"Catolicismo", n° 170, fevereiro de 1965 (
www.catolicismo.com.br)Diálogo, coexistência e hecatombe termonuclear
"Catolicismo" publica hoje a tréplica do Sr. Zbigniew Czaikowski ao Prof. Plinio Corrêa de Oliveira e a nova carta aberta deste (ambas traduzidas do francês pelo nosso Serviço de Traduções).
Assim se vai desenvolvendo um debate entre esta fôlha e os periódicos poloneses do grupo Pax, "Kierunki" e "Zycie i Mysl", iniciada pelo Sr.Z. Czajkowski em carta aberta ao Prof. Plinio Corrêa de Oliveira datada de março de 1964, e por este último respondida através do nº 162 de "Catolicismo".
Nossos leitores estão sem dúvida lembrados de que esse debate repercutiu em Paris, tendo nele intervindo do lado do nosso colaborador o Sr. Henri Carton de "L’Homme Nouveau" e, do lado do jornalista polonês, o Sr. A. V. de "Témoignage Chrétien". E em carta ao Prof. Plinio Corrêa de Oliveira o Sr. Z. Czajkowski afirmou: "Nossa discussão suscitou grande interesse na Polônia, como testemunham entre outras as notícias e informações publicadas a respeito em outros periódicos poloneses, que alias tomam a mesma atitude que eu com referência às suas teses".
O Prof. Plinio Corrêa de Oliveira abre na presente carta mais uma frente de debates, tratando do momentoso problema da essência do diálogo em confronto com a discussão e a polêmica. Sustenta ele a legitimidade das três formas de interlocução, inclusive a polêmica, que espíritos "superecumênicos" costumam estigmatizar como contrária à caridade cristã.
Como, à vista de tão magnífico exemplo, afirmar a ilegitimidade intrínseca da polêmica? Pergunta à qual, segundo o seu costume inveterado, os "progressistas" respondem com um silêncio mal humorado. Esperemos que o Sr. Z. Czajkowski rompa esse silêncio na resposta que der ao Prof. Plinio Corrêa de Oliveira.
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Sr Zbigniew Czajkowki
Sou-lhe grato pela carta, pelos números 1/2, 7/8, e 9 de 1964, da revista "Zycie i Myst", pelo número de 25 de outubro de 1964 de "Kierunki", pela tradução francesa de sua "Carta aberta a S.E. o Cardeal Wyszynski" e de sua resposta a minha "Carta aberta para além cortina de ferro", e pelos outros documentos que o Sr. teve a gentileza de me enviar.
Peço que me desculpe por não lhe ter respondido há mais tempo. Tive que fazer uma série de conferências em Buenos Aires, e de volta precisei deter-me uns dias em Porto Alegre, no Estado do Rio Grande do Sul. Tudo isso acarretou um considerável atraso em minha correspondência, que lamento muito particularmente no que se refere à resposta que lhe devo. Pois o diálogo que estou mantendo com o Sr. me interessa deveras, e eu ficaria desolado se minha demora em responder pudesse causar-lhe uma impressão diferente.
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Passo ao assunto.
Permita-me começar por um pedido. Felicito-o por ter publicado, no número 9/64 de "Zycie i Myst" e no número de 25 de outubro de 1964 de "Kierunki", minha resposta ( ) às críticas contidas em sua primeira carta aberta ( ). De minha parte divulguei todos os tópicos principais desta através de "Catolicismo" ( ), jornal de larga penetração no meios católicos do Brasil. E estou publicando nele sua segunda carta aberta. Enviar-lhe-ei todo este material pelo correio.
Todavia, tudo bem considerado, não há paridade entre meu modo de proceder e o seu. Adotei como norma, de divulgar amplamente o que o Sr. vem escrevendo ao longo de nosso diálogo. Quanto ao Sr., falta-lhe publicar o essencial. Digo o essencial porque, afinal, como poderão os seus leitores acompanhar um diálogo concernente ao estudo "A liberdade da Igreja no Estado comunista", se eles não conhecem o texto desse estudo?
Dada a liberdade que o Sr. assegura que a imprensa religiosa desfruta sob o regime comunista na Polônia, cumpre-me afastar a hipótese de uma proibição policial de se publicar meu artigo.
