movimentos que o Estatuto da Terra confere ao Poder público federal, através do IBRA ou das IBRAR, para promover a desapropriação de imóveis rurais, não é despiciendo notar que o mesmo projeto acrescenta – pondo-os em mãos do Poder público estadual – meios de pressão tributária também indefinidos em boa parte. Estes meios podem, em vários casos, determinar o proprietário a fraccionar o seu imóvel.

As funções tributárias do Poder público estadual devem ser exercidas segundo os critérios constantes do art. 56, e o peso de cada um desses critérios para a fixação do quantum do imposto territorial rural vem discriminado no art. 57 e respectivos parágrafos.

Sem nos determos no que apresentam de arbitrário, e portanto de inexpressivo, vários dos coeficientes aí indicados, registremos que o cômputo do imposto territorial rural apresenta, sob certo aspecto, muito menos fluidez do que os critérios adotados pelo art. 45 e seus parágrafos para o zoneamento e a caracterização das áreas prioritárias de Reforma Agrária.

Contudo, algo do indefinido e arbitrário que observamos relativamente ao art. 45 se projeta, como é natural, no art. 57, e particularmente nos seus parágrafos 2º e 3º. Vejamos:

Parágrafo 2º - “O coeficiente de localização” deverá comportar adaptações conformes ao que observamos relativamente ao art. 45, § 1º, letra “a”.

Parágrafo 3º, letra “a” – Quais os vários graus possíveis de “alheiamento do proprietário na administração e nas responsabilidades de exploração do imóvel rural”, e qual o reflexo de cada grau sobre o coeficiente de que trata este parágrafo? Qual a repercussão, nesse coeficiente, da cada “forma” e de cada “natureza” dos vários contratos de arrendamento e parceria? Quais são as “condições condignas de conforto doméstico” para os arrendatários, parceiros e assalariados, e como estabelecer os diversos níveis de deficiência nesta matéria de modo a refleti-los no coeficiente de que trata este parágrafo?

Parágrafo 4º  - Como fixar os níveis mínimos de rentabilidade “com base no tipo, condições de cultivo e nível tecnológico da exploração”? Como refletir os vários níveis de rentabilidade no coeficiente de que trata a letra “a”?

É bem de ver o que há de vago na expressão “vocação econômica da terra”. Como se definem os vários graus de “atendimento” a essa vocação? E o maior ou menor “emprego de práticas de cultivo ou de criação adequadas”? Adequadas segundo que critérios? Nem sempre a resposta a esta última pergunta será fácil, como à primeira vista se poderia supor. De que importância são os múltiplos e diversificados “processos de beneficiamento ou industrialização dos produtos agropecuários” no coeficiente de que trata a letra “b”?

Parágrafo 5 º - A atribuição aí conferida ao Poder público, de tanta expressão eleitoral – pois joga com o modesto patrimônio de numerosos requerentes eventuais – também não é circunscrita por critérios objetivos. Para que o requerimento seja aceito ou não, basta que o projeto que deverá acompanhá-lo “seja considerado satisfatório pelo órgão competente”.

Parágrafos 6º, 7º, 8º e 9º - A imprecisão aludida se reflete neles.

* * *

Poder-se-ia objetar, é verdade, que a se exigirem critérios que garantissem a propriedade privada contra o eventual furor igualitário do Poder público, nenhuma lei de Reforma Agrária seria possível, e que esses riscos são inerentes a toda modificação legal da estrutura rural.

Se se aceitar este argumento, ficará confessado pelos próprios propugnadores da Reforma Agrária com alteração da estrutura rural que ela traz inevitavelmente riscos tais. Será oportuno expor a eles o Brasil, depois das perigosíssimas experiências das quais acabamos de sair? É razoável que a eles nos sujeito o Governo oriundo de um glorioso movimento feito precisamente para afastar o País de tais precipícios?

Subindo dessas justas e ponderáveis razões de oportunidade para nível mais alto, acrescentemos que seria preciso provar que a permanência da atual estrutura agrária expõe certamente o Brasil a riscos ainda maiores, para justificar que se faça uma tal Reforma Agrária agora.

Ora, bom é repetir que esta demonstração ninguém a fez de modo satisfatório, e nem sequer a mensagem e a justificativa que acompanham os projetos de emenda constitucional e de Estatuto da Terra.

* * *

Para reforçar ainda mais a demonstração de que a ação expropriatória do IBRA poderá atingir um número indefinido de propriedades tidas por bem exploradas segundo o senso comum, não será desinteressante percorrer mais alguns artigos do Estatuto da Terra:

· “§ único (do art. 4º) – Não se considera latifúndio:

a) o imóvel rural, qualquer que seja a sua dimensão, cujas características recomendem, sob o ponto de vista técnico e econômico, a exploração florestal, desde que esta esteja sendo racionalmente realizada, mediante planejamento adequado.

(...)”.

O imóvel utilizado para exploração florestal será latifúndio ou não a critério do IBRA.

· Art. 5º - (ver o texto acima).

Os critérios para fixar módulo ficam a cargo do IBRA; ora, é em função do módulo que se determinam os limites permitidos da grande propriedade.

· § 3º (do art. 22) – Salvo por motivo de necessidade ou utilidade pública, e excetuados os imóveis rurais caracterizados como minifúndios nos termos desta lei, estão isentos de desapropriação;

a) (...);

b) os imóveis que satisfizerem os requisitos pertinentes à empresa rural, enumerados no art. 4º, inciso V”.

Este dispositivo só isenta de desapropriação os imóveis que o IBRA reputar bem explorados.

· “Art. 23 – O Poder público, para efeito de realizar desapropriações, nos termos da presente lei e da sua regulamentação, observados os planos regionais, deverá ter em vista a seguinte prioridade:

(...).

VI – as áreas que apresentem elevada incidência de arrendatários, parceiros e posseiros;

VII – as terras cujo uso atual não seja, comprovadamente, através de estudos procedidos pelo IBRA, o adequado à sua vocação de uso econômico”.

