Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Mitridates, os católicos e o socialismo

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 19 de outubro de 1947, N. 793, pag. 5-6

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Estamos em uma época de tamanha confusão de idéias, que se torna necessária a demonstração de verdades evidentes. Daí a nossa insistência em provar, por exemplo, que existe uma hierarquia no trabalho. E que essa hierarquia não consiste em ordenar os trabalhos segundo a perfeição com que são executados, mas na consideração de sua própria natureza. Todo o trabalho tem dignidade intrínseca, mas na sociedade civil há várias ordens diversas em dignidade, em direito e em poder, e essa diversidade provem das funções para as quais os homens são chamados, conforme o papel que Deus lhes confiou na sociedade. Todos nós somos “um só corpo, composto de muitos membros, uns mais nobres que outros, mas todos necessários entre si e solícitos do bem comum”.

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Nessa diferenciação de funções e de trabalhos, é justo que uns dependam dos esforços maiores ou menores de outros para o desempenho de sua missão na sociedade. A ordem na sociedade exige que uns se dediquem a misteres mais grosseiros e outros a misteres mais delicados. E não se pode dizer que somente a classe proletária trabalha. A malandragem não é privilégio das classes superiores. Numa sociedade corrompida como a nossa, os vícios, de que preguiça é exemplo, tanto corroem as elites quanto as massas.

E essa diferenciação hierárquica é em si mesma justa, embora sujeita a abusos. Corrijamos os abusos sem entretanto atentar contra a ordem existente no corpo social.

Para citar um caso concreto, São Paulo, além de se dedicar aos seus ingentes trabalhos de apostolado, ganhava a vida como fabricante de tendas. Entregava-se, porém, a esse trabalho manual apenas para dar exemplo aos seus semelhantes. Pois, dada a dignidade de que se achava investido em seu trabalho espiritual, tinha o direito de se sustentar pela contribuição do trabalho dos fiéis, como ainda hoje acontece com os membros da Hierarquia, que não são obrigados a trabalho manual para sua própria subsistência.

É o que se depreende claramente do seguinte trecho da Epístola aos Tessalonicenses:

“Bem sabeis de que modo deveis imitar-nos. Não levamos vida desregrada em vosso meio, nem comemos de graça o pão de ninguém, antes trabalhamos noite e dia, entre labutas e fadigas, para não sermos pesados a nenhum de vós. Não que não tivéssemos poder para vos dar exemplo a imitar. Quando ainda estávamos entre vós, vos declarávamos que se alguém não quer trabalhar, também não há de comer. Porquanto ouvimos dizer que alguns entre vós andam inquietos, nada fazendo, mas ocupando-se em coisas vãs” (II Tess. 3,7-11).

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Ora, o que mais agrava este erro é que, por mais que se esforcem os agentes do trabalhismo socialista por darem ao conceito de trabalho uma definição larga e completa, fazendo-o abranger o exercício de todas as atividades a que se dedica o homem para a aquisição do que lhe é necessário tanto do ponto de vista material quanto intelectual e espiritual, a verdade é que terminam por deixar cair a máscara, dando-lhe o sentido restrito de trabalho manual.

Eis porque a três por dois estão a dizer que as classes superiores se libertaram do trabalho, que o trabalho se acha injustamente sobre os ombros de uma única classe - o proletariado. Por mais que sofismem e expliquem, o trabalho, para esses agentes da subversão social, não é a atividade comum a toda a sociedade humana, mas aquela que se contem na palavra de ordem da Internacional comunista: “Trabalhadores de todos os países, uni-vos!”

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Coerente com este ponto de vista, a União Soviética fez incluir em sua constituição o seguinte dispositivo:

“Art. 12 - o trabalho, na U.R.S.S., é para cada cidadão apto ao trabalho um dever e uma questão de honra segundo o princípio: ‘quem não trabalha não come’”.

Na URSS se realiza o princípio do socialismo: “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo seu trabalho”.

Por conseguinte, o que determina o direito a qualquer benefício é, para o socialismo soviético, o trabalho, segundo a vocação ou capacidade de cada um.

E para justificar esta apreciação materialista que conduz ao trabalho escravo, pois não são considerados outros valores, sendo colocado o Estado como árbitro das atividades do homem, servem-se esses sectários de uma frase do Apóstolo das Gentes!

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Não há, porém, católico digno desse nome que se deixe levar por tão grosseira mistificação.

Sabe o católico que a justiça social proíbe que uma classe exclua a outra da participação dos benefícios. “Violam esta lei não somente a classe dos ricos, quando livres de cuidados na abundância de sua fortuna, pensam que a justa ordem das coisas está em que tudo renda para eles e nada chegue ao trabalhador, mas também a classe dos proletários quando, veementemente enfurecidos pela violação da justiça e excessivamente dispostos a reclamar por qualquer meio o único direito que eles reconhecem, o seu, querem tudo para si, por ser produto de suas mãos; e por isto, e não por outra causa, impugnam e pretendem abolir domínio, interesse e produtos que não sejam adquiridos mediante o trabalho, sem reparar a que espécie pertencem ou que ofício desempenham na convivência humana. E não se deve olvidar aqui quão inepto e infundado é o apelo que fazem alguns às palavras do Apóstolo: ‘Quem não quer trabalhar, também não coma’. O Apóstolo se refere aos que podendo e devendo trabalhar disto se abstém, admoestando que devemos aproveitar com diligência o tempo e as forças corporais e espirituais, sem agravar aos demais, enquanto pudermos prover por nós mesmos. Mas que o trabalho seja o único título para receber o alimento ou os ganhos, isto não o ensinou o Apostolo” (Pio XI na Encíclica “Quadragesimo Anno”).