A única razão que posso excogitar é o trabalho que lhe daria vertê-lo para o polonês, da tradução francesa que o Sr. tem em mãos. Por isso mesmo, providenciei uma tradução direta do original português para o polonês, feita por um compatriota seu, refugiado aqui. Não conhecendo o seu idioma, não estou em condições de conferir essa tradução, mas tenho motivos para crê-la boa.
Peço-lhe pois que a faça publicar integralmente em "Zycie i Myst" ou em "Kierunki".
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Desejo fazer-lhe algumas perguntas no que se refere ao fato de ter o Sr. querido estampar em "Kierunki" e em "Zycie i Myst" uma refutação de meu trabalho. Já lhe apresentei essas perguntas, se não me engano, na minha primeira carta aberta. Mas, não tendo recebido resposta, permito-me insistir.
Concebo que a matéria de que trata meu artigo tenha atraído sua atenção, que o Sr. tenha encontrado objeções a formular a respeito, e que tenha tido a atenção de as comunicar a mim por carta.
O que não entendo tão bem é que o Sr. tenha querido tornar pública sua refutação.
Terá sido simplesmente porque o problema estudado em meu pequeno ensaio interessa ao público de seu país? Gostaria muito, nesse caso, de conhecer as correntes de opinião que se formaram a propósito, e quais são as personalidades que se destacam de um e de outro lado. Ficarei grato se me enviar dados sobre isso.
A remessa, que me fez, do documento contendo a tomada de posição do Emmo. Cardeal Wyszynski em relação a "Pax" ( ), não me parece responder ao meu desejo de informações sobre esse ponto. Com efeito, não vejo que Sua eminência tenha considerado ali, de modo direto, a eventualidade de um choque entre a Igreja e o Estado comunista em razão única da incompatibilidade entre o regime da comunidade de bens e a moral católica.
Continuo meu questionário, que confio à sua boa acolhida.
Foi apenas o interesse do tema de que me ocupei, que lhe deu a idéia de me escrever uma carta aberta, ou será que o próprio texto de meu estudo penetrou na Polônia, repercutiu em certos meios, e em conseqüência inspirou ao Sr. o desejo de lhe opor uma refutação pública?
Nesse caso ainda, creio que o Sr. achará natural meu desejo de saber como é que "A liberdade da Igreja no Estado comunista" entrou e se difundi aí, e de que natureza terá sido a repercussão que ele possa ter causado.
Peço-lhe o obséquio de me informar - a mim e, por meu intermédio, ao público brasileiro - sobre todos esses pontos.
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Vejamos outra questão.
Não posso ocultar o quanto me surpreendi ao verificar que, especialmente em Sua carta ao Cardeal Wyszynski, o Sr. considera revogáveis, por sua própria natureza, os numerosos ensinamentos dos Papas - de Pio IX a João XXIII - contra o socialismo. O que o Sr. chama de êxito da socialização na Polônia, e a popularidade que, em conseqüência, o socialismo desfrutaria aí nas próprias fileiras católicas, parecem-lhe por isso mesmo legitimar a aceitação desse regime pelos católicos, sem nenhuma restrição nem "arrière pensée" de ordem doutrinária.
Se compreendi bem, o Sr. sustenta que por sua própria natureza a igreja não pode ser solidária com nenhum regime econômico ou social. Daí se poderia concluir, com grandíssima vantagem do Comunismo, que Ela não lhe pode ser contrária enquanto sistema coletivo de economia.
Compreendi bem? É bem esse o seu pensamento?
Mais. Os Papas sempre fundaram sobre dois princípios a autoridade que têm para aprovar a propriedade privada ( com função social, etc., é evidente ):
1 - a Igreja é juiz soberano em matéria de moral;
2 - os regimes econômicos e sociais estão sujeitos, enquanto tais, à moral de Jesus Cristo tanto quanto os indivíduos. Em vista disso, peço-lhe que diga:
• 1 - se o Sr. se considera livre - como católico - para contestar em princípio a autoridade dos Papas nessa matéria;
• 2 - se, no caso, o Sr. está em desacordo com a condenação que eles lançaram sobre o comunismo e o socialismo;
• 3 - se julga, pelo menos, que essa condenação pode ser revogada por outro Papa;
• 4 - se, a seu ver, pode ela ser revogada pela unanimidade dos fiéis.
É evidente que a resposta a essas questões deita seus reflexos sobre toda a extensão de nosso diálogo.
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Passo a uma outra ordem de idéias.