Que é uma “elevada incidência”? O índice varia de região para região? Di-lo-á o IBRA.

Essa incidência “elevada” – diga-se de passagem – parece ser, para o Estatuto da Terra, um mal em si, posto que ele não fala em incidência “exagerada”.

O critério segundo o qual serão analisados os estudos previstos no item VII será o do IBRA.

· “Art. 39 – Os projetos elaborados para regiões geo-econômicas ou grupos de imóveis rurais que possam ser tratados em comum devem consignar: (...)”.

Não se pense que os imóveis rurais bem aproveitados só serão suscetíveis de expropriação caso se situem em regiões geo-econômicas passíveis de Reforma Agrária. O presente artigo, referindo-se aos projetos de Reforma Agrária, fala de “grupos de imóveis rurais que possam ser tratados em comum”, distinguindo-os expressamente daquelas “zonas geo-econômicas”.

3. O espírito dos projetos: preconceito sistemático a favor da propriedade de dimensões familiares – tendência contrária à grande e média propriedade – tendência contrária ao salariado, arrendamento e parceria

No estudo de uma lei, importa altamente determinar-lhe o espírito. É esta uma tarefa muitas vezes difícil porque um diploma legal não é um tratado, e por isso há que conjugar e interpretar com o máximo de acuidade seus vários dispositivos, a fim de chegar a resultados concludentes.

Por mais difícil que seja essa tarefa, não há como fugir a ela, pois a determinação do espírito da lei é indispensável muitas vezes para: 1. Sua mais exata interpretação; 2. A fixação dos rumos segundo os quais agirão os órgãos criados por ela; 3. O conhecimento da orientação que terá a jurisprudência ao apreciar as questões resultantes da sua aplicação; 4. O estudo das características que deverão ter as leis corolárias.

Essa tarefa particularmente se impõe quanto ao projeto de Estatuto da Terra. Com efeito, contém ele; a) numerosas definições; b) a explicitação de escopos de caráter definidamente filosófico-moral, como seja a justiça social (art. 1º - § 1º, art. 19, art. 21 - § 2º - letra “b”, art. 106); c) a enunciação de outros escopos em cuja caracterização entra muito de filosófico-moral, como ocorre com a função social da propriedade (art. 2º - §§ 1º e 2º, art. 15, art. 16, art. 21 - § 2º - letra “a”).

Mais do que em outros diplomas legais será importante perguntar quanto a este, com utilização de todos os elementos hermenêuticos, qual o seu espírito.

Por isto, é indispensável investigar o que chamaríamos a “linha de coerência” do projeto de Estatuto da Terra. Ou seja, investigar se há uma doutrina segundo a qual tudo nele se explique de modo perfeitamente harmônico e satisfatório, e sem a qual ele pareça um conjunto de disposições mais ou menos desconexas e arbitrariamente justapostas.

* * *

Frequentes são hoje os pensadores e tratadistas, os homens de ação, políticos, jornalistas e agitadores que vêem no trabalho a única fonte legítima de ganho. Toda forma de lucro que resulte do capital se lhes afigura ilegítima.

Daí o considerarem que na agricultura a única forma verdadeiramente justa de propriedade é a que faça do cultivador direto o proprietário de todos os frutos. E a forma idealmente eficiente da propriedade é a de dimensões familiares.

O salariado, a pareceria e o arrendamento, inerentes à exploração da média e grande propriedade, se lhes afiguram injustos, sobretudo o último, no qual o proprietário aufere lucros sem efetuar qualquer trabalho, nem sequer de direção.

E chamam de “acesso à terra” o processo pelo qual se promove a transferência das propriedades grandes e médias para os assalariados, meeiros ou arrendatários, e o fraccionamento delas em propriedades de dimensões familiares. A reforma agrária expropriatória é um dos meios que mais se apreciam nessa escola, para a promoção do “acesso à terra”.

Quanto às pequenas propriedades assim constituídas, podem elas acumular – sempre segundo essa escola – as vantagens da propriedade familiar e da grande, desde que se unam em cooperativas. Um cooperativismo rural total é, pois, o corolário da total fragmentação das terras.

É inerente a tal escola uma tendência dirigista e igualitária. O curso dos fatos, entregue livremente a si mesmo, conduz à desigualdade na estrutura agrária. De modo geral, ele não chega a bom termo senão quando segue os planos dos técnicos, executados através dos órgãos administrativos e paraestatais colocados à disposição deles.

Daí um duplo sentido dirigista nas leis inspiradas por essa escola:

a) Direção geral da agricultura (como aliás de toda a economia) sobre as propriedades médias ou grandes, enquanto não se consegue sua fragmentação. Esse dirigismo prepara, de resto, tal fragmentação, por medidas que, de um ou de outro modo, vão transformando a propriedade individual em coletiva. É como a escola entende a democratização da empresa rural.

b) Direção cooperativa de todas as propriedades de dimensão familiar, direção esta que uns concebem com rigidez menor, outros maior. Quando essa rigidez chega ao extremo, tal sistema toma o nome de “kolkoziano”. Assim se concebe, nessa escola, a justiça social.

Segundo essa corrente, ainda, se entende que a plena produção e a função social da propriedade só se alcançam através de imóveis de dimensão familiar.

Na terminologia, em muitas das formulações que usa, essa escola parece confundir-se com a católica. Na realidade, difere dela profundamente.

A escola católica absolutamente não participa do exclusivismo em favor da propriedade familiar, se bem que deseje sua expansão. O acesso do trabalhador à terra, reputa-o muito auspicioso, mas não se lhe afigura desejável que elimine o salariado, o arrendamento e a parceria, que são formas de exploração rural lícitas e muitas vezes insubstituíveis.

Neste estudo mostraremos que a “linha de coerência” do Estatuto da Terra – segundo quanto nele se pode colher de indicativo – está na doutrina que desde o início deste item vimos referindo.

Pô-lo-emos aqui em evidência quanto à estrutura agrária e o direito de propriedade, e, na parte III deste trabalho, quanto à livre iniciativa e o dirigismo. Ficará assim caracterizado o espírito do Estatuto da Terra, e, ipso facto, da emenda constitucional que lhe é correlata.

