Plinio Corrêa de Oliveira
Nova
et Vetera
Legionário, 12 de outubro de 1947, N. 792, pag. 5 |
|
Adverte São Paulo, em sua primeira Epístola aos Coríntios, que “a ciência incha, mas a caridade edifica”. E Santo Agostinho comentando este texto, esclarece-nos que a ciência só é apreciável quando vem acompanhada da caridade. Sem esta, não passa da grande ventosa que é a soberba dos demônios, nos quais há ciência sem caridade. “E contra essa soberba dos demônios, acrescenta o Bispo de Hipona [Santo Agostinho, n.d.c.], que estava apoderada da linhagem humana por seus pecados, quanta força tenha a humildade de Deus que apareceu em forma de servo, não o conseguem conhecer as almas dos homens inchados com a abominação do orgulho, semelhantes aos demônios na soberba, posto que não o sejam na ciência” (Cidade de Deus, livro I XX). * * * Vem-nos à memória estas ventosas pseudo-científicas quando consideramos os esforços daqueles que em nossos dias tomam por programa a mudança das bases naturais e tradicionais da sociedade humana e a edificação de uma cidade futura sobre outros princípios, “que se atrevem a declarar mais fecundos, mais benéficos que aqueles sobre os quais descansa a atual sociedade cristã” (Pio X na Carta Apostólica “Notre charge”). Em particular pensamos naqueles que erigem o trabalho em valor supremo na sociedade, considerado como elemento novo, cujo alcance ainda não teria sido devidamente apreciado nas organizações sociais até aqui existentes dentro e fora da civilização cristã. * * * Vejamos alguns aspectos curiosos dessa nova Babel. Assim, por exemplo, dado o fato de se encontrarem os trabalhadores manuais em posição menor na escala social, pretendem os teóricos dessa nova utopia que tal estado de coisas é injusto, pois todo o trabalho em si mesmo considerado tem igual dignidade, não havendo razão para a situação privilegiada de um trabalhador em relação a outro, quer se trate de trabalho manual, intelectual ou espiritual. Em primeiro lugar, para os católicos o problema se põe de modo muito simples. Ensina-nos a doutrina da Igreja que o homem foi criado para conhecer, amar e servir a Deus neste mundo e para a consequente bem-aventurança eterna. Eis, portanto, bem explícito o primado natural da contemplação. O homem, a que se refere o catecismo, não é apenas considerado do ponto de vista espiritual, mas também temporal. Tudo, na sociedade humana, deve convergir para o fim supremo; tudo, não apenas o trabalho, que é um simples exercício de atividade para a aquisição das coisas que nos são necessárias, sejam de que espécie forem, mas também os bens exteriores de fortuna, os bens do corpo e da alma, isto é, as virtudes morais ou intelectuais etc. E esse fim supremo se acha na contemplação da Verdade. * * * Sabemos a que estado de baixeza e de ignomínia o paganismo reduzira o trabalho, esse mesmo trabalho que seria reabilitado pelo Cristianismo. Nosso Divino Salvador, com Seu exemplo, mostrou que não se deve envergonhar o homem de ter que ganhar o sustento trabalhando. “Fez-se pobre, sendo rico”, e o Senhor de todo o universo criado. Entretanto, este exemplo do Redentor do mundo deve servir para nos incentivar à humildade, não para alimentar nosso orgulho. Dessa dignidade do trabalho não tiremos a conclusão sillonista [relativo ao movimento “Le Sillon”, condenado por São Pio X] de que “todo homem, exceto em matéria de religião, é autônomo”, nem de que “a cidade futura não terá nem amos, nem servidores – sendo os cidadãos livres, todos camaradas, todos reis”. Pelo fato de Nosso Senhor haver dado exemplo de submissão, de pobreza, não concluamos que Ele fosse contrário à hierarquia social. “Jesus Cristo, diz Pio IX, ama a aristocracia; Jesus Cristo quis nascer nobre”. Nobre, de família real, era a Mãe de Deus, nobre seu pai adotivo. “Honra a quem honra compete” (Rom. 13,7). * * * Deus, que criou e governa todas as coisas, diz Leão XIII, “dispôs, com sua próvida sabedoria que as coisas ínfimas cheguem pelas médias, e as médias pelas superiores, aos fins respectivos”. “Assim, pois, como no próprio reino dos céus quis que os coros dos anjos fossem distintos e uns submetidos a outros; assim como também na Igreja instituiu vários graus de ordens e diversidades de ofícios, para que nem todos fossem apóstolos, nem todos doutores, nem todos pastores, assim também determinou que na sociedade civil houvesse várias ordens diversas em dignidade, direitos e poder; isto a saber, para que os cidadãos, assim como a Igreja, fossem um só corpo, composto de muitos membros, uns mais nobres que