Parece-me necessário fazer-lhe uma proposta referente ao prosseguimento de nosso diálogo.
Vimo-nos ocupando, até aqui, de duas espécies de questões. Umas, embora de interesse incontestável, são, em última análise, secundárias no conjunto de nosso diálogo. Ademais, pode-se discutir indefinidamente sobre elas. Por exemplo, no que concerne às condições que o governo polonês criou para a Igreja, seu depoimento não concorda com o do Emmo. Cardeal Wyszynski, que se pode ler no documento que o Sr. me enviou. Quanto à cortina de ferro que cerca o mundo comunista, inclusive o seu nobre país, o Sr. a diz inexistente. Quantos testemunhos não se poderiam apresentar em sentido contrário! É bem evidente que perderíamos nosso tempo e fatigaríamos inutilmente os leitores se nos empenhássemos a não mais acabar, em discutir problemas do gênero.
Por outro lado, de quão mais alto alcance são as questões essenciais sobre que dialogamos! Parece-me indispensável enunciá-las, para conferir maior clareza a nosso debate. Ei-las:
1. A questão da essência do diálogo e da coexistência.
2. A questão da liceidade - em princípio - da coexistência entre católicos e comunistas, sob um regime comunista, considerada em duas eventualidades distintas:
a) a da solidariedade dos católicos com o regime da comunidade de bens;
b) a do silêncio deles em relação a esse regime.
Em ambas as eventualidades, o Estado asseguraria à Igreja a liberdade de culto e certas outras liberdades referentes aos seminários, às escolas e às obras católicas, tudo sob a condição de que Ela e os fiéis se abstivessem de combater a comunidade de bens.
3. A questão da liceidade hipotética da coexistência nas duas eventualidades aludidas. Em outras palavras, se a coexistência for reconhecida como contrária em tese, nos dois casos referidos, à moral católica, não se tornaria ela lícita na hipótese de não se poder afastar o perigo de uma guerra termonuclear senão mediante a eliminação de toda e qualquer oposição católica à comunidade de bens?
Sua última carta aberta, ao que me parece, revela uma certa tendência a não ver em nosso diálogo senão a terceira questão. Quanto a mim, quero precisar que a terceira questão supõe a segunda, e que por outro lado a segunda conduz forçosamente, hoje em dia, à terceira. Elas se distinguem uma da outra. Mas nenhuma das duas pode ser tratada como se a outra não existisse.
Proponho-lhe, pois, escoimarmos nosso diálogo de questões secundárias e restringirmo-nos a estes três temas fundamentais.
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Ocupemo-nos do primeiro deles. O Sr. exprimiu a esperança que deposita na virtude do diálogo. De minha parte desejo continuar dialogando com o Sr., mas devo dizer-lhe que seu modo de conceber o diálogo é diferente do meu. Em outras palavras, o Sr. dialoga com pressupostos que se deixam entrever em sua carta, e dos quais eu não partilho. E, dado que o conceito de diálogo é inseparável do de coexistência, meu conceito de diálogo me leva também a ter da coexistência uma idéia que não é a sua.
"Coexistência" e "diálogo" são assuntos novos, que enriquecem nossa discussão.
O mérito é seu, pois foi o Sr. que, em sua última carta aberta, abordou mais exatamente estas ditas questões, ou antes, esta dupla questão.
Tal é a importância dela, que a inscrevi em primeiro lugar na lista de nossos temas essenciais. Parece-me, aliás, que essa é a posição que lhe convém no encadeamento lógico das questões de que nos ocupamos.
Pergunto se o Sr. está de acordo com tudo isto.
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Mas o que é, afinal, um dialogo?
Procuremos entender-nos nesse particular.
Diálogo, sabemo-lo bem, é uma conversa entre duas pessoas. No uso corrente, a palavra se opõe, de certa maneira, a discussão e a polêmica. De fato, o sentido de discussão e de polêmica supõe sempre um desacordo entre as partes e uma troca de argumentos tendo em vista estabelecer qual das duas está na verdade e qual no erro. Ora, diálogo, no uso corrente tradicional, não contém a idéia de um desacordo entre partes. O diálogo não é um esforço para convencer alguém de seu erro. É essencialmente um intercambio de informações, de impressões e pontos de vista, cujo tom é inteiramente amistoso.
Quando uma discussão se faz, também ela, nesse tom amistoso, chama-se igualmente diálogo, mas isto no sentido analógico do termo.
