Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Pio XII e as relações entre capital e trabalho

 

 

 

 

 

 

Legionário, 26 de outubro de 1947, N. 794, pag. 5-6

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Quando fazemos alusão à desordem que lavra atualmente nos espíritos, ocupam lugar secundário em nossas cogitações os não católicos. Fora das fileiras do catolicismo todas as loucuras, contradições, absurdos são compreensíveis. Há uma lógica interna no erro, que faz desencadear toda essa avalanche de disparates. A má arvore não pode produzir bons frutos.

O que, porém, nos surpreende é que haja católicos tão desorientados ao ponto de quererem retirar maus frutos da árvore que é a doutrina social da Igreja. E procurem deduzir da severa crítica e condenação dos males da atual ordem econômica e social, feita pelos documentos pontifícios, a incrível conclusão de que o socialismo se acha mais próximo da Igreja que o capitalismo.

Carlos de Laet, nas páginas que escreveu durante seu exílio em Minas, nos descreve a cena pitoresca do preparo do barro nas olarias primitivas do interior do Brasil: os rústicos aparelhos eram acionados por um burro e faziam lembrar ao terrível redator do “Microcosmo” os sofistas girando monotonamente em torno de seus erros...

Do mesmo modo, não passa de grosseiro sofisma, indigno dos largos voos da inteligência católica, essa substituição dos males do capitalismo liberal pelos do... capitalismo socialista. Pois no socialismo continua o que de mais odioso existe no atual estado de coisas, que é o capital usado como arma de opressão. Uma das diferenças consiste em que atualmente prevalece o capitalismo privado e o regime socialista exerce o supercapitalismo de Estado, pela passagem para a burocracia pública dos meios de produção.

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Declara o Santo Padre Pio XI na Encíclica “Urbi Arcano” que incorrem no erro do modernismo moral, jurídico e social, não menos condenável que o modernismo dogmático, os que falam, escrevem e, o que é pior, agem como se não mais estivessem em vigor as prescrições solenemente e invariavelmente proclamadas e inculcadas em tantos documentos pontifícios, principalmente por Leão XIII, Pio X e Bento XV, “sobre a autoridade social, sobre o direito de propriedade, sobre as relações entre capital e trabalho, sobre direitos dos operários, sobre relações entre Igreja e Estado, entre religião e pátria, entre classe e classe, entre nação e nação, sobre direitos da Santa Sé e as prerrogativas do Romano Pontífice e do Episcopado, sobre direitos sociais do próprio Jesus Cristo, Criador, Redentor, Senhor dos indivíduos e dos povos”.

Podíamos invocar, portanto, o testemunho da doutrina social da Igreja, conforme se acha exposta nos documentos pontifícios dos últimos tempos, pois eles conservam todo o seu valor e atualidade. Para demonstrar, porém, como é completa a ilusão dos inovadores, vejamos como sobre a questão do capital e do trabalho vem se manifestando o Santo Padre Pio XII, gloriosamente reinante.

Assim, na alocução de 13 de junho de 1943 sobre a “Paz no mundo e colaboração das classes”, faz Pio XII alusão aos “falsos mestres de prosperidade social, que dizem que o mal é bem e que o bem é mal, e, dizendo-se amigos do povo, não consentem entre capital e trabalho e entre empregadores e operários aquele mútuo entendimento que mantem e promove a concórdia social para o progresso e a utilidade comuns”.

Esses agentes da subversão social “longe de melhorar, pioram e agravam as condições de vida e de desenvolvimento material e moral. Tais falsos pastores dão a entender que a salvação deve proceder de uma revolução, que transmude a consistência social ou revista caráter nacional. A revolução social se vangloria de querer alçar ao poder a classe operária: palavra vã e mera aparência de impossível realidade! Com efeito, podeis ver que o povo trabalhador permanece ligado, jungido e comprimido pela força do capitalismo do Estado; o qual comprime e assujeita todos, não menos a família que as consciências, e transforma os operários em uma gigantesca máquina de trabalho”. E depois de mostrar como as vantagens materiais dessa “nova ordem” não compensam a perda dos direitos da pessoa humana, conclui: “Não, não acha na revolução, diletos filhos e filhas, a vossa salvação”.

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Pio XII, como Leão XIII, como Pio X, como Pio XI, não quer “destruir, mas edificar e consolidar”. Não deseja “abolir a propriedade privada, fundamento da estabilidade da família”, mas promover sua difusão entre as classes laboriosas. Não quer exterminar o capital privado, mas promover o seu ordenamento prudentemente acompanhado, como meio e sustento para se obter e ampliar o verdadeiro bem material de todo o povo”.

Na rádio mensagem de 1º de setembro de 1944, continua o Santo Padre Pio XII a esclarecer alguns aspectos dessa questão.

Mostra claramente como é condenável o “capitalismo”, quando se baseia sobre uma concepção errônea do direito de propriedade, vendo o Soberano Pontífice “de um lado as ingentes riquezas dominarem a economia privada e pública, e até mesmo a atividade civil”, de outro, a inumerável multidão daqueles que nenhuma segurança tem na vida.

Vê Pio XII “a pequena e média propriedade diminuir e enfraquecer-se na vida social, restrita e constrangida como se acha numa luta defensiva sempre mais dura e sem esperança de feliz êxito”.

O conceito que Pio XII fez da sociedade é, portanto, o conceito clássico da sociedade cristã, da sociedade desigual e escalonada, da sociedade orgânica em que entre o indivíduo e o Estado se acham várias instituições e classes intermediárias, em vez do conceito totalitário preparado pelo capitalismo liberal e realizado pelo Estado socialista, em que o indivíduo se acha face a face com os grandes potentados, senhores de todos os bens, de tudo dispondo ao seu arbítrio.

