Catolicismo, N.° 450, Junho 1988 (www.catolicismo.com.br)

 

I –  A Reforma  Agrária socialista e confiscatória,

uma guerra perdida pelos proprietários, pelos trabalhadores do campo, pela agricultura nacional... e pelo Brasil

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Presidente do Conselho Nacional da Sociedade Brasileira de Defesa da

Tradição, Família e Propriedade

 

 

1. Espada suspensa sobre a cabeça do agricultor

 

EM BREVE se dará, na Assembléia Constituinte, o debate em segundo turno, da matéria referente à Reforma Agrária, votada em primeiro turno há nove dias.

Há pouca elasticidade, no Regimen­to daquela Casa, para alteração de gran­de monta nos dispositivos desastrosos que foram aprovados em primeiro turno. Des­ta forma, é menos provável que algo de autenticamente importante seja alterado no texto já assente.

Assim, parece virtualmente encerra­do, na Constituinte, o debate sobre a ma­téria. E, em conseqüência do disposto a respeito da Reforma Agrária pela Carta Magna que em breve passará a reger os destinos do Brasil, um sem número de proprietários rurais ficará sujeito, de um momento para outro, a uma desapropria­ção confiscatória mal velada, que o fará rolar da situação brilhante, ou simples­mente confortável e digna, alcançada a custo de seu próprio trabalho árduo e ho­nesto, ou pelo de seus maiores, para um estado de apagada mediania, na melhor das hipóteses. E de aperto econômico, bem como de afrontosa decadência so­cial, na maior parte dos casos.

Os que não forem atingidos por essa ampla degola continuarão, é verdade, na sua situação atual. Mas com a espada de Dâmocles suspensa sobre a cabeça. Ai de­les se externarem alguma opinião oposta aos atos governamentais. Ai deles se, na defesa de um direito, recorrerem ao Po­der Judiciário contra qualquer medida do Poder Público. Ai deles, quiçá, se simplesmente recusarem um contributo "vo­luntário" para os cofres do partido go­vernamental, ou se se negarem a compa­recer a banquetes e homenagens a perso­nalidades altamente colocadas nos esca­lões da política, da administração públi­ca, e notadamente do Mirad. Ai deles ain­da, se incorrerem inadvertidamente na antipatia de qualquer potentado do macro-capitalismo publicitário, pois neste caso estarão expostos a sofrer uma cam­panha que os qualifique arbitrariamente de latifundiários, de patrões injustos, de malfeitores contra a função social da pro­priedade. Pois, a partir disto, qualquer inadvertência que cometam nesse sentido poderá ocasionar que sobre eles despen­que o gládio fatal.

 

2. A nova Constituição divide em duas classes os brasileiros

O temor passará a ser assim o condi­cionamento necessário de tudo quanto fa­çam ou deixem de fazer. As liberdades que existem para todos os cidadãos, mes­mo os mais desvalidos, deixarão de exis­tir para eles.

Segundo a nova Constituição, o Bra­sil passará a ter assim, in concreto, duas categorias de cidadãos. Os não sujeitos às desapropriações confiscatórias formarão a primeira classe, e se beneficiarão de to­das as liberdades. Os sujeitos a tais desa­propriações formarão a segunda classe, e viverão sob o perpétuo jugo do terror.

 

3. Mas já não os dividia assim o Estatuto da Terra?

E, de fato, não poderão fazer uso dos direitos que a lei reconhece em tese — "em tese", muitas vezes, tem significa­ção idêntica a "no mundo da lua" — a todos os brasileiros, sem exceção.

Mas, dirá alguém, já não era mais ou menos esta a situação, na anterior vigên­cia do Estatuto da Terra? "Em tese", sim. Mas, durante o regime militar, es­sas desapropriações foram bastante escas­sas, e se lhes deu sorrateiramente tão pou­ca publicidade, que não chegaram ao co­nhecimento da imensa maioria dos pro­prietários rurais.

Ademais, a Constituição federal até aqui em vigor continha dispositivos que muitas desapropriações feitas com base no Estatuto da Terra transgrediam. E, as­sim, a jurisprudência sabiamente firma­da permitia coibir vários abusos confiscatórios. Com a nova Constituição, estes abusos ficarão desenfreados.

Os proprietários rurais viveram, por­tanto, até o momento, tão seguros psico­logicamente, quanto antes do malfadado Estatuto da Terra.

 

4. Sob o bafejo do filantropismo da abertura e da Nova República... recrudesce a sanha agro-reformista

E havia mais. Em tese, podia-se au­gurar que a Nova República, tão tenden­te a prodigalizar toda espécie de liberda­des e favores aos que estavam fora da lei por motivos políticos e a criar em torno deles uma atmosfera de segura e despreo­cupada normalidade, estendesse seu filan­tropismo aos fazendeiros sujeitos ao pâ­nico agro-confiscatório, cidadãos honra­dos, sustentáculos da trave-mestra da eco­nomia nacional, isto é, da agricultura.

Mas o filantropismo do regime da abertura e da República Nova mostrou ter mão, e não contra-mão. Os benefícios es­coaram todos para a esquerda. Para a classe execrada e perseguida pelas esquer­das, ao contrário, confluíram a difama­ção infundada e sistemática, a violência das invasões condenadas entretanto pelo Código Penal (art. 161, parágrafo 1°, in­ciso II), e o confisco agro-reformista adrede tirado da sombra discreta da era militar, para o elevar à categoria de ador­no da administração pública. E para o ir executando em passo cada vez mais ace­lerado. Ademais, para que nenhuma dú­vida pairasse quanto à autenticidade dos propósitos aceleratórios do agro-re­formismo vitorioso, foi criado o Minis­tério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário, confiado às mãos de uma pes­soa gratíssima da CNBB, o Sr. Nelson Ribeiro.

Este último era animado, por sua vez, pela sanha confiscatória mais açodada que imaginar se possa. Do que deu robus­ta garantia com um decreto que ficou pa­ra todo o sempre escrito na História do Brasil. Ou seja, o decreto de 2 de julho de 1985, que declarou desapropriável para efeitos de reforma agrária o próspero e florescente Município de Londrina.

Se as terras de Londrina estavam ex­postas a tão brutal agressão agro-confis­catória, quem no Brasil escaparia à sanha do Mirad?

O brasileiro é bonacheirão e de bom grado se ri das coisas. Mas seu riso sabe ter por vezes reflexos de ironia a que nada resiste. Uma imensa gargalhada nacio­nal acolheu a truculenta ousadia desapro­priatória. As garras agro-reformistas se encolheram. E Londrina ficou a salvo de desapropriações, como o Mirad ficou a salvo do Sr. Nelson Ribeiro, por fim demissionário.

 

5. A sanha agro-reformista vitoriosa na Constituinte — a Reforma Agrária se torna irrevogável

Mas a sanha, quando se encolhe, não murcha necessariamente. Pelo contrário, ela salta por vezes de seus esconderijos, com ímpeto redobrado. É o que acaba de acontecer com a vitória, na Constituin­te, do texto agro-reformista preparado pelo relator Cabral, e que reproduz basi­camente o Projeto da Comissão de Siste­matização, tido unanimemente como esquerdista.

Nele, a Reforma Agrária passa de simples dispositivo de lei ordinária, revo­gável facilmente por qualquer legislatura ordinária, para texto constitucional que só uma reforma da Magna Carta, com­plicada e difícil de ser levada a cabo, po­derá abolir.

Em outros termos, "em tese" a Re­forma Agrária continuará revogável. Ou seja, ela continuará tal no mundo da lua.

Em conseqüência, passa a ter agora to­das as condições excogitáveis para se manter in aeternum no Brasil.