* * *

Passemos pois à análise da linha de coerência do Estatuto da Terra em matéria de propriedade privada.

A mensagem presidencial que acompanhou o anteprojeto de emenda constitucional contém o seguinte tópico: “As alterações propostas no art. 156, §§ 1º e 3º, tendem a possibilitar, no anteprojeto de reforma agrária, a orientação que se espera dar à extensão da propriedade rural” (o negrito é nosso).

Eis aí bem focalizado o nosso tema. Qual essa orientação? Consiste ela em propiciar a formação de propriedades grandes, médias e pequenas? A resposta é clara: a “orientação” consiste exclusivamente em dividir as glebas grandes ou médias, ou aglutinar minifúndios, para formar propriedades de dimensão familiar. Ouçamos a mensagem: “Pretende aquele anteprojeto [de Estatuto da Terra] que a divisão das terras agricultáveis se faça em áreas de dimensão suficiente para, através do cultivo direto pelo lavrador e sua família, garantir-lhe a subsistência e o progresso econômico e social”.

O projeto de Estatuto da Terra não cogita jamais da hipótese de ser recomendável a aglutinação de propriedades familiares para formar imóveis médios ou grandes. O IBRA pode muito, ele pode talvez quase tudo. Não pode, porém, fazer isto.

O Estatuto da Terra tem em mira proibir o quanto possível o acúmulo de imóveis, nas mãos do mesmo dono, sejam eles grandes ou pequenos, por ser tal acúmulo fundamentalmente incompatível com a exploração direta. Não só facilita ele a desapropriação das terras pertencentes a um mesmo dono, como nas zonas de colonização proíbe o acúmulo de glebas e força a exploração direta. Muitos de seus favores, ele os reserva às sociedades ditas democratizadas ou abertas, e chega ao extremo de negar o direito de propriedade às outras empresas, isto é, àquelas que não se abrem para um grande número de sócios ou acionistas, e, naturalmente, para o ingresso dos trabalhadores no quadro social. Por fim, o Estatuto da Terra se mostra infenso ao salariado, à parceria e ao arrendamento.

* * *

Analisemos agora alguns dispositivos do projeto de Estatuto da Terra que justificam essas nossas diversas asserções:

· “§ 1º (do art. 1º) - Reforma Agrária é o conjunto de providências que, através da modificação do regime de posse e uso da terra, promova sua melhor distribuição, visando a atender à justiça social e ao aumento da produtividade”.

Fica bem claro que a promoção da justiça social é correlata com o aumento da produtividade, e que o projeto vê realizada fundamentalmente uma e outra coisa por modificações estruturais. Estas, a Reforma Agrária as leva a cabo constituindo as propriedades conforme o módulo de dimensão familiar, como no projeto se vê.

· “§ 4º (do art. 2º) – A todo agricultor assiste o direito de permanecer na terra que cultiva, dentro dos temos e limitações desta lei, observadas, sempre que for o caso, as normas dos contratos de trabalho”.

A expressão “direito” é muito forte. Por certo a equidade pede que todo bom agricultor permaneça quanto possível na terra que cultiva. Assim, compreende-se que a lei, por um conjunto de estímulos e moderadas pressões, promova quanto possível a estabilização do trabalhador rural. Compreende-se até que procure favorecer com alguma frequência seu acesso à propriedade do solo. Nada disto, entretanto, caracteriza um direito no sentido exato da palavra.

Simetricamente com a continuidade no solo, que a equidade pede para o trabalhador rural, está o direito propriamente dito do dono, de ser estável na posse de sua gleba. Quanto o Estatuto da Terra exagera a primeira, e quanto por má orientação expropriatória ameaça o segundo!

· “Art. 3º - O Poder Público reconhece a entidades privadas, nacionais ou estrangeiras, o direito à propriedade da terra, em condomínio, quer sob a forma de cooperativas, quer como sociedades abertas constituídas na forma da legislação em vigor.

§ único – (...)”.

Entendido este dispositivo no seu sentido natural, o Poder público reputará extinto o direito de propriedade das sociedades fechadas que não se transformarem em abertas, e negá-lo-á às sociedades fechadas que se vierem a constituir.

A expressão “em condomínio” é ininteligível no contexto, pelo que se deve tê-la por erro de redação.

Como se vê, o direito à propriedade das sociedades ditas fechadas sofre aqui um golpe gravíssimo, em benefício do princípio da chamada democratização. E este, aplicado tão sistematicamente, redundará em diminuir quanto possível o caráter privado, ou seja, individual, da propriedade exercida pelas pessoas jurídicas. Expressão da tendência a tornar desde logo a propriedade grande ou média tão pouco individual quanto possível. Grande ou média, dizemos, pois este dispositivo evidentemente não tem aplicação às propriedades de dimensão familiar.

· “Item IV (do art. 4º) – “Latifúndio [é] o imóvel rural que:

a) exceda a dimensão máxima fixada na forma do art. 48, § 1º, alínea “b”, desta lei, tendo em vista as condições e sistemas agrícolas regionais;

b) ainda que não excedendo o limite referido na alínea anterior, mas de área igual ou superior à dimensão do módulo de propriedade rural, seja mantido inexplorado em relação a possibilidades físicas, econômicas e sociais do meio, visando a fins especulativos, ou seja explorado com formas manifestamente deficientes ou inadequadas, de modo a vedar-lhe a inclusão no conceito a que se refere o inciso seguinte”.

O Estatuto da Terra, muito correto em toda a sua linguagem, entretanto comete aqui um erro singular. Latifúndio, a etimologia bem o diz, e o uso o consagra, é um imóvel notável por sua extensão. Na linguagem corrente a palavra tomou um sentido pejorativo: designa o imóvel rural exageradamente grande. O conceito de latifúndio é, assim, exatamente oposto ao de minifúndio, que o art. 4º, item III, define adequadamente como o imóvel rural exageradamente pequeno.

