Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Ainda o mistério de iniquidade

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 16 de novembro de 1947, N. 797, pag. 5 e 7

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Uma apreciação superficial dos fatos nos apresenta como simples consequência da debilidade liberal o funesto guarda-chuva de Chamberlain, que tão inestimáveis serviços prestou à causa do totalitarismo da direita, e a atual tática de recuos e concessões da ONU, que não menores benefícios está proporcionando à expansão do totalitarismo esquerdista. O regime liberal já estaria superado e decadente, não resistindo aos embates da nova ordem socialista. A política dos chamados burgueses progressistas seria, assim, um mero salve-se quem puder do capitalismo liberal.

Entretanto, se procedermos a uma análise mais aprofundada do fenômeno liberal, veremos que tais atitudes aparentemente suicidas em geral não decorrem da decrepitude de uma corrente política em face de ideologias mais modernas e com soluções mais sedutoras para os problemas que empolgam a humanidade. Tais atitudes se explicam pelo fato de se tratar em ambas as correntes, tanto a liberal quanto a socialista, de comparsas do mesmo “mistério de iniquidade que vai amadurecendo”.

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É evidente que na grande massa dos burgueses liberais e dos socialistas revolucionários existem muitos ingênuos que se acham sinceramente persuadidos da oposição entre as duas correntes. Este grande equívoco não destrói, porém, a verdade histórica e a intenção dos verdadeiros mentores da atual subversão social. Eis porque afirmamos que o liberalismo nada é senão uma etapa inicial, preparatória, que tem por missão preparar as veredas para o socialismo, não somente de modo indireto, mas também de modo direto, tanto pelo seu fundo ideológico, quanto pelas suas atitudes práticas, como passaremos a demonstrar.

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Segundo as idéias liberais, o Estado, representação e personificação de todas as vontades individuais, recebe a soberania de todos. A primeira fonte de todos os direitos seriam as vontades individuais; ora, o Estado é o fruto dessas vontades; nele, elas vivem e reinam; elas se confundem com ele. Aí está porque “o Estado, origem e fonte de todos os direitos, goza de um direito que não é circunscrito por nenhum limite” (Proposição liberal e totalitária condenada por Pio IX no Syllabus sob n. 39).

Os sofistas liberais que sustentavam esse sistema, hoje consagrado nos Estados totalitários, não recuavam diante das consequências. “As crianças pertencem ao Estado, antes de pertencer aos pais” (tese liberal denunciada à Santa Sé e condenada em 1862). O Estado tem, portanto, um poder absoluto e ilimitado na educação da infância e da juventude.

Mais ainda: “As propriedades pertencem ao Estado antes de pertencer aos cidadãos” (tese liberal e totalitária denunciada à Santa Sé e condenada em 1862). Por conseguinte, é a lei civil que cria os direitos de propriedade e de hereditariedade, que estabelece o direito de testar, de alienar por venda ou doação. “A propriedade não se fundamenta no direito natural e das gentes, mas unicamente no direito civil” (tese totalitária e liberal condenada pela Santa Sé em 1862).

Por conseguinte, ainda, a lei poderá legitimamente suprimir o regime da propriedade individual, e substituí-lo pelo da comunidade de bens. Eis como os princípios liberais levam direta e logicamente ao socialismo totalitário.

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Mais ainda. Segundo a escola liberal, o Estado tem o direito de regulamentar soberanamente tudo o que concerne à família, e especialmente de estatuir sobre a união do homem e da mulher (tese condenada pela Santa Sé em 1862).

Ele pode, se julgar útil, prescrever o casamento uno e indissolúvel, mas em geral prefere permitir o divórcio. Pela mesma razão, pode também estabelecer “uniões vagas”, o “amor livre” e introduzir assim o regime pagão da comunidade de mulheres. Vemos, assim, que quanto à família, o Estado liberal contem em seus princípios toda a peçonha do totalitarismo. Foi para combater essa intromissão totalitária do Estado liberal na família, que Pio IX condenou pelo Syllabus as seguintes proposições:

“Pela forma do contrato puramente civil, pode existir um verdadeiro casamento entre cristãos” (Prop. 73) e “A Igreja não tem o poder de formular impedimentos dirimentes ao casamento, mas esse poder pertence à autoridade secular” (Prop. 68).