 

6. Possíveis objeções em favor da nova Constituição confiscatória — a TFP, por sua vez, treplica

Ao ler estas assertivas, é plausível que muito leitor agro-reformista se ponha a rugir: "No panorama sócio-político na­cional, só mesmo alguém da TFP pode­ria ter a ousadia, o desplante, melhor fô­ra dizer o descaramento de construir e pu­blicar toda essa argumentação, sem fazer referência, uma só vez que fosse, ao fato de que essas desapropriações são levadas a cabo em benefício dos trabalhadores manuais, os quais — e as invasões bem o demonstraram — vivem à míngua em nosso País. A opção preferencial pelos pobres, tão insistentemente propugnada por João Paulo II, só pode ter como con­seqüência a imolação da situação econô­mica dos ricos".

Ninguém ignora ser este o grande ar­gumento agro-reformista. O que muita gente continua a ignorar obstinadamen­te, por mais que se publique, é a argumen­tação contrária, levantada pela TFP ao longo dos trinta anos de seu batalhar or­deiro, pacífico, mas valente e inquebran­tável, contra o tríplice reformismo agrá­rio, urbano e empresarial. Ou seja que:

 

7. As hordas de invasores não foram constituídas de trabalhadores autênticos

a) É falso, ou pelo menos absoluta­mente discutível, que as hordas incontidas de "trabalhadores agrícolas subnutri­dos" tenham sido constituídas por traba­lhadores autênticos, autenticamente subnutridos.

A caudalosa propaganda agro-re­formista, não só iludiu o público dando-lhe a impressão de que as hordas de in­vasores eram constituídas por compactos contingentes de trabalhadores rurais au­tênticos, como o iludiu também fazendo crer que a aglutinação dos componentes dessas hordas se fez de modo inteiramente espontâneo.

Na realidade, a imensa maioria dos trabalhadores rurais — talvez melhor se dissesse a quase totalidade deles — se mostrou glacialmente indiferente ao mo­vimento das invasões. A prova disto está em que, se os trabalhadores rurais autên­ticos estivessem fervendo de descontenta­mento em razão de suas péssimas condi­ções de existência, ao se aproximarem as hordas de invasores, eles naturalmente se confraternizariam com estas, lhes abririam as porteiras da propriedade, e com eles condividiriam as terras até aqui pertencentes exclusivamente aos proprietários individuais. E, bem entendido, a propaganda agro-reformista se teria rejubilado em noticiar o fato.

Ora, compulsem-se os jornais do tempo: onde figuram notícias tais? O autor do presente documento, coadjuvado por diligente e operosa equipe de pesquisadores, nenhuma encontrou, percorrendo durante quatro anos cerca de 60 jornais. O que prova à saciedade que, se algo assim foi noticiado, trata-se de fato rarissimo e verdadeiramente excepcional.

Quanto à espontaneidade da aglutinação dos componentes das hordas invasoras de terras, pairam as maiores dúvidas sobre ela. Seria indispensável que os poderes competentes fizessem estudos pormenorizados e de poder conclusivo incontestável sobre a natureza e a composição dessas hordas, para que se pudesse formar juízo exato sobre o que significam essas invasões, como expressão das condições de vida autênticas, e das verdadeiras disposições de ânimo dos que as compõem (cfr. Plinio Corrêa de Oliveira, No Brasil: a Reforma Agrária leva a miséria ao campo e à cidade, Editora Vera Cruz, São Paulo, 1986, pp. 24 a 27).

Antes de estar de posse desses dados, toda conclusão sobre as invasões – em si mesmas e enquanto sintomas de descontentamento popular – é vazia de sentido.

 

8. Um argumento agro-reformista desmentido pela realidade: as divisões de propriedades acarretariam melhores condições de vida para os trabalhadores

b) Absolutamente por ninguém foi provado, nos arraiais agro-reformistas, que a divisão das propriedades produza ipso facto a melhoria de condições de vida para os trabalhadores. Nem que aumente a produção.

No que leva então a divisão do ager em pequenas propriedades, a exercer sua tão decantada função social? Pelo contrário, já foi provado de modo irrefutável e irrefutado que a implantação da Reforma Agrária só tem por efeito a favelização do campo, e o lançamento dos trabalhadores manuais a uma miséria autêntica e evidente.

Já no Brasil de nossos dias não faltam exemplos indiscutíveis disso, como é o caso da introdução da Reforma Agrária em florescentes propriedades agrícolas do Pontal do Paranapanema. Trata-se, no caso, não de assentamentos quaisquer, mas de assentamento nos quais o Governo do Estado de São Paulo investiu recursos volumosos, com larguíssima propaganda etc. Leia-se, a este propósito, a reportagem fartamente apoiada em fotografias e depoimentos dos “beneficiários” da referida reforma, publicada no mensário de cultura “Catolicismo” (n.° 447, março de 1988).

Esse resultado, previu-o com argumentação férrea o magnífico livro do advogado e sócio da TFP, Atilio Guilherme Faoro, Reforma Agrária: “terra prometida”, favela rural ou “kolkhozes”? –  Mistério que a TFP desvenda (Editora Vera Cruz, São Paulo, 1987, 198 pp.), oferecido como brinde aos Srs. Constituintes. O livro contou com uma carta de louvor, no que se refere ao campo jurídico, do Prof. Silvio Rodrigues, Catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Essa mesma obra foi largamente difundida pelas caravanas da TFP em 173 cidades de 13 Estados.

 

9. A agricultura brasileira vem desempenhando adequadamente o seu papel

c) Uma tecla sobre a qual sempre bate a argumentação da TFP (cfr. Plinio Corrêa de Oliveira em colaboração com D. Geraldo de Proença Sigaud, Arcebispo de Diamantina, D. Antonio de Castro Mayer, Bispo de Campos e o economista Luiz Mendonça de Freitas, Reforma Agrária – Questão de Consciência, Editora Vera Cruz, São Paulo, 1960, pp. 213 a 217; Plinio Corrêa de Oliveira – Carlos Patricio del Campo, Sou católico: posso ser contra a Reforma Agrária?, Editora Vera Cruz, São Paulo, 1981, pp. 271 a 334; Plinio Corrêa de Oliveira – Carlos Patricio del Campo, A propriedade privada e a livre iniciativa, no tufão agro-reformista, Editora Vera Cruz, São Paulo, 1985, pp. 115 a 164; Carlos Patricio del Campo, Is Brazil Sliding Toward the Extreme Left? – Notes on the Land Reform Program in Sout America's Largest and Most Populous Country, The American Society for the Defense of Tradition, Family and Property, New York, 1986, pp. 37 a 103) consiste em que, de modo geral, a agropecuária muito tem contribuído para o desenvolvimento social e econômico de nosso País. Principal fonte de recursos para o desenvolvimento industrial, ela tem gerado mais de 50% das divisas externas, indispensáveis para o crescimento da Nação. Acrescente-se ainda que, ao longo de décadas, sua produção tem aumentado em proporção maior do que a da população. Este excelente desempenho, conseguido – note-se – apesar da comprovada penalização sofrida pelo setor agrário desde a década de 60, fez do Brasil o maior produtor mundial de café, laranja, banana e açúcar, e o segundo maior produtor de milho, cacau, feijão e soja (cfr. FAO, Production Yearbook 1984, Roma, 1985, vol. 38, pp. 116, 136, 142, 184, 190, 196, 201, 203, 206).

Ressalte-se ainda que, no ano de 1987, a agricultura obteve a maior produção de grãos de sua história. Tal produção superou a capacidade de transporte e armazenamento do País, provocando perdas de 20% a 25% em algumas áreas. Este ano também, segundo estimativas oficias, o Brasil deve obter novamente uma de suas maiores colheitas de sua história.

Diante de tão brilhante desempenho, como falar de terras improdutivas? Como ameaçar de confisco propriedades parcialmente exploradas, quando, se todas o fossem inteiramente, correr-se-ia o grave risco de perda da produção?