Pois bem. De tal forma está no espírito do Estatuto da Terra que a propriedade ideal é a de dimensão familiar, que a palavra latifúndio, oposta a este ideal, lhe serve para designar não só o imóvel rural que reputa exageradamente grande (letra “a”), mas todo o que é inadequadamente explorado (letra “b”). De sorte que uma propriedade de dimensão familiar, quando bem explorada, se chama propriedade familiar. Mas, se mal explorada, o Estatuto da Terra lhe cola o rótulo que serve para qualificar tudo quanto é mau: é então... um “latifúndio”. Singular erro de terminologia que no contexto do projeto se mostra realmente significativo.

· “Art. 16 – O Poder Público zelará pela gradativa extinção das formas de ocupação e de exploração da terra que contrariem sua função social”.

· “Art. 19 – A Reforma Agrária objetiva regular as relações entre o homem e a terra favorecendo um sistema de propriedade que promova a justiça social no campo, aumente o bem-estar do trabalhador rural, inclusive de sua família, contribua para o desenvolvimento econômico do País, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio”.

A função social da terra só é vista como realizável através da formação de propriedades de dimensão familiar, obtida por meio da fragmentação das propriedades grandes e médias, ou da aglutinação de minifúndios. (cfr. art. 24).

O art. 16, considerado à luz do art. 19, impõe ao IBRA uma missão deveras grave.

Qual o alcance, no art. 19, da expressão “sistema de propriedade”? Ela é bastante vaga. Na enumeração dos vários escopos que o sistema de propriedade a ser favorecido deve ter em vista, há um esquecido: a defesa dos direitos do proprietário.

Do proprietário, ou mais precisamente do proprietário não-trabalhador, pois o proprietário-trabalhador pode-se considerar incluído na enumeração. Todas as virtudes que os partidários exclusivistas da propriedade de dimensões familiares atribuem a esta, no plano filosófico como no prático, encontram-se aqui reunidas. Se um deles tivesse que redigir algo nessa matéria, muito normalmente redigiria o art. 19.

· “Art. 21 – O Poder Público, para implantar a Política Agrícola e para efeito de facultar o acesso à propriedade da terra, além das providências diretas ou indiretas que objetivam criar ou melhorar as condições rurais, utilizar-se-á dos seguintes meios: (...).

§ 1º - (...).

§ 2º - (...).

§ 3º - (...).

O acesso à propriedade da terra é apresentado como um bem em si, sem nada que o condicione ou circunscreva, o que conduz à abolição do salariado. Bem outra é a linguagem do projeto quanto à propriedade privada.

· “§ 3º (do art. 22) – Salvo por motivo de necessidade ou utilidade pública, e excetuados os imóveis rurais caracterizados como minifúndio nos termos desta lei, estão isentos de desapropriação:

a) os imóveis rurais que em cada zona não excedam de 3 vezes a dimensão do módulo de propriedade rural, fixado nos termos do art. 4º, inciso II;

(...)”.

Veja-se até que ponto o Estatuto da Terra, tão propenso a acabar com as propriedades grandes e médias, reputa simpática a pequena dimensão: ela lhe parece capaz de resgatar até o inconveniente da má produção.

· “Art. 24 – Em áreas de minifúndio, o Poder Público tomará as medidas necessárias para a organização de unidades econômicas adequadas, em atinência ao disposto na presente lei, promovendo, se necessário, a desapropriação para posterior aglutinação e redistribuição das terras compreendidas nessa área”.

Esse artigo reconhece a possibilidade de áreas inteiras constituídas de minifúndios e lhes prevê a aglutinação. Por que não se admite também a conveniência de análoga medida para áreas de empresas rurais de dimensão familiar, desde que, por haverem malogrado, haja necessidade de as converter em médias ou grandes?

· “Art. 27 – As terras desapropriadas para os fins da Reforma Agrária ou que de qualquer forma vierem a ser incorporadas ao patrimônio do IBRA, de acordo com o disposto nesta lei, respeitada a ocupação de terras devolutas federais, manifestada em cultura efetiva e morada habitual, só poderão ser distribuídas:

I – sob a forma de propriedade familiar, resultante da execução de projetos, nos termos das normas aprovadas pelo IBRA;

(...).

§ único – (...)”

Pressupõe que a dimensão ideal de qualquer terra é a familiar.

· “ Art. 28 – As terras adquiridas pelo Poder Público, nos termos desta lei, deverão ser vendidas a candidatos que atendam às condições de maioridade, sanidade e de bons antecedentes ou de reabilitação, e de acordo com a seguinte ordem de preferência:

I – ao proprietário do imóvel desapropriado, desde que explore diretamente a terra;

II – aos que trabalham no imóvel desapropriado como posseiros, assalariados, parceiros ou arrendatários;

III – aos agricultores cujas propriedades devam alcançar a dimensão da propriedade familiar da região;

IV – aos agricultores cujas propriedades sejam comprovadamente insuficientes para o sustento próprio e de sua família.

V – aos tecnicamente habilitados, na forma da legislação em vigor, através de cursos especializados de agricultura.

§ 1º - (...).

§ 2º - Em cada uma dessas classes só poderão adquirir lotes os trabalhadores sem terra, salvo as exceções da lei.

§ 3º - Não poderá ser beneficiário desta lei, quanto à distribuição da terra, o proprietário rural, salvo no caso dos incisos I, II, e IV deste artigo, nem que exerça qualquer função pública, autárquica ou em órgão paraestatal ou, ainda, investido de delegação parafiscal.

§ 4º - (...)”.

O item I representa medida infensa a toda propriedade não familiar. Por que recusar ao proprietário de imóvel desapropriando esta possibilidade, máxime quando ela poderia facilitar nos processos de desapropriação acordos vantajosos para o Poder público? Verossimilmente porque o Estatuto da Terra pressupõe que para toda terra a mais justa e melhor forma de exploração é a direta.