Há, pois, dialogo stricto sensu e diálogo lato sensu.
Tudo isto é muito sabido, mas era preciso lembrá-lo para uso do público polonês, francês e brasileiro, diante do qual estamos discutindo de um modo tão sereno, que temos o direito de dizer que "dialogamos".
Esta pluralidade de empregos da palavra "diálogo" prestou-se, de maneira curiosa, a um deslizar de significado, aliás muito vantajoso para a causa comunista.
Certos meios não comunistas, ou que pelo menos se pretendem tais, mostram-se muito impressionados com os inconvenientes da discussão e sobretudo da polêmica. Segundo eles, daí não decorreria senão um mal, isto é, o agravamento das incompatibilidades recíprocas. Portanto, entre representantes de ideologias diferentes, o único modo de se entender seria o diálogo.
Ora, esta proscrição da discussão e da polêmica é exagerada. Sem dúvida, a má polêmica e a má discussão podem bem conduzir a maus resultados. Isto não prova, de modo nenhum, que a discussão e a polêmica sejam más em si, e que, sendo bem conduzidas, não possam chegar a resultados excelentes.
Não basta dizer que a discussão e a polêmica são legítimas, e que se pode praticá-las com proveito. Há mais: em bom número de situações elas são indispensáveis, e é a própria natureza das coisas que as pede.
Com efeito, os desacordos de opinião são acompanhados, na maioria das vezes, de um apego de cada parte à sua própria opinião. Este apego se chama virtude quando baseado na boa fé e tendo a verdade como objeto. Chama-se vício se se baseia sobre a má fé e tem por objeto o erro. Pode, bem entendido, haver também um apego de boa fé a certos erros. Mas quanto isto é raro, infelizmente, e como é fácil que o erro, mesmo quando aceito de boa fé, dê lugar a um apego vicioso, e acabe por matar a própria boa fé!
Ora, a má fé, seja ela inteiramente consciente ou não, provoca, com toda a justiça, a indignação do homem virtuoso. E se é verdade que em certas ocasiões é melhor não manifestar esta indignação, a fim de atrair a outra parte pela doçura, em outros casas não é senão pela indignação que a ma fé se deixa desarmar.
Isto explica porque Jesus Cristo foi, para com os fautores do erro ou os pecadores, ora de uma doçura comovedora, ora de uma severidade fulminante. Isto explica igualmente que, em face da erro ou do mal, a Igreja tenha contado, em todos os séculos, com apóstolos de uma doçura inexaurível e também com polemistas admiráveis.
Portanto, a proscrição da polêmica é antinatural, contrária aos direitos da verdade, do bem, e, ainda, aos interesses de numerosas almas mergulhadas no erro e no mal.
Mas, dirá o Sr., não se trata de proscrever toda discussão, senão somente os tipos de discussão que não podem ser compreendidos no termo "diálogo" lato sensu. Esta objeção não modifica em nada o que vem de ser dito. O calor da discussão, da polêmica até, pode ser legítimo e indispensável.
Em princípio, o diálogo lato sensu deve ser preferido às outras formas de discussão, tal como a discussão deve, ela mesma, ser preferida à polêmica. É precisamente neste sentido que Paulo VI na Encíclica "Ecclesiam Suam" insiste tão especialmente sobre a oportunidade particular do colóquio, nas condições atuais. Para qualquer cristão que o seja verdadeiramente de alma e coração, a doçura é sempre preferível à severidade, e a paz à guerra. No que elas têm de militante, as formas calorosas de discussão e a polêmica não devem ser empregadas a não ser quando o diálogo lato sensu se mostra ineficaz. Disto não se conclui, de modo nenhum, que os filhos da Igreja militante devam renunciar a empregar a discussão "militante" e a polêmica quando uma ou outra for exigida pela natureza mesma das coisas.
Uma leitura atenta da "Ecclesiam Suam", aliás, prova facilmente que o Santo Padre não teve absolutamente o desejo de proscrever a discussão militante ou a polêmica, não obstante proponha aos fiéis que usem sobretudo o colóquio.
Isto me conduz a uma outra observação. No texto latino da "Ecclesiam Suam", o Papa emprega a palavra "colloquium" e evita dizer "dialogus". Nada há de surpreendente nisto. O termo "diálogo" tem dado ocasião a um perigoso equívoco que me cabe agora descrever.