A extraordinária pujança da agricultura nos últimos dois anos tem evitado um agravamento da recessão e contribuído significativamente para que até agora não se tenha produzido a explosão de um processo hiperinflacionário incontrolável.

É realmente paradoxo difícil de explicar a verdadeira perseguição montada na Constituinte contra uma agropecuária que tais benefícios tem proporcionado ao País.

E a não se cortar o passo a esta perseguição, a exemplo do que ocorreu em Cuba, na Nicarágua e no Chile de Allende, o desmantelamento de nossa agricultura produzirá fome e miséria, trazendo assim a triste confirmação pelos fatos dos prognósticos aqui apresentados.

 

10. Uma ilusão: a poética contextura de propriedades rurais com dimensões familiares

d) Por fim, o agro-reformismo cria no espírito do público a ilusão de que vai ocupar todo o ager brasileiro com uma estrutura de pequenas propriedades familiares. Na realidade, o texto aprovado pela Assembléia Nacional Constituinte – conforme o autor já teve oportunidade de observar no livro Projeto de Constituição angustia o País (“Catolicismo”, edição especial, outubro de 1987, pp. 152-153) – coloca os “beneficiários” da distribuição de imóveis rurais pela Reforma Agrária inteiramente nas mãos do Estado.

Com efeito: 1°) a exploração da terra será feita necessariamente sob a tutela de cooperativas dirigidas pelo Estado; 2°) a linha de conduta dos executores da Reforma Agrária consiste em não dividir a terra em parcelas, mas em a manter indivisa, de maneira a constituir uma fazenda coletiva.

Configura-se assim um modelo de cooperativismo integral e estatalizado, muito semelhante ao adotado em regimes comunistas, nos quais o Estado é proprie­tário da terra, e os lavradores são apenas usufrutuários incorporados ao processo produtivo cooperativizado, estatizado e coletivizado.

É o que se verifica nas comunas chi­nesas, nas agrovilas polonesas, nas gran­jas del pueblo cubanas e nas fazendas co­letivas russas, os famosos kolkhozes!

 

11. Só se compreenderia que fossem atingidos os imóveis particulares depois de esgotado o imenso latifúndio estatal

e) De mais, o propósito inabalável de não instituir no Brasil a poética contex­tura de propriedades rurais com dimensões familiares ressalta de outro argumen­to que o despotismo agro-reformista tam­bém passa sob silêncio, apesar de cons­tantemente lembrado pela TFP (cfr. obras já citadas, especialmente Projeto de Constituição angustia o País, pp. 151-152).

A estrutura fundiária brasileira se compõe de duas parcelas distintas. Uma primeira parcela é constituída pelas ter­ras correntemente chamadas "devolutas", pertencentes à União, às quais se de­veriam acrescentar as terras cadastradas de propriedade do Governo federal, bem como dos governos estaduais e munici­pais. Essas terras, consideradas em seu conjunto, constituem o maior latifúndio — inaproveitado — do Mundo Livre.

Outra parcela é constituída por pro­priedades privadas, grandes, médias ou pequenas.

Bem entendido, as terras pertencentes à União, aos Estados ou aos Municípios, são naturalmente destinadas à ocupação progressiva da população brasileira. Frag­mentar essas terras, para as ir distribuin­do em lotes a pessoas físicas ou jurídicas idôneas, em nada é lesivo do instituto da propriedade privada. Muito pelo contrá­rio, favorece-o.

Tal distribuição deve até ser apoiada e promovida pelo Poder Público, a quem incumbe primordialmente a tutela do bem comum. Pois os brasileiros carentes lá po­dem encontrar terras em que trabalhem, e das quais subsistam; e essas terras, por ora improdutivas, passam a ser aprovei­tadas para o aumento da produção do País.

Só depois de inteiramente feita essa distribuição é que, em caso de compro­vada necessidade, se compreenderia que a Reforma Agrária atingisse imóveis par­ticulares, a começar pelos inaproveitados.

 

12. Outra ilusão: a Reforma Agrária só atingirá as grandes propriedades

f) A TFP menciona ainda uma obje­ção que facilmente poderia ocorrer aos seus opositores. É que, pelo menos, a Re­forma Agrária, como ficará estabelecida na futura Constituição, se cingirá às gran­des propriedades, mas poupará as médias e pequenas.

Tal argumento pode impressionar muitos fazendeiros, pois estes são gente sensata, que dificilmente atinará com as armadilhas doutrinárias e práticas ocul­tas nesse dispositivo.

Com efeito, qual a área de uma pro­priedade considerada pequena? e média? O limite de tais propriedades será defini­do por lei ordinária. Ora, com todo o ca­ráter de volubilidade intrínseco à lei or­dinária, em matérias efervescentes como esta, uma propriedade hoje considerada pequena ou média, amanhã poderá ser considerada grande.

Cumpre lembrar a esse propósito o ocorrido no Chile, quando da aplicação da Reforma Agrária pelo governo mar­xista de Salvador Allende (1970-1973). Numa primeira fase, estavam sujeitas à expropriação apenas as propriedades su­periores a 80 hectares. E, desde o início, a lei ordinária proibiu à iniciativa parti­cular o parcelamento das terras nessas condições. Acionada a "guilhotina" agro-reformista, estava tudo pronto, nu­ma segunda fase, pouco antes da queda de Allende, para reduzir aquela área má­xima a 40 hectares. De maneira que, pa­ra efeito de aplicação da Reforma Agrá­ria, a propriedade média do dia anterior passava a ser considerada grande e sujei­ta, portanto, a ser retalhada.

O dispositivo aprovado pela Assem­bléia Nacional Constituinte não constitui nenhuma garantia séria para os pequenos e médios proprietários, hoje considerados como tais.

* * *

A réplica do agro-reformismo a toda essa argumentação foi a mesma que man­teve nas décadas anteriores, isto é, a da prepotência contrafeita. Consistiu ela em silenciar ante essas objeções, e impor a al­mejada reforma "quia nominor leo": porque sou o leão, diria uma tradução livre (Fedro, Fábulas, I, 5).

Assim se entende em nosso País a de­mocratização que a maioria parlamentar proclama entretanto como princípio bá­sico da nova Constituição.

Seja dito de passagem que a TFP, se bem que apontada freqüentemente pelos seus detratores como "medievalizante", é propensa à controvérsia afável e cortês. Ela não desdenha de replicar ou treplicar a nenhum dos argumentos que se lhe opõem. E o faz de boa vontade, larga­mente, como quem deseja persuadir, unir, somar esforços. Tais são sempre nossas réplicas. As tréplicas... não existem!

O adjetivo "medievalizante" designa, na pena desses opositores, um pendor pa­ra admirar uma ordem de coisas que te­ria sido a síntese de todos os males capa­zes de deformar uma sociedade: ignorân­cia boçal, crueldade selvagem, despotis­mo total, opressão omnímoda dos desvalidos, organização da vida para a fruição dos magnatas da ordem espiritual e temporal.

Com isto, os mesmos opositores se mostram desinformados da erudita e pe­netrante produção historiográfica vinda a lume sobre a Idade Média nestes últi­mos 50 anos. E a TFP lhes sugere que se atualizem a tal respeito, lendo por exem­plo o livro tão substancioso, erudito e conciso de Régine Pernoud, Lumière du Moyen Âge (Hachette-Pluriez, Paris, 1982). Ou ainda, da mesma autora, ou­tra obra, talvez mais elucidativa, Pour en finir avec le Moyen Âge (Seuil, Paris, 1979).

