Serviço de Imprensa, dezembro de 1992

Função social da propriedade e luta de classes

Plinio Corrêa de Oliveira

Ainda há algum tempo, as divagações sócio-sentimentais em torno de uma mal compreendida função social da propriedade, eram consideradas, em certos meios católicos, como um impulso sublime de caridade cristã. Mas, sob o sopro mortífero do marxismo, radicalmente oposto ao próprio conceito de caridade, nos meios de esquerda católica se acentua sempre mais a tendência a basear todo esse élan "cristão", não na caridade, porém na justiça.

A esse respeito, cumpre notar que o tônus dessas divagações vai mudando. De dulçuroso e declamatório, mas pacífico, como "corresponde" à caridade, ele se foi tornando reivindicatório, ácido e até agressivo, como "corresponde" à justiça. E a melopéia algum tanto lamurienta do sentimentalismo de outrora vem sendo substituída gradualmente por um grito de guerra. O grito de guerra da luta de classes.

Que juízo fazer do conteúdo doutrinário, ao mesmo tempo tão pobre e tão envolvente, da velha melopéia sócio-sentimental dos utopistas do século passado?

A vaporosa temática dessa melopéia tem algo da força de expansão indefinida dos gases. Isto é, a explanação cabal do conteúdo dela, sobretudo se acompanhada da respectiva refutação, poderia encher volumes.

Análoga afirmação se poderia fazer do conteúdo doutrinário do brado de guerra marxista. É ele mais denso de pensamento do que o socialismo utópico que o antecedeu. Mas nem por isso a respectiva refutação seria mais sintética e breve.

Na crítica da melopéia do socialismo utópico, e do grito de guerra do socialismo habitualmente cognominado de científico, há sem dúvida uma queixa comum que corresponde à realidade das coisas.

O desenvolvimento do processo de industrialização, ao longo dos séculos XIX e XX, gerou em larga medida o desemprego e o pauperismo. E, em conseqüência, privou massas humanas inteiras das condições de existência suficientes e dignas que correspondem à natureza do homem.

Pari passu, a mesma industrialização foi ocasionando uma imensa concentração de capitais em favor de alguns beneficiários mais aptos, por instinto ou por formação técnica, a manusear as artes complicadas com que se ganha dinheiro.

Daí decorreu um desnível estridente entre as camadas situadas nos dois pólos da sociedade capitalista. E - manda a verdade histórica que se diga - sobretudo os capitalistas da fase primeva do processo de industrialização conexo com o surto da rede bancária e comercial, se mostraram, ora indiferentes, ora censuravelmente lentos em socorrer as vítimas de um curso de coisas do qual eram contudo eles os grandes beneficiários.

Entretanto, manda também a verdade histórica que se reconheça haver-se verificado paulatinamente, a partir de fins do século XIX, em muitos e amplos setores capitalistas, uma favorável transformação de mentalidades.

Depois do agitado corre-corre e dos lucros inebriantes da fase inicial do capitalismo, foi este adquirindo crescente estabilidade. O que proporcionou a muitos capitalistas o lazer necessário para refletirem sobre a situação sócio-econômica que seu enriquecimento criara. Assim, foi ganhando cada vez mais terreno entre eles a propensão a ajudar economicamente os desvalidos, entre os quais, de preferência, os seus próprios trabalhadores.

Desta forma, tinha início a "opção preferencial pelos pobres não exclusiva nem excludente", posteriormente tão encarecida por João Paulo II.

Esse impulso, muitas vezes espontâneo, era acentuado ora por vestígios de tradições familiares cristãs ora por observações científicas objetivas—mas também egoísticas—sobre a própria vantagem do capitalismo em melhorar as condições das classes populares: maior produtividade do trabalho, ampliação do consumo pela transformação de indigentes em consumidores etc.

Também concorreu para esta evolução, incontestavelmente, o temor da vindita popular que surgia nas ameaças de revolução social partidas dos meios socialistas e comunistas.

Mas sobretudo contribuiu para o abrandamento da voracidade capitalista das primeiras décadas o ensino social dos Papas, a partir da Encíclica "Rerum Novarum", de Leão XIII.

As melhorias alcançadas, a partir de então, no relacionamento patrão-trabalhador e capital-trabalho foram tais que, em sua primeira Encíclica, João XXIII já constatava com júbilo o auspicioso declínio das tensões entre as classes sociais (cfr. Ad Petri Cathedram, de 29 de junho de 1959 -- AAS, vol. LI, n° 10, pp. 506-507).

Infelizmente, na iminência mesmo de alcançar assim essa vitória, um fator de caráter ideológico a afastou dos lábios sedentos do Ocidente. Foi o aparecimento - ou talvez, melhor, o reaparecimento - em meios católicos, da agitação ideológica, filosófica e sócio-econômica que começara a despertar com o modernismo, nebulosa heresia que o Papa São Pio X esmagara com firmeza angélica com a Encíclica "Pascendi", de 8 de setembro de 1907.

Renascida de suas próprias cinzas, essa heresia foi ganhando terreno discretamente nos Pontificados de Pio XI (1921-1939) e de Pio XII (1939-1958). E dela se originou a "esquerda católica", já pujante na fase pré-conciliar e quase triunfante nas agitações destes já quase 30 anos pós-conciliares.

É notadamente neste último quarto de século que não só se vem usando, mas principalmente se vem abusando, das palavras função social da propriedade.

Desta realidade são tristes exemplos os projetos de lei sobre Reforma Agrária e Reforma Urbana, em vias de aprovação pelo Congresso Nacional, os quais, embasados precisamente numa mal compreendida função social da propriedade, imporão uma devastação sem nome a toda vida rural e urbana brasileira.