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Nunca os demônios são mais perigosos do que quando se transformam em anjos de luz. Os anjos de luz, neste caso, são, segundo Pio XI, os chamados “intelectuais”, que se acercaram dos trabalhadores, acirrando-os, tornando-os “veementemente enfurecidos”, e opondo a voracidade do capitalismo liberal “um princípio moral não menos infundado, a saber: tudo o que se produz ou rende, separado unicamente quanto baste para amortizar e reconstruir o capital, corresponde de pleno direito aos trabalhadores. Este erro, quanto mais falaz se mostra que o dos socialistas, segundo os quais, os meios e produção devem transferir-se ao Estado, ou  ”socializar-se”, como vulgarmente se diz, é tanto mais perigoso e apto para enganar aos incautos: suave veneno, que beberam avidamente muitos aos quais jamais um franco socialismo poderia ter enganado” (“Quadragesimo Anno”).

Dois são, portanto, os erros com que os revolucionários procuram de preferência seduzir os católicos para, sorrateiramente, lhes passar o contrabando socialista segundo Pio XI: o erro segundo o qual quer se dar a entender que o trabalho é o único título legítimo para o benefício dos ganhos, das riquezas, da propriedade e até mesmo do alimento, sob a capa farisaica de uma sentença paulina torcida e desfigurada. Pelo segundo erro decorrente desse primeiro, quer-se dar a beber aos católicos o “suave veneno” de que o fruto do trabalho pertence exclusivamente ao trabalhador, uma vez retirada a parte do capital, pois somente o trabalho é que determinaria o benefício. E há mesmo quem considere que até o capital pertence à mão de obra.

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Como corolário lógico desses erros, embora nem sempre sinceramente confessado, vem o combate a outras fontes de gozo dos bens materiais - entre os quais ressalta a herança e daí também, por via de consequência, o combate ao direito de propriedade em sua base estável, por transmissão, essencial à continuidade e prosperidade da família.

Por ignorância ou má fé, confundem o “direito de propriedade”.

Como bem esclarece Wilfrid Morin, uma coisa é o direito abstrato ou a faculdade natural de possuir, e outra o direito concreto ou o exercício dessa faculdade.

O direito à propriedade é a faculdade moral que possui todo homem de adquirir bens. É-lhe necessário o socorro de um título positivo para se dizer real possuidor de tal bem determinado, de modo estável e permanente, com exclusão de outros.

O direito de propriedade, porém, é a faculdade moral de dispor livremente e exclusivamente de tal bem particular. Como diz Pio X no “Motu proprio” sobre o regime da Ação Popular Cristã, “o homem não somente tem dos bens da terra o mero uso, como o animal, mas também o direito de propriedade não somente das coisas que usadas se consomem, mas também daquelas que não se gastam com o uso”. Direito natural “fruto de trabalho ou de indústria, ou bem de cessão ou de doação alheia”.

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Por não fazer distinção entre este direito em abstrato e este direito em concreto, é que os atuais inovadores perdem pé neste assunto.

Negando ao homem o direito de propriedade estável, que lhe advém da natureza, e pregando a fruição confusa da propriedade por toda a sociedade humana, a tendência revolucionária se exerce no sentido de apelar para o direito positivo ou para a lei civil como base única da propriedade. A partir do código napoleônico, por assim dizer o direito de propriedade passou a ser uma ficção - o Estado é o verdadeiro dono da terra - restringindo discricionariamente o direito de testar, etc.

Assaltada, desse modo, pela legislação liberal, a cidadela da propriedade, como a define o direito público cristão, vem agora a corrente socialista, coadjuvada pelos oportunistas de todos os tempos e procura fazer a redistribuição dos bens segundo novos princípios. Entre esses novos princípios se acha o que diz ser a fonte do direito de possuir “o direito inalienável do homem aos frutos de seu trabalho”, com predomínio sobre o capital e sobre outros títulos de propriedade.

Que essa teoria seja inadmissível para os católicos e para os que sinceramente desejam o bem da sociedade, é uma tristeza que sejamos obrigados a aduzir argumentos para prová-lo, como o fizemos com os textos pontifícios atrás citados. Sinal dos tempos.

Estão mitridatizando os católicos com esse “suave veneno” que são as formas atenuadas de socialismo. A diferença é que o célebre rei do Ponto se envenenava aos poucos para se imunizar contra os venenos. E os católicos estão sendo intoxicados aos poucos por um “suave veneno” de ação cumulativa.

E nessa mitridatização socialista a classe média é que mais está sofrendo. A sociedade está sendo “planificada”, arrasada e nivelada por meio do esquadro maçônico. Desaparece o escalonamento social e tudo se transforma em massa informe, sem tradição nem estabilidade. Cada vez mais o homem se vê inerme e desarmado à mercê do Estado com a sua burocracia centralizadora e sua guarda pretoriana, paraíso das sinecuras dos novos sátrapas totalitários.


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