 

13. “O bem que o Estado faz é mal feito; e o mal que ele faz é bem feito”

Tudo isso assente, fica bem provado que os dispositivos da nova Constituição, concernentes à Reforma Agrária, sujeitam incontáveis proprietários a uma cruel derrocada econômica e social, na qual não há a menor vantagem para os trabalhadores manuais, e nem para a agricultura considerada como um todo. Esta passará a ser regida pelo mais inepto, pelo mais despótico e pelo mais catastrófico dos macro-proprietários imaginável. Isto é, pelo Poder Público, cuja incapacidade dá provas de si em nosso País com a experiência tragicamente malograda das chamadas empresas “estatais”.

Neste, como em tantos outros campos, se confirma pela realidade brasileira o princípio espirituoso, se bem que algum tanto carente de matizes: “o bem que o Estado faz é mal feito; e o mal que ele faz é bem feito”.

Dado que, em considerável medida, assim se deve pensar acerca de toda a imensa extensão dos prejuízos patrimoniais e sociais que ficarão expostos, por força da nova Constituição, inúmeros agricultores, e com eles o conjunto da agricultura nacional, é forçoso reconhecer que para eles, como para os trabalhadores manuais e para o País, todos os prejudicados com os artigos da futura Constituição, perderam uma guerra.

Em função disto, as pequenas melhoras obtidas pelo Centrão e pela UDR na redação do art. 219 constituem apenas concessões benignas do vencedor ao vencido. E nunca uma vitória.

 

14. A guerra perdida – a vitória que não existiu

Assim, a TFP afirma lhe ser impossível compreender como a nota dominante das manchetes de muitos jornais da maior repercussão no País sobre aprovação dos dispositivos constitucionais concernentes à Reforma Agrária hajam deitado inusitada ênfase em que o Centrão e a UDR alcançaram ipso facto uma estrepitosa vitória sobre as esquerdas, e, mais, hajam tomado sobre si noticiar os aspectos triunfalistas das celebrações de “vitória”, inserindo a respeito pormenores acerca dos quais um leitor dotado de espírito analítico teria muitas ressalvas a fazer.

Vitória? Pode-se vencer de dois modos: uma coisa é vencer uma guerra, outra coisa é vencer uma batalha, dentro da guerra.

Quem venceu? o Brasil? a classe dos proprietários rurais? a classe dos trabalhadores do campo? Como acima se viu, e jamais será suficiente acentuar, nenhum dos três. E, aliás, nem mesmo a imprensa pretendeu afirmar o contrário.

O que é evidente, mais do que evidente é que o Brasil, os proprietários rurais, os trabalhadores do campo levaram, com sua fragrorosa derrota na Constituinte, um vigoroso safanão, que joga o País a dois passos do comunismo.

Sem embargo, e muito paradoxalmente, o grande acontecimento, segundo essas manchetes, teria consistido em que venceram o Centrão, a UDR e, no ápice desta, o Sr. Ronaldo Caiado.

Este último teve até sua candidatura à Presidência da República lançada pelo presidente regional da UDR paraibana, que exclamou: “Um, dois, três, quatro, cinco, mil, queremos o Caiado presidente do Brasil” (“Folha de s. Paulo”, 11-5-88).

O chefe nacional da UDR desperdiçou aqui mais uma oportunidade de demonstrar seus dotes oratórios. E, em vez de discursar, cantou, acompanhado por um grupo de fogosos seguidores, umas estrofes cujo nexo com as circunstâncias não se percebe bem: “Quem parte leva saudades de alguém, que fica chorando de dor” (“Folha de S. Paulo”, 11-5-88).

Saudades da Constituinte? Não é muito crível, pois que os próprios parlamentares dela fogem quanto possível, aproveitando todas as ocasiões para visitar seus torrões natais, dos quais, isto sim, têm legítimas saudades. Ou então, para uma rápida excursão ao deslumbrante Rio de Janeiro.

De qualquer modo, essas saudades beneficiariam indiscriminadamente todos os seus parlamentares? Inclusive os da minúscula bancada comunista? O fato é que os deputados esquerdistas não deixaram de retribuir ao Sr. Caiado a “politesse”.

Pois toda a propaganda que se vem desenvolvendo em torno deste (de análoga propaganda só se beneficiaram, até aqui, em nosso País, Getúlio Vargas, D. Hélder Câmara e Tancredo Neves) visa interpretar o recente revés como a prova de que, para os derrotados proprietários, a fórmula salvadora consistiria em se reunirem em torno do Sr. R. Caiado, levando-o à Presidência da República.

Ora, poucos depoimentos poderiam servir tão bem ao Sr. Caiado, nesta emergência, do que os dos próprios esquerdistas, que o proclamassem seu contendor máximo, eficiente e vitorioso. E da esquerda lhe vieram, de fato, através da imprensa, depoimentos nessa linha, hostis na aparência, mas vantajosos e lisonjeiros na realidade. Assim, por exemplo, o deputado José Genoino (PT) declarou que votou pelo congelamento dos juros bancários “para se vingar da UDR nas costas dos banqueiros” (“Jornal da Tarde”, São Paulo, 13-5-88). E D. Angélico Sândalo Bernardino, Bispo Auxiliar da zona leste em São Paulo, por sua vez, declarou que a votação da Reforma Agrária na Constituinte (em que, segundo o jornal que dá a notícia, “saíram vitoriosas as posições da UDR”) não o surpreendeu. “Isso apenas faz parte do elenco de traições da Nova República para com o povo, que cada vez se sente mais desencantado, enganado, espantado” (“Jornal do Brasil”, 18-5-88).

*     *     *

Se não se pode pretender que o Sr. Caiado tenha vencido a guerra que foi perdido, terá ele pelo menos vencido, na guerra perdida, a última batalha, isto é, a batalha diplomática de conchavos e acordos para obter um tratado de paz um pouco menos inexorável? É o que melhor se apura analisando o próprio texto do art. 219, resultante dos desentendimentos e entendimentos entre o Centrão e a UDR, de um lado, e as esquerdas do outro. Tal se analisará na segunda parte do presente comunicado, a ser publicada amanhã neste jornal. Se o Centrão, a UDR e o Sr. Caiado foram vencedores ou vencidos importa menos, neste documento, do que fazer o possível para que os proprietários rurais não se deixem iludir sobre sua própria situação, imaginando que constituiu para eles uma vitória, o que foi na realidade a última batalha da guerra perdida.

 

15. Para os espoliados, uma saída ainda permanece – a réstia de luz ao fim do escuro túnel

Com efeito, toda ilusão a esse respeito só retardará a grande aglutinação de forças que os homens da lavoura, agricultores ou pecuaristas, proprietários ou trabalhadores manuais devem operar desde logo para conter, na medida do possível, o mal que já está feito. E fazê-lo retroagir.

Em outros termos, e ainda que isto pareça utópico, se os grandes derrotados de hoje agirem com clarividência e fibra, poderão levar a opinião pública, reta e amplamente informada, a obter que a legislação ordinária, a ser proximamente elaborada em matéria agro-reformista, seja o mais possível prudente e circunspecta.

Mais ainda. Se a tragédia de cada fazendeiro derrotado e de cada família agro-trabalhadora enfavelada for levada ao conhecimento de todo o País, pode-se esperar que daí se origine uma indignação geral. Indignação esta que crescerá de ponto se forem comunicados a todo o País os prejuízos que a Reforma Agrária for acarretando para toda a economia nacional.

E, assim, não será utópico imaginar que, por fim, os legisladores sintam a necessidade de revogar a própria Reforma Agrária.

 

[O documento acima foi publicado na “Folha de S. Paulo”, 22-5-1988. O subsequente, no dia 25-5-88, e no mesmo jornal]

 

 

 

II — No tratado de paz entre vencedores e vencidos, as minguadas vitórias destes últimos

 

1. "Justa indenização": emaranhado de dispositivos confusos que nada garantem ao proprietário

 

Texto aprovado

Art. 218. Compete à União de­sapropriar por interesse social, pa­ra fins de reforma agrária, o imó­vel rural que não esteja cumprindo a sua função social, mediante pré­via e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de pre­servação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.