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Porque em certos meios pretendeu-se proscrever toda e qualquer discussão, chegou-se, sem perceber, a empregar a palavra "diálogo", não mais no sentido de uma discussão muito cordial, mas unicamente no de uma simples troca de pontos de visto, de impressões ou de informações.
Assim, as relações entre pessoas que professam sistemas ideológicos opostos restringiram-se a um estilo que está em contradição com o fundo mesmo da realidade. Cada parte, no diálogo stricto sensu, apresenta seus argumentos, e a outra parte os combate, por sua vez, com outros argumentos. Mas, em essência, esta troca de argumentos não é uma discussão, em nenhum sentido do termo. Nenhuma das partes se aplica a persuadir a outra e a trazê-la para o seu próprio campo ideológico.
Não há, propriamente, vitória, derrota, ou luta doutrinária, nem mesmo sob as numerosas formas perfeitamente cordiais que esta pode revestir. Há apenas a afirmação de uma tese e de uma antítese. Afirmação dolorosa por vezes, prolongada, mas quão paciente e cortês! Da fricção destas afirmações nascerá, pouco a pouco, um processo de elucidação ao longo do qual cada parte precisará melhor sua própria posição, despojando—o das escórias acidentais que lhe velavam a expressão plena. Mas, ó alegria, no termo final deste processo se patenteia que a tese e a antítese, clarificadas e simplificadas, não são mais do que uma e mesma coisa. A síntese, que estava em gestação na tese e na antítese, nasce enfim para a luz do dia.
Não há, pois - tal como dizíamos - verdadeira discussão, nem vitória, nem derrota. O diálogo não é, essencialmente, senão um "ludus". Eis o conceito estranho que se dá ao termo "diálogo" em meios "superecumênicos" e outros.
Desse modo, como o Sr. vê, o vocábulo em questão foi "noyauté", isto é, substituiu-se ao seu conteúdo original um conteúdo hegeliano. Para os entusiastas deste gênero do diálogo, não há mais verdade absoluta, nem erro. Deslizando sobre a palavra "diálogo", na maioria das vezes sem se dar conta disso, eles imergem no relativismo evolucionista de Hegel.
De Hegel sim, o mestre de Marx. Não é difícil perceber quanto este deslizar é proveitoso para a doutrina marxista.
Assim, concebe-se facilmente que, para os marxistas, os católicos devem ser divididos, nesse particular, em duas categorias: 1 – os que não "deslizaram", aqueles que têm fé numa doutrina historicamente revelada, objetiva e absolutamente verdadeira, e que, pois, rejeitam o relativismo hegliano; 2 – os outros, que "deslizaram", e para os quais a doutrina católica e a doutrina marxista não são, uma em face da outra, mais do que constelações de teses e de antíteses, contendo cada uma, ao mesmo tempo que as escórias das formulações impuras, a síntese que através delas forceja dialeticamente por vir à luz. Os primeiros são inimigos irredutíveis, em toda a extensão do termo. Contra eles não se emprega a discussão nem a polêmica, mas o campo de concentração, a prisão ou o pelotão de fuzilamento. Os outros são, no fundo, colaboradores, que aceitam a base filosófica do marxismo – isto é, a doutrina relativista – que esgrimindo na aparência contra este, mantêm com ele o jogo absolutamente pacífico do diálogo, e o ajudam, por meio da fricção, a destilar na tese e na antítese de hoje a síntese de amanhã.
Eis, pois, aonde pode conduzir o abuso, habilmente imaginado por uns, ingenuamente aceito por outros, da palavra "diálogo".
Confesso que as passagens de sua última carta referentes ao nosso diálogo, deixando entrever com uma certa clareza o duplo emprego não-hegeliano de tal vocábulo, me ajudaram a deslindar todo um conjunto de impressões confusas que este assunto produzira em mim como em muitas outras pessoas.
Mas, estabelecido assim o sentido último e inteiramente hegeliano de diálogo, a lealdade que lhe devo, bem como aos nossos leitores, me obriga a dizer-lhe que aceito de todo o coração o diálogo com o Sr., mas de modo algum na acepção hegeliana do termo.
Nosso colóquio – prefiro expressar-me como a "Ecclesiam Suam" é uma verdadeira e autêntica discussão, muito serena até agora, mas que em certos momentos deve poder-se transformar, muito legitimamente, em discussão calorosa ou em polêmica, sem que por isto entendamos, nem que ela degenera, nem que tende para o fim.