Quanto aos parágrafos 2º e 3º, por que dispor assim, senão para impedir perpetuamente a aglutinação de glebas formando grandes ou médias propriedades? Mais uma vez, o projeto pressupõe que a propriedade de dimensão familiar é sistematicamente melhor.

· “Art. 57 – O imposto territorial rural será regulado pela lei estadual nos limites e de acordo com as normas gerais traçadas nesta lei. A lei estadual fixará a alíquota do imposto entre os limites de 0,2% e 0,5%, para obtenção do valor básico para a tributação, fazendo essa alíquota incidir sobre o valor cadastral inscrito pelo IBRA, como previsto no artigo 48, § 7º

§ 1º - Levando-se em conta a área total agricultável do conjunto de imóveis de um mesmo proprietário no País, esse valor básico será multiplicado por um coeficiente de progressividade de acordo com a tabela seguinte: (...).

§ 2º - (...).

§ 3º - (...).

§ 4º - (...).

§ 5º - (...).

§ 6º - (...).

§ 7º - (...).

§ 8º - (...).

§ 9º - (...).

A circunstância de possuir alguém várias áreas afigura-se como indesejável no quadro do Estatuto da Terra, ainda mesmo que se trate de várias áreas pequenas e bem exploradas. O projeto deseja evitar não só a grande propriedade, mas o grande proprietário, manifestamente porque não lhe agrada senão o proprietário-trabalhador.

Dir-se-á em sentido contrário que é normal que quem tem mais pague maior imposto, e que aqui se atende tão-somente o princípio da proporcionalidade dos ônus. Se assim fosse, o dispositivo tributaria as propriedades na proporção exclusiva de seu valor, e não também de sua área.

· “§ 2º (do art. 65) – A empresa rural, definida do inciso V do art. 4º, desde que incluída em projeto de colonização, deverá permitir a livre participação dos respectivos parceleiros na constituição de seu capital”.

Imposição da chamada democratização da propriedade, nas zonas de colonização. Obrigar a empresa rural a aceitar a participação dos “parceleiros” no seu capital é contra o direito natural. “Parceleiros – diga-se de passagem – significa aqui evidentemente o trabalhador rural, o que contradiz a definição do art. 4º, inciso VI, verbis: “VI – “Parceleiro [é] aquele que adquirir parcela ou quota-parte de uma propriedade comum, em área de projeto de Reforma Agrária ou de colonização”.

· “Art. 67 – Os projetos de colonização, destinados à ocupação e valorização econômica da terra, em que predominem o trabalho assalariado ou contratos de arrendamento e parceria, não gozarão dos benefícios previstos nesta lei”.

Mais uma expressão de que o Estatuto da Terra tende a evitar a formação de propriedades que não sejam de dimensão familiar.

· “§ 2º (do art. 69) – No caso em que o adquirente, ou seu sucessor, venha a desistir da exploração direta, os imóveis rurais, vendidos nos termos desta lei, reverterão ao patrimônio do alienante, podendo o regulamento prever as condições em que se dará essa reversão”.

Disposição draconiana tendente a evitar que, nas áreas a serem colonizadas, se dê o fato reputado sumamente indesejável no Estatuto da Terra, que é o aparecimento do proprietário não-trabalhador com trabalhadores assalariados.

· “§ 3º (do art. 95) – No caso de alienação do imóvel arrendado, o arrendatário terá preferência para adquiri-lo em igualdade de condições, devendo o proprietário dar-lhe conhecimento da venda a fim de que possa exercitar o direito de preempção dentro de 30 dias, a contar da notificação judicial ou comprovadamente efetuada, mediante recibo”.

Medida hirta e draconiana. Desnatura o arrendamento, conferindo-lhe característica de co-propriedade e desindividualizando correspondentemente, em alguma medida, a propriedade particular. É a aplicação lógica da norma por demais genérica e vaga do art. 2º, § 4º, de que quem trabalha a terra tem direito de nela ficar.

O princípio correlato ao desta medida é que o trabalhador deve de preferência optar por continuar a serviço do mesmo proprietário. Por este princípio não vela o projeto, omitindo qualquer medida de estímulo que a respeito caiba.

Sugerimos que este dispositivo seja substituído por outro concedendo uma redução no imposto de lucro imobiliário para o proprietário que assegure a preferência ao arrendatário.

· “Art. 100 – Quanto aos legítimos possuidores de terras devolutas federais, observar-se-á o seguinte:

I – o IBRA promoverá a discriminação das áreas ocupadas por posseiros, para a progressiva regularização de suas condições de uso e posse da terra, providenciando, nos casos e condições previstos nesta lei, a emissão dos títulos de domínio;

II – todo trabalhador agrícola que à data da presente lei tiver ocupado e cultivado pacificamente por mais de um ano terras devolutas, terá preferência para adquirir um lote da dimensão do módulo de propriedade rural, que for estabelecido para a região, obedecidas as prescrições da lei”.

Ao art. 100 deveria ser acrescentado um inciso III dispondo que “todo aquele que por cinco anos ininterruptos, em terras devolutas, sem oposição do Poder público, tiver ocupado e cultivado uma área igual ou superior ao módulo, adquirir-lhe-á o domínio mediante sentença declaratória devidamente transcrita”. Assim se evitaria que deste artigo decorresse somente a formação de propriedades de dimensão familiar, como faz supor sua redação atual.

* * *

Mas, dir-se-á, se unicamente a propriedade de dimensões familiares é que está na linha de coerência do Estatuto da Terra, como compreender que ele admita, em vários de seus dispositivos, a existência de propriedades de outras dimensões, e até as favoreça quando constituem empresa rural?

É preciso ter em mente que os acontecimentos bem recentes do País provaram que é impraticável a implantação imediata de um sistema constante só de propriedades de dimensão familiar, e que, em consequência, só gradativamente a ele se pode chegar.

Assim, o Estatuto da Terra não pode deixar de tolerar a existência de imóveis mais vastos, impedindo embora, quanto possível, que se constituam, e favorecendo, quanto possível, que se fraccionem.