 

Comentário

"Justa indenização" à primeira vista parece ser só aquela que corresponde exa­tamente ao valor venal da propriedade, ou seja, o preço que ela alcança no mer­cado livre.

"Em títulos da dívida agrária": torna-se claro que o valor venal deve ser pago, não em dinheiro, mas em títulos da dívi­da agrária. Tais títulos têm, na realida­de, dois "valores". Um é o valor nomi­nal, que trazem impresso. Outro é o va­lor real que lhes é atribuído no mercado de títulos. Esse segundo valor é cronica­mente muito inferior ao primeiro. Atual­mente, os títulos da dívida agrária estão sendo vendidos a 40% de seu valor nominal.

Então, pergunta-se: a vigorar o prin­cípio da "justa indenização", será necessário dar uma quantia em títulos da dívi­da agrária que proporcione ao proprietá­rio agroconfiscado vender imediatamen­te tais títulos no mercado competente, ob­tendo em dinheiro o valor exato do imó­vel que lhe é retirado? Ou é o proprietá­rio obrigado a aceitar os títulos pelo seu valor nominal? Neste último caso, eviden­temente soa à maneira de irrisão falar em "justa indenização". Pois a compensação obtida pelo proprietário será muito infe­rior ao preço do imóvel que lhe é confiscado.

Entretanto, a interpretação que pare­ce mais provável é a de que o valor efeti­vamente recebido pelo proprietário con­fiscado é igual ao valor meramente no­minal dos títulos que recebe. A não ser assim, a Reforma Agrária se tornaria im­possível, pois o custo pago (ou seja, o pre­ço de valor de mercado, não é demais lembrar) pelo Estado por qualquer imó­vel seria tão alto, que a soma das desa­propriações planejadas pelo governo tor­naria irrealizável a Reforma Agrária. As­sim parecem entendê-lo os protagonistas da Reforma Agrária, que aprovaram o presente dispositivo sem maior oposição.

Entretanto, é preciso notar, em senti­do oposto ao que acaba de ser pondera­do, que o presente artigo se refere expres­samente à "cláusula de preservação do valor real" dos títulos da dívida agrária. Ou seja, ao longo dos vinte anos em que esses títulos são resgatáveis, é preciso que eles não se desvalorizem. Ou seja, ainda, que não desçam a um preço menor que o preço de mercado, do imóvel confiscado.

Para o fazendeiro, em que dará este emaranhado de textos que afirmam, que logo em seguida põem em dúvida, que ga­rantem o instituto da propriedade priva­da, e pouco depois o negam?

A simples existência desse emaranha­do dá azo a que um governo agro-re­formista empreenda a aplicação desses dispositivos constitucionais no seu senti­do mais audacioso. Certo número de proprietários recorrerá então ao Poder Judi­ciário, com o que terá início um proces­so com aspectos e contra-aspectos inter­mináveis, julgados, ora de um, ora de ou­tro modo, pelas instâncias judiciárias ini­ciais e intermediárias, e indo ter finalmen­te no Supremo Tribunal Federal.

Nessa instância última, será natural que o mesmo emaranhado de dispositivos suscite divergências entre Câmara e Câ­mara, como entre Ministros da mesma Câmara.

É, para que o Judiciário fixe afinal uma jurisprudência, será então necessá­rio esperar vários anos. Durante todo es­te tempo, quantos gastos com advogados, com pareceres de jurisconsultos ilustres, com custos judiciários e com viagens te­rá desembolsado o desditoso fazendeiro desapropriado! E isto quando sua situa­ção econômica e financeira já estará aba­lada a fundo e seu crédito bancário dimi­nuído pelo simples fato do decreto desapropriatório!

E presumível que, para grande maio­ria dos fazendeiros, o engajamento em tal processo se depare certamente dispendio­so e duvidosamente vitorioso. De onde preferirem simplesmente sujeitar-se à ti­rania reformista governamental.

E não há nesta previsão conjectural tão-só um castelo de cartas pessimista. Coisa análoga já ocorre com as desapro­priações em curso. O Estado arbitra co­mo valor justo (interpretando assim a lei em vigor) o valor declarado pelo proprie­tário para efeito de pagamento do ITR (Imposto Territorial Rural), sensivelmen­te inferior ao valor de mercado. O que tem dado margem a longos e custosos processos judiciais. O Estado deposita o valor fiscal, e a jurisprudência exige que, ao fim do processo, ele acabe por pagar pelo imóvel expropriado o valor do mercado.

Note-se que as obscuridades da Cons­tituição não podem ser resolvidas por leis ordinárias. Mas só pelo Judiciário. De sorte que não há outro caminho para ob­ter alguma clareza nesta matéria. Se ain­da se pode chegar a tal clareza na obscu­ridade deste artigo.

 

2. "Benfeitorias úteis e necessárias": noções simples e de bom senso corrente, que a nova Constituição relega de fato ao arbítrio do Estado

 

Texto aprovado

Art. 218, § 1° As benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro.

 

Comentário

Parece dever-se entender também, além da indenização em dinheiro, que as benfeitorias úteis e necessárias serão pa­gas à vista.

Para o leitor pouco versado em assun­tos jurídicos, nada mais claro: O que é "útil"? — O que apresenta efetiva utili­dade, responderá ele com simplicidade. E o que é "necessário"? — O que atende reais necessidades.

Ao menos quanto às benfeitorias, o agricultor pouco experiente imaginará que está bem garantido.

Como se engana, entretanto! Pois compete à lei ordinária definir o que é “útil” e “necessário”. E, no cumprimento desse encargo, o legislador ordinário será inevitavelmente influenciado por suas tendências ideológicas. Se for esquerdista, atribuirá um sentido mais restritivo a ambos esses adjetivos, Se, pelo contrário, for um protetor do direito natural da propriedade, dar-lhe-á um sentido mais amplo. E, ademais, a lei ordinária pode ser modificada a qualquer momento pelos legisladores. De sorte que Câmaras sucessivamente mais esquerdistas poderão ir restringindo o conceito de útil e de necessário, quase ao infinito. E, pelo contrário, Câmaras mais imbuídas do direito de propriedade poderão ir ampliando-o.

Daqui por diante, tudo dependerá, portanto, de um lado da boa organização e do instinto de conservação que lograrem ter os proprietários e, de outro lado, da firme articulação e da maior ou menor sanha agro-reformista dos elementos de esquerda.

Pois é da ação que centro e esquerda exercem sobre o Legislativo, que ficará dependente a orientação dos legisladores ordinários.

Ademais, cumpre observar que os próprios conceitos de útil e de necessário são relativos, e portanto sujeitos a confusões insolúveis.

Assim, uma benfeitoria é mais útil ou menos, mais necessária ou menos, em função das características da exploração realizada na fazenda.

Para o proprietário expropriado, que explorava a fazenda de determinado modo, as benfeitorias eram necessárias ou simplesmente úteis. Para o assentamento que ali será instalado, é provável que não sejam úteis nem necessárias. Isso porque as características da exploração terão mudado. Por exemplo, poderá passar de pecuária para agrícola; ou de agrícola com determinados tipos de lavoura, para outro tipo de exploração agrícola.

Qual será o conceito de útil ou necessário que prevalecerá: o do proprietário ou o do assentamento? Outra matéria para controvérsias judiciárias infindas.

3. Processo de rito sumário prejudica a fundo a defesa do proprietário

 

Texto aprovado

Art. 218, § 2° O decreto que declarar o imóvel como de interesse social, para fins de reforma agrária, autoriza a União a propor a ação de desapropriação.

§ 3° Cabe à lei complementar estabelecer procedimento contraditório especial, de rito sumário, para o processo judicial de desapropriação.