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Ainda quanto à família. Um dos princípios fundamentais do liberalismo é o monopólio estatal do ensino exercido através da escola leiga. Contra essas pretensões totalitárias do Estado liberal, Pio IX levantou sua voz, condenando as seguintes proposições:

“Toda direção das escolas públicas nas quais a juventude de um Estado cristão é educada, se se excetuam numa certa medida os seminários episcopais, pode e deve ser atribuída à autoridade civil” (Prop. 25).

“Mesmo nos seminários dos clérigos, o método a seguir nos estudos se acha submetido à autoridade civil” (Prop. 16).

“Os católicos podem aprovar um sistema de educação que esteja fora da Fé católica e da autoridade da Igreja, e que tenha por fim único ou pelo menos por fim principal, o conhecimento das coisas puramente naturais e as vantagens da vida social sobre a terra” (Prop. 48). Não é este o programa das escolas “sem Deus” comunistas e da juventude hitlerista? Mais uma prova das raízes profundamente liberais do totalitarismo.

Os João Pinheiro e os Gambetta, ferrenhos adversários dos direitos educacionais da Igreja, não passaram de antecipações grotescas dos Hitlers e dos Stalins.

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Dizia Pio IX, mergulhado na mais profunda tristeza: “Os homens da Revolução arrebataram meus Estados; não é o que mais me aflige. Despojam os mosteiros e as igrejas, fazem guerra às ordens religiosas; não é isto que despedaça minha alma. Eles, porém, me roubam a juventude católica, arrebatam de Jesus Cristo as almas das crianças: eis o que me golpeia o coração”.

Comparemos essa queixa amarga contra os corifeus da escola leiga liberal com as palavras não menos candentes de Pio XI na “Mit Brennender Sorge” contra a obra educacional hitlerista: “A Igreja não pode esperar para começar a gemer e lastimar-se que os altares estejam devastados, que mãos sacrílegas tenham incendiado os templos. Se se tenta, por uma educação inimiga de Cristo, profanar este tabernáculo que é a alma da criança consagrada pelo Batismo, deste templo vivo de Deus, se se quer arrancar a lâmpada eterna da Fé em Cristo para substituí-la pela luz enganadora de uma falsificação da fé, que nada mais tem a ver com a Religião da Cruz; então a violação espiritual do templo está próxima”. Não se pode trocar um trecho pelo outro? Como pretender, portanto, que o liberalismo se opõe ao comunismo e ao nazismo?

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Com relação à liberdade e às prerrogativas da Igreja, quais são os princípios liberais?

“A imunidade da Igreja e das pessoas eclesiásticas tira sua origem do direito civil” (Prop. 30 condenada pelo Syllabus).

“Pertence ao poder civil definir quais são os direitos da Igreja e traçar os limites dentro dos quais ela pode exercê-los” (Prop. 19 condenada pelo Syllabus).

“Não é permitido aos Bispos publicar as próprias Pastorais sem a permissão do governo” (Prop. 28 condenada pelo Syllabus).

Mussolini e Hitler, proibindo a publicação de Encíclicas e de Pastorais não fizeram mais nada que cumprir à risca um princípio liberal.

“Torna-se absolutamente necessário abolir o foro eclesiástico para os processos temporais dos clérigos, mesmo sem consultar a Santa Sé e sem levar em conta suas reclamações” (Prop. 31 condenada pelo Syllabus). A prisão sumária de Sacerdotes nos Estados liberais é uma medida totalitária que difere do modo de proceder do nazismo e do comunismo apenas porque nestes dois regimes tal atentado é praticado em maior escala.

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Quanto às propriedades eclesiásticas, os princípios liberais são a quintessência da doutrina totalitária.

Assim é que o liberalismo prega que “a Igreja não tem o direito natural e legítimo de adquirir e de possuir” (Prop. 26 condenada pelo Syllabus).