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“Em um povo digno de tal nome, diz Pio XII na rádio mensagem do Natal de 1944, em que estuda ‘O problema da democracia’, todas as desigualdades, derivadas não do arbítrio, mas da mútua caridade, não são um obstáculo à existência e ao predomínio de um autêntico espírito de comunidade e de fraternidade. Que esta, pelo contrário longe de ofender a igualdade civil lhe confere o seu legítimo significado, que é que, diante do Estado, cada um tem o direito de viver honradamente sua própria vida pessoal, no posto e nas condições nas quais os desígnios e disposições da Providência o hajam colocado”.

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Quando, porém, o Estado democrático se acha sob o arbítrio da massa, “a igualdade degenera em nivelamento mecânico, em uma uniformidade monótona, [sem] sentimento de verdadeira honra, atividade pessoal, respeito pela tradição, dignidade, em uma palavra, tudo quanto dá à vida o seu valor, pouco a pouco submerge e desaparece”.

Eis porque Pio XII, na sua alocução de 11 de março de 1945 sobre o “Sindicalismo cristão”, insiste em repisar que não basta remover os atuais dissídios entre o capital e o trabalho, deixando perdurar o “statu quo”:

“De resto, diz o Soberano Pontífice, mesmo em condições normais, as Associações cristãs sabem que não se pode tratar de erigir em princípio estável da ordem social a simples acomodação ou acordo entre as duas partes – empregadores e empregados - mesmo se isto for ditado pelo mais puro espírito de equidade. Tal princípio viria a tornar-se defeituoso no momento em que o acordo, em contradição com seu próprio sentido, abandonasse o campo da justiça e se transformasse em uma opressão ou em um ilícito desfrutamento dos trabalhadores ou fizesse, por exemplo, daquilo que hoje se chama nacionalização ou socialização dos bens e democratização da economia, uma arma de combate e de luta contra os empregadores privados, enquanto tais”.

Não se trata, portanto, de uma simples acomodação entre empregados e empregadores, entre o capital e o trabalho, da simples eliminação dos dissídios trabalhistas. Trata-se de dar à sociedade não somente a elevação das condições de vida das classes menos favorecidas, mas o espírito de variedade, o preenchimento dos claros atualmente existentes na escala social entre os extremamente ricos e os extremamente pobres e desamparados.

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Eis porque, diz Pio XII, que “é tempo de se abandonar o palavreado vazio e de se pensar com a Quadragesimo Anno em um novo ordenamento das forças produtoras do povo. Acima das distinções entre empregadores e empregados, saibam os homens ver e reconhecer aquela mais alta unidade que liga entre si todos aqueles que colaboram na produção, vale dizer, sua união e sua solidariedade no dever que tem de prover juntos, de modo estável, ao bem comum e às necessidades de toda a comunidade. Que esta solidariedade se estenda a todos os ramos da produção, que se torne o fundamento de uma melhor ordem econômica, de uma sã e justa autonomia, e abra às classes trabalhadoras o caminho para adquirir honestamente a sua parte de responsabilidade na condução da economia nacional”.

Em toda esta belíssima lição, onde (está) o menor indício da pretendida inversão da ordem social, com a preeminência do trabalho sobre o capital? Pelo contrário, Pio XII procura harmonizar entre si todos aqueles que colaboram na produção, quer apenas contribuam com o capital, quer tomem parte na gestão da empresa, quer sejam simples empregados. Faz cessar a demagogia que divide corpo social entre a classe patronal ou capitalista e a classe operária ou proletária, para considerar os membros da vida econômica do ponto de vista da missão que compete a todos, conforme o cargo que desempenhem no corpo social.

Citemos, porém, um documento mais recente ainda, para melhor esclarecer o pensamento do atual Pontífice, a carta que a 18 de julho do corrente ano Pio XII endereçou ao Sr. Charles Flory, Presidente das Semanas Sociais de França:

“Acima da distinção entre empregadores e empregados, que ameaça tornar-se cada vez mais uma inexorável separação, há o próprio trabalho, o trabalho, tarefa da vida pessoal de todos no sentido de obter para a sociedade os bens e os serviços que lhe são necessários ou úteis. Assim compreendido, o trabalho é capaz, em razão de sua própria natureza, de unir os homens verdadeira e intimamente; é capaz de dar de novo forma e estrutura à sociedade tornada amorfa e sem consistência, e assim sanear de novo as relações da sociedade e do Estado”.

Eis de novo pregada a necessidade de restabelecer a hierarquia do trabalho, em vez de se fazer “da sociedade e do Estado um puro e simples ajuntamento de trabalhadores” e “uma gigantesca adição de rendas e salários ou tratamentos”, como no caso do supercapitalismo liberal e do trabalhismo socialista ou beveridgeano.

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Enfim, o que Pio XII deseja corresponde identicamente aos ensinamentos da “Quadragesimo Anno”, isto é, o ordenamento do capitalismo e não a sua destruição. A reforma dos corações e das instituições sociais e econômicas, e não a revolução socialista.

A Igreja não diz que catolicismo e capitalismo são irreconciliáveis, e sim que catolicismo e socialismo são termos contraditórios entre si.

Querer, portanto, que o catolicismo se ache mais próximo do socialismo, é o mesmo que unir a sorte dos católicos à dos sofistas, fazendo-os girar em torno da lama do totalitarismo, a que nos conduz tanto o supercapitalismo liberal quanto o socialismo revolucionário ou “evolucionista”...


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