 

Comentário

Os prazos processuais longos favorecem quem tem que se defender. Pelo contrário, os prazos processuais curtos favorecem aos “atacantes”. Nessas condições, o “procedimento (...) especial de rito sumário” aqui proposto, atabalhoa e prejudica a defesa do direito do proprietário.

 

4. Pequenas e médias propriedades: outro conceito de simples bom senso relegados para o arbítrio do legislador

 

Texto aprovado

Art. 218, § 4° O orçamento fixará anualmente o volume total de títulos da dívida agrária, assim como o montante de recursos para atender ao programa de reforma agrária no exercício.

§ 5° São isentas de impostos federais, estaduais e municipais as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária.

Artigo 219. São insusceptíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:

I – a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que o seu proprietário não possua outra;

 

Comentário

As palavras “pequena” e “média” têm um sentido normal, segundo o bom senso e a linguagem corrente. Muito de propósito, o presente dispositivo não se contenta com este sentido, mas atribui ao legislador a missão de definir o que sejam “média” e “pequena”.

Em outros termos, o dispositivo em apreço dá ao legislador o direito de ir variando, conforme as leis ordinárias que se sucedem, o significado desses termos. De sorte que sucessivas Câmaras esquerdistas podem considerar cada vez menor o limite da propriedade média e até o da propriedade pequena.

Este procedimento arbitrário também é implicitamente facultado ao legislador ordinário no que diz respeito à grande propriedade. Pois grande será toda propriedade... que não for média nem pequena. E, se o limite das propriedades médias e pequenas for rebaixado, evidentemente também muitas propriedades agora consideradas médias, passarão a ser qualificadas de grandes. E algumas consideradas pequenas, serão qualificadas de médias.

Tudo será, pois, dependente de um arbítrio que se moverá, em última análise, segundo os pendores ideológicos ou outros, dos legisladores.

Nada mais flutuante, nada mais indeciso para os proprietários.

 

5. Propriedade produtiva: conceito simples e fundamental entregue à manipulação legislativa arbitrária do Estado

 

Texto aprovado

Art. 219, II — a propriedade produtiva.

Parágrafo único. A lei garanti­rá tratamento especial à proprieda­de produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos rela­tivos a sua função social.

 

Comentário

"A lei": que lei? Obviamente a lei ordinária.

A ela caberá, segundo a nova Consti­tuição, garantir "tratamento especial à propriedade produtiva" etc.

No que consiste esse "tratamento es­pecial"? O conceito é dos mais vagos, e será definido pela lei ordinária. Ou seja, será mutável, de acordo com os desígnios dos legisladores que sucessivamente tere­mos. Mais uma vez, para os proprietá­rios, insegurança, intranqüilidade, caos.

Se essa é a missão da lei ordinária, entende-se que a ela também compete de­finir no que consiste uma "propriedade produtiva", ou seja, que requisitos deve ter uma propriedade para ser considera­da "produtiva".

O Ministério da Reforma e do Desen­volvimento Agrário (Mirad), por exem­plo, atribui — alegando estar baseado em lei — os mais diversos significados à pa­lavra "produtiva".

1. Terras em arrendamento ou parce­ria não são consideradas por ele produtivas.

2. Desde a promulgação do Estatuto da Terra, o conceito de propriedade pro­dutiva ("empresa rural") foi mudando em sucessivas alterações da lei. De início, era considerada "empresa rural" não ex­propriável, aquela que explorasse mais de 50% de sua área aproveitável. Posterior­mente esse índice aumentou para 70%, e agora está em 80%.

 

6. O arbítrio estatal definirá no que consiste a função social da propriedade

"E fixará normas para o cumprimen­to dos requisitos relativos a sua função social".

A "função social" do direito de pro­priedade vem sendo principalmente pro­pugnada, em nossos dias, pelo Supremo Magistério da Igreja.

Não constitui ela uma novidade, no firmamento da Doutrina Católica. Pois nestes ou em outros termos, está ela pre­sente, explícita ou implicitamente, em nu­merosos pronunciamentos e em incontá­veis atitudes da Igreja de todos os séculos.

Isso não obstante, o tema da "função social da propriedade" começou a ser mais especialmente focalizado por Pio XI (Encíclica Quadragesimo Anno), embo­ra ainda sem usar a expressão. E tanto bastou para que os corifeus da esquerda católica dela fizessem tema predileto da cartilha de suas agitadas e biliosas reivin­dicações. Com isto deram-lhe muitas ve­zes interpretações a um tempo confusas e exageradas.

Tal conferiu caráter apaixonado e po­lêmico a assunto nobre e delicado, cujos contornos, ainda hoje imprecisos, nor­malmente deveriam ir sendo esclarecidos no debate autorizado para o qual conver­gissem teólogos, moralistas, sociólogos, economistas e especialistas em assuntos pastorais, bem como em obras de apostolado.

A balbúrdia criada dessa forma pela esquerda católica vem atrasando conside­ravelmente a elucidação do importante te­ma. E a própria Santa Sé, tão empenha­da em elucidá-lo, tem mostrado, a tal res­peito, uma circunspecção imposta, a nos­so ver, pela atmosfera de confusão e de agitação que cerca o assunto.

Enquanto, com essa prudência, mas também com esses tropeços, a Igreja vem preparando cautelosamente uma cabal definição do que seja "função social da propriedade", essa expressão foi se tor­nando slogan eleitoral. E, como tal, pas­sou a estar exposta aos mais desencontra­dos vendavais, na arena política.

A essa circunstância se deve, pelo me­nos em parte, o fato de que a "função so­cial da propriedade" seja mencionada vá­rias vezes na nova Constituição, como se contivesse um lastro doutrinário já intei­ramente definido. Ora, nem sequer entre os especialistas acatólicos ou anticatóli­cos que tratam do assunto "função so­cial", sem aceitar em suas reflexões qual­quer conotação religiosa, se observa até o momento um consenso geral sobre a matéria.

Nada disso parece ter sido tomado na devida linha de conta pelos Constituintes de 1987-1988, os quais jogam com a "função social", explícita ou implicita­mente, como se fôra moeda corrente, de valor já inteiramente mensurado.

Com isso, introduzem eles novo ele­mento de confusão no País.

Já se viu que o legislador reservou pa­ra si definir o que é propriedade produtiva. Aqui ele vai mais longe, e reserva pa­ra si o direito de definir no que consiste a função social a que está sujeita toda propriedade, e quais as normas a pauta­rem o exercício dessa função.

A ditadura estatal sobre a agricultura vai se afirmando, assim, cada vez mais ampla. E o Estado, cada vez mais absor­vente. Vai aparecendo no horizonte a fi­gura de um Estado que dirige com mão de ferro todas as atividades de uma infi­nidade de corpúsculos agrícolas pseudo-autônomos. Ou seja, o Estado se­rá, na realidade, o grande proprietário, segundo os princípios do capitalismo de Estado inerente aos regimes marxistas.

Mais uma vez, para o infeliz proprie­tário, tudo é aqui indefinição, arbítrio es­tatal e enigma.

 

7. Em tudo o proprietário fará o que o Estado quiser, quando quiser, como quiser

 

Texto aprovado

Art. 220. A função social é cum­prida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigências esta­belecidos em lei, os seguintes requisitos:

I — aproveitamento racional e adequado;

 

Comentário

Compete ao Estado definir no que consiste tal "aproveitamento racional e adequado". Ou seja, o Poder Público de­termina o que deve ser plantado, quan­do, segundo que técnicas, e onde; como prover à conservação ou recomposição da fertilidade das terras etc. O Estado é o di­retor, o senhor. Ele tem os poderes ine­rentes ao dono. O que é o proprietário? É apenas um funcionário do Estado pa­ra fazer o que o Estado quiser, quando este quiser, e como quiser. Em outros ter­mos, é mais um vez o agrocapitalismo de Estado, de caráter claramente marxista, que aqui se define.