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Quanto à segunda das questões essenciais que formulei – a da liceidade, em princípio, da coexistência entre católicos e comunistas, sob um regime comunista ( solidarizando-se os primeiros com o regime da comunidade de bens, ou silenciando a respeito ) – nada tenho a acrescentar ao que escrevi em meu estudo sobre "A liberdade da Igreja no Estado comunista". Reporto-me especialmente à edição ampliada ( ), na qual considerei de modo mais pormenorizado a matéria.
Que posso eu dizer aqui? Pouca coisa. Hesito em enunciá-la, porque me seria penoso melindrá-lo.
Não encontrei em suas cartas nenhuma tentativa de refutação expressa da tese da iliceidade de uma coexistência entre a Igreja e o regime comunista. A questão não parece atraí-lo. O Sr. me censura por ter entrado nela. O Sr. qualifica de prematura a discussão a propósito.
Além disso, lança sobre os meus ombros a responsabilidade de contribuir com isso para uma guerra que pode facilmente conduzir a uma hecatombe termonuclear.
Confesso que não compreendo.
Por que, permita-me insistir, não toma o Sr. posição diante da minha tese de que não é lícito aos católicos aceitar um regime político e social que se baseia sobre a comunidade de bens? Não é esse um dos pontos mais essenciais do meu estudo que o Sr. quis atacar em "Zycie i Mysl" e em "Kierunki"? Por que, por outro lado, me acusa de abordar prematuramente o assunto? Pode ser prematuro afirmar a verdade e destruir o erro? Receio que sua censura provenha de uma concepção hegeliana de diálogo. Segundo esta concepção, é lógico que um diálogo pode ser prematuro se as condições psicológicas, que ele supõe da parte dos que dialogam e do público, não existem ainda. De fato, é inteiramente natural que os "dialogadores" devam adaptar-se um ao outro para que o diálogo possa estabelecer-se sem risco de degenerar em discussão ou polêmica. Quanto à acusação relativa à guerra, cabe melhor responder no tópico seguinte.
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Passemos à terceira questão: a da liceidade da coexistência entre católicos e comunistas, sob um regime comunista - solidarizando-se aqueles com o regime da comunidade de bens, ou silenciando a respeito - não mais em tese, mas na hipótese de ser esse o único meio de evitar a guerra atômica.
Começo por observar que, segundo o Sr., o mundo está colocado, numa alternativa cruel: se os anticomunistas não aceitarem um regime político-social estabelecido sobre a comunidade de bens, corremos todos para a destruição termonuclear. Qual dos dois perigos deve ser aceito como menos mau? Antes de fazer esta terrível escolha, o Sr. compreenderá que se queira examinar com o maior cuidado se ela é inevitável. Ora, desta preliminar o Sr. pouco se ocupa. Permita que me ocupe eu.
Não vejo, de modo algum, que a União Soviética esteja colocando o mundo na alternativa que o Sr. figura. No "Pravda" de 6 de janeiro de 1965, por exemplo, lê-se que a URSS considera a guerra termonuclear um mal tão funesto ao próprio vencedor, que ela prefere consagrar-se à conquista ideológica de toda a terra pela evolução econômica e cultural na coexistência pacífica, e pela luta doutrinária na coexistência.
Os próprios soviéticos reputam, pois, inteiramente normal que o conflito ideológico se desenvolva em toda a sua amplitude sem causar dano à paz. Por que, então, acha o Sr. que, se os católicos da Polônia ou de outros lugares lutarem, no plano doutrinário, contra a comunidade de bens, exporão com isso o mundo ao perigo de uma guerra?
Há a China, é verdade. Mas a própria China se afirma favorável à coexistência. E mesmo que não o fosse, crê o Sr. seriamente que, querendo os Estados Unidos e a União Soviética a coexistência pacífica, a China disponha de meios para arredá-los disso?
O Sr. dirá, talvez, que as correntes favoráveis na Rússia à coexistência pacífica podem, de um momento para outro, ser excluídas do poder pelas correntes belicistas. Seria preciso então que o Sr. provasse a existência e a força dessas correntes belicistas. Feita a prova, estaríamos em risco de ser postos eventualmente na obrigação de fazer a escolha a que o Sr. se sente compelido.
Mas, do fato de que esta escolha possa tornar-se necessária em condições hipotéticas, não resulta que se esteja obrigado a fazê-la agora.