À medida que o permitam as circunstâncias, poder-se-á ir ampliando essa ação fraccionadora por simples ato do Executivo, graças à já demonstrada fluidez dos conceitos de empresa rural e latifúndio.

4. O pagamento das indenizações em títulos da dívida pública: grave injustiça segundo a doutrina católica

 · “Art. 6º (da emenda constitucional) – Ao art. 147 acrescentem-se os seis parágrafos seguintes:

Parágrafo 1º - Para os fins previstos neste artigo, a União poderá promover a desapropriação da propriedade territorial rural, mediante pagamento de prévia e justa indenização em títulos especiais da Dívida Pública, com cláusula de exata correção monetária segundo índices fixados pelo Conselho Nacional de Economia, resgatáveis no prazo máximo de vinte anos, em parcelas anuais sucessivas, assegurada a sua aceitação, a qualquer tempo, como meio de pagamento de até 5o% do imposto territorial rural e como pagamento do preço de terras públicas.

Parágrafo 2º - (...).

Parágrafo 3º - A desapropriação de que trata o parágrafo 1º é da competência exclusiva da União e limitar-se-á  às áreas incluídas nas zonas prioritárias, fixadas em decreto do Poder Executivo, só recaindo sobre propriedades rurais cuja forma de exploração contrarie o disposto neste artigo, conforme a lei definir.

Parágrafo 4º - A indenização em títulos somente se fará quando se tratar de latifúndio, como tal conceituado em lei, excetuadas as benfeitorias necessárias e úteis, que serão sempre pagas em dinheiro.

Parágrafo 5º - (...).

Parágrafo 6º (...).

O presente dispositivo do projeto de emenda constitucional faculta ao Poder público desapropriar imóveis rurais mediante indenização em títulos da dívida pública.

Em virtude dele, o proprietário expropriado receberá em pagamento, por seu valor nominal, títulos sujeitos a flutuações de cotação em todo o período em que forem resgatáveis. E este período pode chegar a ser de vinte anos. Chamar a isto de justa indenização importa em forçar além de toda medida o sentido da palavra “justo”.

Bem é de ver que, se fosse comprovado que o bem comum tem grave necessidade de tais desapropriações, e extrema urgência delas, seria admissível a presente disposição. Como foi dito, porém, nada disso se provou.

Assim, este dispositivo da emenda constitucional é a justo título qualificado como dos mais passíveis de censura entre as proposituras do Executivo concernentes à reforma agrária.

III - O dirigismo no Estatuto da Terra

As considerações genéricas que cabia fazer sobre a livre iniciativa e o dirigismo já foram feitas na parte II, item 3. Limitemo-nos aqui tão-somente a comentar um a um os vários dispositivos em que aflora o sentido dirigista do Estatuto da Terra.

1. Dirigismo em matéria de arrendamento e parceria

As disposições do título III, capítulo IV, do Estatuto da Terra – “Do uso e da posse temporária da terra”, aplicam ao arrendamento rural, e à parceria no que esta caiba, princípios que têm inspirado a legislação de emergência referente ao inquilinato urbano.

Afirmando embora que é próprio ao Estatuto da Terra dispor sobre a repressão de abusos existentes na matéria, consideramos que – analogamente ao que tem sucedido às nossas sucessivas leis do inquilinato, e ao recente projeto do Executivo regulando a locação urbana (cfr. “Reparos e Sugestões ao Projeto de Lei do Inquilinato de iniciativa do Exmo. Sr. Presidente da República”, por Plinio Corrêa de Oliveira) – as normas deste capítulo deixam transparecer pressupostos dos quais alguns não se podem de todo aceitar, e outros são recusáveis pelo menos em parte. Tais pressupostos são:

a) que todo abuso, desde que não seja raro, deve ser reprimido por lei;

b) que tal repressão pode ser imposta a todo o território nacional, se bem que os abusos só ocorram em algumas áreas;

c) que toda repressão de abusos deve consistir em uma norma proibindo absolutamente de fazer algo, ou mandando absolutamente fazer algo;

d) que o normal da legislação é ser tal, que tudo quanto uma pessoa faça lhe tenha sido permitido ou imposto expressamente por lei, e tudo que não faça lhe tenha sido proibido por lei.

Um ou outro desses pressupostos aflora aqui ou acolá em mais de um dispositivo deste capítulo.

Outra observação genérica a que o capítulo IV dá lugar é que ele revela grande e louvável interesse pela tutela dos direitos do parceiro e do arrendatário, mas lhe falta simetricamente alguma medida de preocupação pela situação do proprietário.

A conclusão das observações aqui feitas não é pela supressão deste capítulo, mas por um reexame fundamental da matéria, com vistas a suprimir algumas disposições, tornar menos draconianas outras, substituir o recurso fácil das proibições absolutas por medidas de estímulo ou compreensão mais elásticas etc.

* * *

Entrando na apreciação mais direta do assunto, seria preciso dizer antes de tudo que, havendo embora conhecidos abusos em matéria de arrendamento e parceria, disto não se deduz automaticamente que a lei os deva suprimir, máxime na amplitude e com o rigor previstos no capítulo IV.

Não nos consta que hajam sido feitos estudos destinados a provar que os abusos têm sido bastante generalizados para justificar estes dispositivos. Em todo caso, admitindo que tais abusos ocorram com alguma intensidade em algumas partes do País, não está provado que valha a pena por causa deles restringir a liberdade de contratar arrendamentos e parcerias em toda a imensa extensão do território nacional. Faltou neste capítulo a parcimônia legislativa que deve caracterizar o verdadeiro legislador e a nação bem organizada: pessima res publica plurimae leges.

Por exemplo, teria sido preferível dotar o IBRA de poderes para aplicar estes dispositivos tão-somente nas zonas em que suas investigações demonstrassem a ocorrência frequente de abusos.

Outra observação a fazer é que em seu conjunto o presente capítulo exprime frieza, para não dizer certa antipatia, em relação à parceria e ao arrendamento, coisa que se nota aliás também em outras partes do Estatuto da Terra. Esta posição não nos parece justificada. A prática revela que uma e outro podem prestar serviços muito importantes em determinadas situações. E a boa doutrina prova que em si mesmos nada têm eles de contrários à justiça social e ao exercício da função social da propriedade.