Os institutos religiosos, dizem os liberais, dependem da Igreja como ordens religiosas, e do Estado como corporações civis. À primeira pertence o direito de os aprovar como associações sobrenaturais; ao segundo como sociedades naturais e civis. Sua existência religiosa depende, portanto, do poder espiritual, sua existência legal, do poder secular.

Baseados nestes princípios, alguns governos liberais se apossaram dos bens dos mosteiros e casas religiosas cuja existência legal não foi reconhecida.

“Praza ao céu, dizia Pio IX, que em todas as nações, por toda a terra, os bens consagrados a Deus e à Sua Igreja permanecessem sempre invioláveis, e que os homens o cercassem do respeito que merecem! Não teríamos a deplorar os males imensos que a sacrílega usurpação desses bens fez derivar sobre a própria sociedade civil especialmente os progressos temporais do socialismo e do comunismo” (Alocução consistorial Quibus luctuosissimis a 5 de setembro de 1854).

Atacar a propriedade eclesiástica é abalar todo o direito de propriedade. Não somente Pio IX, mas outros Papas do século XIX dirigiram a esse respeito severas advertências aos governos liberais espoliadores. E, como disse o Pontífice da Ação Católica, pelo fato da voz da Igreja não ter sido ouvida, é que hoje nos encontramos diante da ameaça do jugo socialista.

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Certos legistas liberais, embuçados em um vago cristianismo, sustentaram no século passado que os Estados podiam estabelecer igrejas nacionais, como a igreja anglicana, a igreja russa e a igrejola do ex-Bispo de Maura. Daí a seguinte proposição condenada por Pio IX: “Podem-se instituir igrejas nacionais subtraídas à autoridade do Pontífice Romano e plenamente separadas dele” (Prop. 37 do Syllabus). Compare-se essa tentativa liberal de enfraquecer a autoridade da Santa Sé com a tática nazista denunciada por Pio XI: “Se homens que não estão unidos na Fé em Cristo vos apresentam a sedutora imagem de uma igreja nacional alemã, sabei que não é outra coisa senão a negação da única Igreja de Cristo e evidente traição desta missão de evangelização universal à qual só uma Igreja mundial pode bastar e adaptar-se” (Mit Brennender Sorge).

Liberais, nazistas e comunistas, portanto, se unem para dar o nome de “ultramontanos” aos católicos fiéis a Roma.

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Os liberais são inimigos sistemáticos de uma hierarquia social reconhecida e protegida pelo Estado. Todo privilégio lhes parece um favor arbitrário feito a um particular ou a uma casta, e uma injustiça feita aos outros cidadãos e às outras classes da nação.

A nação, para eles, se compõe apenas de indivíduos isolados, iguais em direito e em deveres. Neste sistema, todos os cidadãos são grãos de poeira; o Estado é um gigante que os calca aos pés. Não há classes nem personagens influentes, cujo espírito tradicional mantenha inquebrantáveis as instituições públicas, e cuja autoridade tempere o poder soberano. De uma parte, o Estado absorve todos os poderes; de outra parte, depende dos caprichos da multidão. Centralizado, tudo pode contra os cidadãos isolados; ao mesmo tempo é impotente contra as paixões populares.

Pouco a pouco a sociedade é esmagada pelo despotismo ou se dissolve na anarquia”.

Eis o efeito de nivelamento de todas as classes e do estabelecimento de um direito igualitário para todos os cidadãos: a anarquia e a mediocridade precursoras do advento da tirania totalitária.

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Liberalismo e socialismo são, portanto, duas fases do mesmo mistério de iniquidade. Não será, portanto, uma sociedade baseada sobre os princípios liberais que nos livrará da servidão socialista, nem a apregoada “nova ordem” socialista que nos resgatará da opressão do capitalismo liberal. Somente a Verdade nos libertará. E enquanto formos fiéis ao Redentor do mundo, nada teremos a temer da “grande tribulação” que ameaça baixar sobre a terra. Esteja a nossa confiança em Deus e não em concessões feitas aos conjurados desta trama infernal.


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