Em todo caso, se a necessidade de escolher vier a se apresentar, não lhe escondo que a minha escolha está feita.
Na edição ampliada de "A liberdade da Igreja no Estado comunista", cuja tradução polonesa lhe envio em anexo, afirmo que:
"Chegando ao fim do presente estudo, muito leitor perguntará de si para si: como evitar então a hecatombe nuclear? É bem claro que, se os católicos se firmarem no princípio da propriedade privada, as potências comunistas, desesperançadas de impor ao mundo o seu sistema por via pacífica, recorrerão à guerra. À vista disto, diga-se o que se disser sob o ângulo doutrinário, não será preferível ceder?
Ó homens de pouca fé! teríamos vontade de responder, por que duvidais (cf. Mat. 8, 26 )?
As guerras têm como principal causa os pecados das nações. Pois estas - diz Santo Agostinho - não podendo ser recompensadas nem castigadas na outra vida, recebem neste mundo mesmo o prêmio de suas boas ações e a punição de seus crimes.
Assim, se queremos evitar as guerras e as hecatombes, combatamo-las em suas causas. A corrupção das idéias e dos costumes, a impiedade oficial dos Estados leigos, a oposição cada vez mais freqüente entre as leis positivas e a Lei de Deus, isto sim, é que nos expõe à cólera e ao castigo do Criador, e nos conduz mais do que tudo, à guerra.
Se, para evitá-la, cometessem as nações do Ocidente um pecado maior do que os atuais, como seria a aceitação de existir sob o jugo comunista em condições que a moral católica reprova, desafiariam desse modo a ira de Deus e chamariam sobre si os efeitos de sua cólera.
E isto tanto mais quanto a concessão que hoje se fizesse com referência à abolição da propriedade privada, amanhã teria de ser repetida com relação à abolição da família e assim por diante. Pois assim procede com inexorável intransigência a tática das imposições sucessivas, inerente ao espírito do comunismo internacional. Desse modo, até que torpeza, até que abismo, até que apostasia não rolaríamos?
A existência humana, sem instituições necessárias como a propriedade e a família, não vale a pena de ser vivida. Sacrificar uma ou outra, para evitar a catástrofe, não importa em "propter vitam vivendi perdere causas"? Para que viver num mundo transformado em uma imensa senzala de escravos atirados a uma promiscuidade animal?
Em face da opção dramática da hora presente, que este artigo procura pôr em evidência, não raciocinemos como ateus, que ponderam os prós e os contras como se Deus não existisse.
Um ato supremo e heróico de fidelidade, nesta hora, poderia apagar diante de Deus uma multidão de pecados, inclinando-O a afastar o cataclismo que se aproxima.
Um ato de fidelidade heróica... um ato de inteira e heróica confiança no Coração d'Aquele que disse: "Aprendei de Mim, porque sou manso e humilde de Coração, e encontrareis descanso para as vossas almas" ( Mat. 11, 29 ).
Sim, confiemos em Deus. Confiemos na sua Misericórdia, cujo canal é o Coração Imaculado de Maria".
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Peço desculpas por me ter alongado tanto. Veja na extensão desta carta o interesse que tenho por nosso diálogo, e o desejo de consagrar-me a ele com toda a lealdade, e, pois, de exprimir meu pensamento com as nuances e os pormenores que possam concorrer para torná-lo tão claro quanto possível.
Escrevo-lhe nos primeiros dias do ano. Não quero deixar de lhe desejar um feliz 1965. Feliz, digo, da autêntica felicidade que consiste em conhecer plenamente a verdade, na submissão efetiva à Hierarquia católica. Também me sentirei feliz se estas poucas reflexões que lhe envio puderem concorrer para esse fim.
O conteúdo destes votos não parecerá talvez muito elegante para as mentalidades visceralmente dialéticas, para as quais a verdade é relativa. Não tendo eu tal mentalidade, não aspiro a outra coisa senão a servir humildemente à Verdade absoluta, a servi-la por toda a parte, e, se for o caso, a lutar por ela até o último alento. E não posso formular para o meu próximo votos diferentes.
Acrescento aqui um outro voto. Que a Virgem de Czestochowa Se digne libertar a sua nobre e gloriosa pátria do jugo sob o qual ela geme.
In Jesu et Maria
Plinio Corrêa de Oliveira
São Paulo, janeiro de 1965.