Só é compreensível que assim não pense quem vê na propriedade de dimensão familiar a única forma natural e perfeita de propriedade, quer do ponto de vista filosófico, quer prático. O que no projeto de Estatuto da Terra é um pensamento frequente, ora explícito, ora implícito.

* * *

Consideremos agora alguns dispositivos do capítulo em apreço:

· “§ 2º (do art. 95) – Os preços de arrendamento e de parceria, fixados em contratos, serão reajustados periodicamente, de acordo com os índices aprovados pelo Conselho Nacional de Economia. Nos casos em que ocorra exploração de produtos com preços oficialmente fixados, a relação entre os preços reajustados e os iniciais não pode ultrapassar a relação entre o novo preço fixado para os produtos e o respectivo preço na época do contrato, obedecidas as normas do regulamento desta lei”.

Este parágrafo parece proibir, para todo o País, majorações superiores aos índices de correção monetária do CNE. Não consta que se tenha provado a necessidade de tal restrição à liberdade de contrato, máxime para todo o território nacional. A matéria deveria ser estudada pelo IBRA, para eventual elaboração de outro projeto de lei, ou então dever-se-ia, em condições estabelecidas pelo regulamento, aplicar este dispositivo tão-só em zonas caracterizadas pelo IBRA, com possibilidades de recurso ao Judiciário.

Comentários análogos cabem a respeito de várias das disposições contidas nos itens XI e XII do art. 98 e nos itens V e VI do art. 99.

· “§ 5º (do art. 95) – A alienação ou a imposição de ônus real ao imóvel não interrompe a vigência dos contratos de arrendamento ou de parceria, ficando o adquirente sub-rogado nos direitos e obrigações do alienante”.

Rígido. Melhor seria assegurar adequadas indenizações a serem pagas pelo comprador ao arrendatário ou parceiro que ele viesse a despedir.

· “Item II (do art. 98) – Presume-se feito no prazo mínimo de 3 anos, o arrendamento por tempo indeterminado, observada a regra do item anterior”.

· “Item I (do art. 99) – O prazo dos contratos de parceria, desde que não convencionado pelas partes, será no mínimo de 3 anos, assegurado ao parceiro o direito à conclusão da colheita pendente, observada a norma constante do inciso I do art. 98”.

Muito rígidos, pois importam em proibir todos os arrendamentos e parcerias por tempo indeterminado, indispensáveis em certas situações.

O Estatuto da Terra exagera a tutela ao arrendatário e ao parceiro, tratando-os um pouco como menores de idade que não podem ter a liberdade de contratar por prazo curto ou indeterminado.

· “Item IV (do art. 98) – Em igualdade de condições com estranhos o arrendatário terá preferência à renovação do arrendamento, devendo o proprietário, até 6 meses antes do vencimento do contrato, fazer-lhe a competente notificação das propostas existentes. Não se verificando a notificação, o contrato considera-se automaticamente renovado, desde que o locatário, nos 30 dias seguintes, não manifeste sua desistência ou formule nova proposta, tudo mediante simples registro de suas declarações no competente Registro de Títulos de Documentos”.

· “Item II (do art. 99) – Expirado o prazo, se o proprietário não quiser explorar diretamente a terra por conta própria, o parceiro em igualdade de condições com estranhos terá preferência para firmar novo contrato de parceria”.

Hirtos. Exageradamente genéricos. O arrendatário ou o parceiro vive muitas vezes na proximidade, e quase na intimidade do proprietário e de sua família. As condições de moralidade e convívio daí decorrentes influem na renovação do contrato. Entretanto, é impossível demonstrar que a proximidade do arrendatário e do parceiro, ou dos seus, não convém ao proprietário e aos seus. Todo o aspecto humano das relações do arrendamento e parceria fica excluído, dando lugar a uma insuportável coarctação da liberdade de contrato.

· “Item X (do art. 98) – O arrendatário não responderá por qualquer deterioração ou prejuízo a que não tiver dado causa”.

Norma excessiva, se se referir ao dano causado pelo empregado do arrendatário. Supérflua se excluir esse caso.

· “Item IV (do art. 99) – O proprietário assegurará ao parceiro que residir no imóvel rural, e para atender ao uso exclusivo da família deste, casa de moradia higiênica e área suficiente para horta e criação de animais de pequeno porte”.

À fixação pelo regulamento e pelo IBRA do que seja moradia higiênica está aqui deixada uma amplitude excessiva, que pode dar margem até a medidas persecutórias de caráter político. Conviria que neste ponto a lei fosse mais minuciosa, restringindo quanto possível as tendências arbitrárias e dirigistas da administração.

2. Dirigismo em matéria de cooperativas e “parceleiros”

Quanto às perspectivas de dirigismo em matéria de cooperativas, o Estatuto da Terra as abre largas, mais por seu silêncio do que pelo que diz. Leiam-se por exemplo os arts. 70 a 77. Nada dispõem eles sobre o grau de autonomia dos “parceleiros” em relação às cooperativas e destas em relação ao Poder público. Nada é possível prever de muito preciso sobre o grau de sentido dirigista do possante organismo cooperativista criado pelo Estatuto da Terra, nem sobre a liberdade de movimentos do IBRA para lhe impor funda nota dirigista, independente mesmo de leis corolárias.

Vejam-se também estes dois dispositivos:

· “§ único (do art. 3º) – Os estatutos das cooperativas e demais sociedades que se organizarem na forma prevista neste artigo deverão ser aprovados pelo Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (IBRA), que estabelecerá condições mínimas para a democratização dessas sociedades”.

O IBRA é que decide, sem mais restrições, sobre todos estes pontos.

· “Art. 27 – As terras desapropriadas para os fins de Reforma Agrária ou que, de qualquer forma, vierem a ser incorporadas ao patrimônio do IBRA, de acordo com o disposto nesta lei, respeitada a ocupação de terras devolutas federais, manifestada em cultura efetiva e morada habitual, só poderão ser distribuídas:

(...).