 

8. Como no regime marxista, atribuições características do proprietário passam para o Estado-proprietário

 

Texto aprovado

Art. 220, II — utilização ade­quada dos recursos naturais dispo­níveis e preservação do meio ambiente;

 

Comentário

Ao Estado cabe determinar quais são os "recursos naturais disponíveis", ou se­ja, dos quais é possível e rentável dispor.

Essa atribuição é característica do pro­prietário privado. No regime marxista, ela passa    naturalmente ao Estado-proprietário.

"Preservação do meio ambiente". Numa propriedade que tenha terras incultas, precisamente para a preservação do meio ambiente, e por imposição do IBDF, ao proprietário nestas condições o Estado pode apertar com os dentes de uma tenaz. De um lado, o IBDF obriga a manter certas terras incultas, para a preservação do meio ambiente. De outro lado, o Estado as confisca porque essas terras não são cultivadas. O que fará o infeliz proprietário, seja ele grande, médio ou pequeno? Só poderá recorrer ao Judiciário, num processo longo, dispendioso e cheio de incertezas. O que equivale a dizer que, na maior parte dos casos, preferirá não se defender.

A tirania estatal aflora aqui mais uma vez.

 

9. A perda de uma simples ação trabalhista permitirá ao Estado dardejar sobre o proprietário um decreto expropriatório

 

Texto aprovado

Art. 220, III – observância das disposições que regulam as relações do trabalho;

 

Comentário

Nos termos deste dispositivo, bastará que um proprietário perca uma ação trabalhista, para que o Poder Público alegue violar ele “disposições que regulam as relações de trabalho”, de onde se lhe pode dardejar um decreto de expropriação confiscatório.

 

10. O Estado é que determina a quota de bem-estar de proprietários e trabalhadores

 

Texto aprovado

Art. 220, IV – Exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

 

Comentário

O sentido ditatorial do Estado aparece aqui de modo ainda mais saliente. Pois ao Estado caberá definir no que consiste “o bem-estar dos proprietários", tanto quanto "o bem-estar dos trabalhadores". Ou seja, como a quota de remuneração atribuída a estes ou àqueles é regulada pe­lo Estado, ele é que determina quais as condições mínimas do bem-estar a que podem pretender os proprietários. E os trabalhadores. Ou seja, o Estado pode re­servar para si, a título de impostos ou qualquer outro, a parte do leão. E gra­duar à sua vontade o tamanho das miga­lhas que deixará respectivamente para os proprietários e para os trabalhadores.

 

11. Na formulação da política agrícola, a participação dos setores privados se reduzirá a função meramente consultiva

 

Texto aprovado

Art. 221. A política agrícola se­rá planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva dos setores de produção, envolven­do produtores e trabalhadores ru­rais, de comercialização, de arma­zenamento e de transportes, levan­do em conta, especialmente:

 

Comentário

"Com a participação efetiva": no que consiste essa participação? No exercício de uma função meramente consultiva, pois toda decisão cabe exclusivamente aos que fazem as leis. Ou seja, "a política agrícola será planejada e executada na forma da lei". Mais um vez, esse enxame de assessores que o Estado deverá ou­vir, consciente da nenhuma valia da sua participação, provavelmente se desinte­ressarão dela. E o Estado agirá com os braços livres, que é o que continuamente lhe visa proporcionar a Constituição nova.

"Levando em conta": quem levará em conta? Essencialmente, quem fizer a lei ordinária. E, portanto, é o próprio Po­der Público que levará em conta, segun­do os moldes e os critérios que entenda.

 

12. Pouco ou nada escapa à tirania estatal

Texto aprovado

Art. 221, I — Instrumentos cre­ditícios e fiscais;

II — Preços compatíveis com os custos de produção e garantia de comercialização;

 

Comentário

Note-se bem: até a fixação dos preços ficará a cargo do Estado.

 

Texto aprovado

Art. 221, III — incentivo à pes­quisa e à tecnologia;

IV — assistência técnica e exten­são rural;

V — seguro agrícola;

VI — cooperativismo;

VII — eletrificação rural e irrigação;

VIII — habitação para o traba­lhador rural.

§ 1° Incluem-se no planejamen­to agrícola previsto neste artigo, as atividades agroindustriais, agrope­cuárias, pesqueira e florestais.

 

Comentário

Ou seja, pouco ou nada do que se po­de fazer no campo escapa à tirania esta­tal. O "planejamento agrícola" aqui alu­dido evidentemente será feito pelo Poder Público...

 

Texto aprovado

Art. 221, § 2° Serão compatibi­lizadas as ações de política agrícola e reforma agrária.

 

Comentário

"Compatibilizada" por quem? Ob­viamente pelo Estado. E como as "ações de ... reforma agrária" estão sob a dire­ção dele, tendem a dobrar-se a essas as "ações de política agrícola". O Estado, sempre o Estado a dominar.

 

Texto aprovado

Art. 222. A destinação de terras públicas e devolutas será compati­bilizada com a política agrícola e com o plano nacional de reforma agrária.

 

Comentário

Evidentemente também essa amplíssi­ma "compatibilização" ficará nas mãos do Estado, como nas mãos deste já estão o PNRA e a política agrícola...

 

Texto aprovado

Art. 222, § 1° A alienação ou concessão, a qualquer título, de ter­ras públicas com área superior a dois mil e quinhentos hectares a uma só pessoa física ou jurídica, ainda que por interposta pessoa, de­penderá de prévia aprovação do Congresso Nacional.

 

Comentário

Mais uma modalidade de interferên­cia estatal.

 

Texto aprovado

Art. 222, § 2° Excetuam-se do disposto no parágrafo anterior as alienações ou concessões de terras públicas para fins de reforma agrária.

 

Comentário

Obviamente. Pois tal já está na depen­dência do Executivo.

 

13. No fim de tudo, os "beneficiários" da Reforma Agrária não receberão o título de propriedade, mas uma simples concessão de uso

 

Texto aprovado

Art. 223. Os beneficiários da distribuição de imóveis rurais pela reforma agrária receberão títulos de domínio ou de concessão de uso, inegociáveis pelo prazo de dez anos.

 

Comentário

Segundo ficou excelentemente de­monstrado no livro Reforma Agrária: "terra prometida", favela rural ou "kolkhozes"? — Mistério que a TFP des­venda, do advogado e sócio da TFP, sr. Atílio Guilherme Faoro, toda a tendên­cia da Reforma Agrária brasileira consiste em tornar raras e como que inexistentes as concessões de título de propriedade aos "beneficiários" da Reforma Agrária. E fazer a estes meras concessões de uso. De sorte que a propriedade da terra tocará, toda ela, ao Estado. E, assim mesmo, o uso concedido aos "beneficiários" será temporário.

Em que condições essa concessão de uso poderá ser cassada? Evidentemente, tal também dependerá da lei. Ou seja, do Estado! Como sistema de pressão eleito­ral, nada melhor. Se a maioria dos "be­neficiários" de certa zona não derem vi­tória aos candidatos governistas, poderão ser cassados ao cabo de 10 anos.

O que é feito, então, da liberdade de voto dos brasileiros que trabalham no campo? ou dos proprietários que traba­lham no campo? Está destruída pelo pre­sente dispositivo.

Poder-se-á objetar, é verdade, que o voto é secreto. E que, portanto, o Poder Público não saberá em quem votou cada eleitor. Mas bastará que ele saiba que em determinada zona a maioria é contrária aos seus candidatos, para que fulmine com sua cólera, por meio da cassação da concessão de uso, os concessionários lo­calizados em terras aonde tal "desobe­diência" se tenha verificado.

 

14. Circunlóquios para favorecer o "amor livre”, característico das legislações comunistas

 

Texto aprovado

Art. 223, Parágrafo único. O tí­tulo de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil, nos termos e condições previstos em lei.