outros, mas todos necessários entre si e solícitos ao bem comum” (Enc. “Quod apostolici”). Eis porque “não é verdade que todos tenham direitos iguais na sociedade civil, ou que não exista hierarquia legítima”. * * * Como vemos, a analogia existente entre a hierarquia temporal e a hierarquia espiritual nos é dada pelo próprio Soberano Pontífice da Ação Social. “Não é justo que deixemos de parte a pregação da palavra de Deus para servir às mesas. Escolhei, portanto, irmãos, sete homens do vosso meio que gozem de boa reputação e sejam repletos de espírito e de sabedoria, vamos encarregá-los desta obra, ao passo que nós continuaremos a dedicar-nos à oração e ao ministério da palavra” (Atos 6, 1-4). Eis, na simplicidade com que descrita a criação do diaconato tem explicitado que o trabalho nunca deixa de ser digno, quando feito segundo a vontade de Deus, mas que há uma hierarquia nessa dignidade de direitos e de poder. * * * A igualdade dos homens consiste em que todos, dispondo de idêntica natureza, são chamados à mesma altíssima dignidade de filhos de Deus. Mas a desigualdade de direito e de poder dimana do próprio Autor da natureza, “do Qual deriva toda a paternidade no céu e na terra”. Esta a doutrina da Igreja, outra, a qual se insurgem os inchados revolucionários que no paternalismo procuram repudiar em efígie o exemplo dAquele que se fez obediente a Seu Pai até à morte e morte de cruz. * * * E será verdade que a civilização católica não reconheceu devidamente o mérito do trabalho? As esquemáticas ventosas científicas veem no passado apenas os nobres opulentos e os miseráveis servos da gleba. Não veem o gradativo enriquecimento dos burgos e das classes inferiores, dadas as franquias cada vez maiores concedidas ao povo e à existência de direitos, dos quais os governantes cristãos eram zelosos guardiães. Mesmo na época de decadência da nobreza, às vésperas da Revolução Francesa, o quadro oferecido pelos velhos representantes da hierarquia civil era bem diference do contraste forjado pela propaganda revolucionária internacionalmente feito para focalizar o fausto dos castelos e as misérias da plebe. * * * Fale por nós uma autoridade que não pode ser taxada de suspeita pelos partidários da Revolução: “Trinta mil gentis-homens, diz Taine, referindo-se aos nobres da França do século XVIII, dispersos pelas províncias, eram criados desde a infância para a carreira das armas: pobres o mais das vezes, viviam em suas mansões rurais, sem luxo nem comodidades, nem curiosidades, em companhia de lenhadores e guarda-caças, frugalmente, rusticamente ao ar livre, de maneira, a formarem um corpo robusto. À idade de seis anos, a criança era colocada sobre um cavalo; acompanhava as caçadas, e se endurecia nas intempéries; em seguida, nas academias, adaptava seus membros a todos os exercícios, e adquiria a saúde resistente necessária para viver em barracas no campo. Desde a primeira infância, ficava imbuído do espírito militar; seu pai e seus tios não falavam à mesa que de seus riscos de guerra e de seus feitos d’armas; sua imaginação se inflamava... Servir o Estado, desferir golpes, expor sua vida, isto lhes parecia uma obrigação de sua classe, uma dívida hereditária; sobre nove ou dez mil oficiais que a pagavam, a maior parte apenas se preocupava em saldá-la, nada mais esperando em troca. Desprovidos de fortuna e de proteção, sabiam que os altos graus estavam reservados para os herdeiros das grandes famílias, para os cortesãos de Versailles. Depois de quinze ou vinte anos de serviço, regressavam ao lar com um “brevet” de capitão e a cruz de São Luís, às vezes com uma pequena pensão, contentes de haver cumprido seu dever e de se mostrarem honrados aos seus próprios olhos” (“La Révolution”, t. III, páginas 407-408). * * * Não se trata, portanto, de introduzir uma novidade, de destruir os degraus da escala hierárquica e de nivelar todas as espécies de funções e de trabalhos, mas de restabelecer esse escalonamento no corpo social e de elevar todas as classes em vez de destruir as mais altas por esse sórdido espírito igualitário. Se a mais elevada autoridade no mundo é o “Servo dos Servos de Deus” [o Papa, n.d.c.], por que insuflar no povo essa falsa noção de libertação em relação aos superiores hierárquicos, de revolta contra a desigualdade, em dignidade, em direitos e poder? Os rombudos cripto-socialistas que assim procedem, evidentemente têm a ventosa do demônio, mas nem um pouco de sua ciência. Pois ninguém nega inteligência ao pai da mentira e, para aqueles, esta parece faltar completamente. |