III – para a formação de glebas previstas nos projetos e destinadas à exploração extrativa, agrícola, pecuária ou agro-industrial, por associações de agricultores organizados em sistema cooperativista;

(...).

§ único – (...)”.

Por que impor o sistema cooperativista? O Estatuto da Terra manifesta seu sentido dirigista ao fazer tal imposição.

3. Dirigismo em matéria de colonização

No que diz respeito à colonização, também apresenta o projeto várias disposições de sentido dirigista. Vejamos algumas delas:

· “Art. 23 – O Poder Público, para efeito de realizar desapropriações, nos termos da presente lei e da sua regulamentação, observados os planos regionais, deverá ter em vista a seguinte prioridade:

(...);

V – as áreas destinadas a empreendimentos de colonização, quando estes não tiverem logrado atingir seus objetivos.

(...)”.

Nem sempre será claro se o objetivo foi atingido ou não: quem decidirá a respeito? E se vários objetivos foram atingidos, ou o foi em boa parte o objetivo principal? E quem decidirá se esse objetivo já devia ter sido atingido, ou ainda pode vir a sê-lo? Sempre o IBRA.

· “Art. 66 – Os projetos de colonização particular deverão ser previamente examinados, quanto à metodologia, pelo IBRA, que inscreverá a entidade e o respectivo projeto em registro próprio. Tais projetos serão aprovados pelo Ministério da Agricultura, cujo órgão próprio coordenará e fiscalizará a respectiva execução.

§ 1º - Sem prévio registro da entidade colonizadora e do projeto, e sua imprescindível aprovação, nenhuma parcela poderá ser vendida em programas particulares de colonização.

§ 2º - O proprietário de terras próprias para a lavoura ou pecuária, interessado em loteá-las para fins de urbanização ou formação de sítios de recreio, deverá submeter o respectivo projeto à prévia aprovação e fiscalização do órgão competente do Ministério da Agricultura ou do IBRA, segundo a espécie.

§ 3º - (...)”.

o Estatuto da Terra não define o sentido e a medida em que o IBRA pode impor condições para a aprovação dos projetos particulares de colonização, deixando o campo aberto a que, por exemplo, exija que o parcelamento se faça em propriedades de dimensão familiar.

Comentário análogo a esse vale para o parágrafo 2º.

· “Art. 69 – Os lotes de projetos de colonização podem ser:

I – PARCELAS, quando se destinam ao trabalho agrícola do parceleiro e de sua família cuja moradia, quando não for no próprio local, há de ser no centro da comunidade a que elas correspondem;

II – URBANOS, quando se destinam a constituir o centro da comunidade, incluindo as residências dos trabalhadores dos vários serviços implantados nos núcleos ou distritos, eventualmente as dos próprios parceleiros, e as instalações necessárias à localização dos serviços administrativos, assistenciais, bem como das atividades cooperativas comerciais, artesanais e industriais.

§ 1º - Sempre que o órgão competente do Ministério da Agricultura ou o IBRA não manifestarem dentro de 90 dias da consulta a preferência a que terão direito, os lotes de colonização poderão ser alienados:

a) a pessoa que se enquadre nas condições e ordem de preferência previstas no art. 28; ou

b) livremente, após 5 anos contados da data de sua transcrição.

§ 2º - No caso em que o adquirente, ou seu sucessor, venha a desistir da exploração direta, os imóveis rurais, vendidos nos termos desta lei, reverterão ao patrimônio do alienante, podendo o regulamento prever as condições em que se dará essa reversão.

§ 3º - Aplica-se o disposto no parágrafo anterior aos casos em que os adquirentes mantenham inexploradas áreas suscetíveis de aproveitamento, desde que existam, à disposição dos mesmos, condições objetivas para sua exploração, na forma que o regulamento desta lei estabelecer.

§ 4º - Na regulamentação das matérias de que trata este capítulo, com a observância das primazias já codificadas, serão estabelecidos:

a) exigências quanto aos títulos de domínio e à demarcação de divisas;

b) os critérios para fixação das áreas limites de parcelas, lotes urbanos e glebas de uso comum, bem como dos preços, condições de financiamento e pagamento;

c) o sistema de seleção dos parceleiros e artesãos; limitações para distribuição, desmembramentos, alienação e transmissão dos lotes; sanções pelo inadimplemento das cláusulas de colonização;

d) os serviços que devem ser assegurados aos promitentes compradores, bem como os encargos e isenções tributárias que, nos termos da lei, lhes sejam conferidos”.

Ao Poder público não é lícito interferir de tal forma nas atividades das empresas de colonização de caráter privado.

O § 2º implica em que um “parceleiro” não possa ter mais de  uma propriedade rural. E acarreta como consequência que, por invalidez definitiva, ele possa perder o lote (parcela) por pura e simples reversão deste ao patrimônio do alienante.

O § 4º torna particularmente frisante a intervenção do Poder público na colonização particular.

* * *

Estes reparos e sugestões, apresentados, cordial e atenciosamente, no interesse do Brasil e da civilização cristã, evidenciam o caráter socialista e anticristão de vários dispositivos dos projetos de emenda constitucional (Projeto no. 5/64) e de Estatuto da Terra (Projeto no. 16/64), para o que pedimos toda a atenção do ilustre Presidente da República e dos dignos membros do Congresso Nacional.

Estamos certos de que, movidos um e outros pelo desejo de salvaguardar a propriedade privada e a livre iniciativa, saberão encontrar os meios necessários para promover o progresso rural do País sem prejuízo desses dois princípios basilares da ordem social cristã.

São Paulo, 4 de novembro de 1964

Roma, 7 de novembro de 1964.

D. Geraldo de Proença Sigaud

Arcebispo de Diamantina

D. Antônio de Castro Mayer

Bispo de Campos

Plinio Corrêa de Oliveira

Presidente do Diretório Nacional da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade

Luiz Mendonça de Freitas


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