 

Comentário

Tantos circunlóquios não servem senão para dizer veladamente que o casa­mento é equiparado ao concubinato, pa­ra efeito de Reforma Agrária. O que é in­teiramente coerente com a legalização do "amor livre" e a abolição da proprieda­de privada, característica das legislações comunistas.

 

Texto aprovado

Art. 224. A lei regulará e limi­tará a aquisição ou o arrendamen­to de propriedade rural por pessoas físicas ou jurídicas estrangeiras e fi­xará os casos que dependerão de au­torização do Congresso Nacional.

 

Comentário

Mais atribuições para o Estado.

 

15. Usucapião-relâmpago, sempre em detrimento do proprietário

 

Texto aprovado

Art. 225. O trabalhador ou a trabalhadora não proprietário de imóvel rural ou urbano, que possua como seu, por cinco anos ininter­ruptos, sem oposição, área de terra não superior a cinqüenta hectares, tornando-a produtiva por seu traba­lho, ou de sua família, tendo nela sua moradia, adquirir-lhe-á a propriedade.

 

Comentário

Bem entendido, esta forma sumarís­sima de usucapião só se dará nas terras do Estado, na medida em que este últi­mo consinta em tal, por sua negligência. Pois, em princípio pelo menos, o Estado deve estar inteiramente aparelhado para notar e fazer cessar ocupações dessa natureza.

Assim, este artigo é, todo ele, volta­do contra os proprietários particulares. E estabelece uma espécie de usucapião re­lâmpago, em favor de astutos ocupantes, e em detrimento do proprietário.

 

16. Tão-só melhorias alcançadas pelo vencido, no tratado de capitulação e paz

Ao cabo desta análise, ficará o leitor com a melancólica certeza de que a "vi­tória da classe rural", tão galhardamen­te comemorada em seguida à votação combinada entre o Centrão e a UDR de um lado, e as esquerdas do outro, foi in­consistente para ela. Pois as próprias pa­lavras "propriedade produtiva" que cer­ta propaganda lhe apresentara como es­cudo inquebrantável dos proprietários di­ligentes e capazes, é sujeita a interpreta­ções e controvérsias sem fim.

Isto sem considerar ainda outros dis­positivos a figurarem na nova Constitui­ção, entretanto aceitos pelo Centrão e pe­la UDR, os quais limitam, corroem e mi­nam a propriedade agrícola.

Fica, pois, confirmada a tese da TFP de que as "conquistas" assim obtidas em favor da classe rural de nenhum modo podem ser vistas como vitória numa guer­ra, ou simplesmente a vitória de uma ba­talha, dentro da guerra. Mas tão-só co­mo algumas tantas melhorias alcançadas pelo vencido, na hora do tratado de ca­pitulação e paz.

 

17. "Guerra nas estrelas"

Esta é a verdade sem véus nem ma­quiagem que a TFP se julga obrigada a anunciar ao País, em um esforço ingente todo voltado, de forma inteiramente de­sinteressada, para a defesa da Pátria e da civilização cristã, contra a penetração crescente da influência comunista.

Neste fim de século e de milênio, nes­tes dias de confusão e de crise, em que ve­mos estertorar e caminhar para a morte todo um mundo entregue à falta de Fé e à degenerescência moral sem precedentes na História, constitui árduo e arriscado dever a proclamação da verdade, só da verdade, e de toda a verdade, abrangidas na noção genérica de verdade também aqueles conceitos simples e elementares que não eram outrora mero patrimônio espiritual dos doutos, mas que consti­tuíam a riqueza de alma até dos pobres e dos simples, a quem o Salvador votava dileção especial.

Conceitos que, eles também, não ra­ras vezes se obscureceram em nossos dias, não só no espírito simples dos pequenos, como no das elites. Ou melhor, no arre­medo de elites que existe neste mundo, no qual o que resta de elites verdadeiras está morto, ou agoniza emudecido e relegado a um canto pela propaganda.

Falar por que, então? Bradar por que? Expor-se por que a tantos ódios e a tantas vinganças que se erguerão pro­vavelmente em seguida a esta publicação, com o sinistro açoite das calúnias, dos sarcasmos e dos estrondos publicitários de estilo?

Nossa época conhece, surpresa, a ex­pressão "guerra nas estrelas", que em ou­tros tempos pareceria incompreensível.

Em sentido todo figurativo, o presente lance da TFP é, a seu modo, um lance de "guerra nas estrelas".

Muito para o alto deste pobre mun­do, que rola para o abismo, paira um pas­sado carregado de tradições e de valores cristãos, que jamais se conseguirá apagar. Paira uma História carregada de tragédias e de desditas, na qual inclusive não fal­tam os crimes. Mas pairam também as re­cordações de heroísmo sacral e épico, da ascensão moral e cultural sublimes, de soerguimento simultâneo de todos os ele­mentos do corpo social, do esplendor da instituição da família, de santas e castas alegrias e de abençoadas tranqüilidades que foram a glória e o tesouro da civili­zação cristã. Paira, por fim, e muito prin­cipalmente, no que tem de divino, de pe­rene e de reluzentes esplendores espiri­tuais, a Santa Igreja militante, irmã que­rida da Igreja penitente. Os membros desta aguardam, resignados e esperançosos, os dias em que para cada qual se abrirão as portas do Céu. E a Igreja gloriosa, que nos fastos e nas sacrais alegrias de sua fe­licidade sem fim vê Deus face a face, e com clamor incessante implora a vitória da Igreja militante.

Estas são as estrelas que constituem o firmamento de alma do verdadeiro ca­tólico. A mera criatura que no ápice dele se encontra, "pulchra ut luna, electa ut sol" ("formosa como a lua, brilhante co­mo o sol" — Cant. 6,9), é Maria Santís­sima, a quem São L. M. Grignion de Montfort qualificou de o "Paraíso de Deus" .

Quando tudo parece perdido na Ter­ra, ou quase tanto, para o católico nada ainda está perdido. Pois o caos humano não chega até essas "estrelas". E o cató­lico sabe que ele continua nas "estrelas" a sua guerra quando, do seio das angús­tias terrenas brada para aquela que é "Estrela do Mar", a "Estrela Matutina. E a Ela pede ajuda em favor da Cristan­dade oprimida.

Os termos de sua súplica são tão sim­ples, tão persuasivos, tão estimulantes que valem por um antecipado cântico de vitória. Nasceu ela dos lábios dulcíssimos do grande doutor, a um tempo guerreiro e melífluo ("Doctor Melifluus"), São Bernardo de Claraval, do século XII:

"Lembrai-Vos, ó piissima Virgem Maria, que nunca se ouviu dizer que al­gum daqueles que têm recorrido à vossa proteção, implorado a vossa assistência e reclamado o vosso socorro, fosse por Vós desamparado. Animado eu, pois, com igual confiança, a Vós, ó Virgem en­tre todas singular, como a Mãe recorro, de Vós me valho, e, gemendo sob o peso de meus pecados, me prostro a vossos pés. Não desprezeis as minhas súplicas, ó Mãe do Filho de Deus humanado, mas dignai-Vos de as ouvir propícia e de me alcançar o que Vos rogo. Amém".

* * *

Então, daqui por diante, será só "nas estrelas" a ação da TFP?

Jamais. Se imploramos o auxílio da Santíssima Virgem, é para que Ela nos ajude na ação a desenvolver nesta Terra. Ação "pão, pão; queijo, queijo", com os olhos postos, mais do que nunca, na rea­lidade terrena. E na observância exata da norma bem conhecida, segundo a qual cumpre confiar em Deus como se tudo de­pendesse dEle e não de nós. E agir como se tudo dependesse de nós, e não dEle.

São Paulo, 19 de maio de 1988
Plinio Corrêa de Oliveira
Presidente do Conselho Nacional