Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Somos todos tradicionalistas

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 5 de outubro de 1947, N. 791, pag. 5-6

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“Nada de novo sob o sol”, já dizia o Eclesiastes.

Tanto nós, os amigos da Tradição, quanto eles, os amigos da Revolução, somos portanto reacionários, queremos uma volta ao passado. Se fôssemos partidários da confusão, diríamos apenas que somos todos tradicionalistas. Damo-nos pressa, porém, em esclarecer nosso pensamento.

Tudo depende de uma certa diferença de datas. Eis porque afirmamos que a ciência da cronologia não é assim tão sem importância. Com efeito, Santo Epifânio, no célebre trabalho em que procurou fazer a história e a refutação de todas as heresias, insiste sempre na seguinte nota: a Igreja Católica, formada com Adão, anunciada pelos Patriarcas, acreditada em Abraão, revelada por Moisés, profetizada por Isaías, manifestada em Nosso Senhor Jesus Cristo e unida a Ele como Sua única esposa, existiu e existe tanto antes como depois de todos os erros. “O começo de todas as coisas, diz Santo Epifânio, é a Santa Igreja Católica”.

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Aí está a diferença. Nós, os católicos, somos tradicionalistas mais velhos... Nem por isso deixam os revolucionários de ter sua tradição. Coloquemos, porém, de lado o saudosismo revolucionário que se prende a modelos anteriores a era cristã.

Fiquemos com o tradicionalismo revolucionário que procura ressuscitar o totalitarismo da Roma pagã e imperial. Os legistas revolucionários legiferam de modo ainda mais arbitrário que os legistas custodiados pela guarda pretoriana. No duro e feroz direito romano permaneciam resquícios do direito natural. Seus imitadores de hoje fazem a lei passar por cima do próprio direito natural, pouco se lhes dando se têm pela frente uma pessoa humana com direitos incontestáveis e inalienáveis. O regime do arbitrário se acha mais generalizado, mas o fim visado é o mesmo da Roma dos Césares: a uniformidade, a unidade monolítica, a massa inerte e escrava, para a qual uma só cabeça vive, pensa, age e deseja: o Estado. A variedade não mais existe, nem mesmo se pode falar na existência de um corpo social, pois não merece o nome de corpo tal massa informe e não organizada.

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Em vez de se basear nas autênticas fontes da tradição cristã o Estado moderno procura criar, ao seu arbítrio, os “direitos” civis do homem, seu modo de se unir em matrimônio para constituir família, seu modo de testar e legar os bens para a perpetuação dessa mesma família, a união dos homens em instituições civis, tais como as associações de classe, os artesanatos, a educação pública, a vida econômica e social, sem levar em conta a vontade, os hábitos, as tradições culturais e religiosas do povo – tudo improvisado por legisladores bisonhos que apenas obedecem a senhas e passes dos verdadeiros inovadores e revolucionários que agem por detrás do pano. A própria personalidade civil da Igreja, sociedade perfeita independente do Estado, passa a existir em virtude de lei arbitrária emanada do Estado... É a renovação da tradição romana, segundo a qual o Estado tudo abarca e compreende, ao ponto de César passar a ser também o chefe religioso, o “pontifex maxiimus”...

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Dizíamos que os agentes do imperialismo pagão mostravam mais consideração pelo direito natural que os modernos revolucionários. Até uma certa quadra. Depois das insurreições dos revolucionários Sylla e Mário, o respeito pela propriedade se extingue em Roma, e as rapinas públicas e particulares atingem o auge. O próprio congelamento dos aluguéis de casa é fenômeno que vemos nas leis de inquilinato do paganismo romano. E não resta dúvida que a estrutura social daqueles tempos era semelhante a que o moderno trabalhismo socialista quer imprimir à sociedade de hoje. Além de uma classe estatal, privilegiada, de verdadeiros comissários do povo ou “gauleiters”, havia um perfeito igualitarismo na imensa massa dos homens “livres”, que, pela concorrência do braço escravo eram obrigados a ombrear com eles nas fazendas e indústrias para-estatais dos detentores da máquina política e administrativa. Não há dúvida que se tratava de uma civilização dominada pelo trabalho, não o trabalho livre e hierarquizado da civilização católica, mas o trabalho escravo e nivelador dos regimes totalitários.

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Eis aí, portanto, uma das fontes da tradição revolucionária de nossos dias.

E mesmo no seio da Igreja dos primeiros séculos surge a preocupação pagã do socialismo. Houve a corrente herética dos que pretendiam que o Evangelho interdita a posse de propriedade a todos os cristãos. Santo Epifânio (Adv. Haer. II, 61) menciona este erro social, que seria renovado por outras heresias através da história da Igreja.

Esta tendência revolucionária de procurar justificar o socialismo perante os católicos faz também parte, portanto, da tradição, da triste tradição dos inimigos da Igreja.

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Pela ação da Igreja o mundo ocidental se libertou lentamente de cesarismos, do totalitarismo da Roma pagã.

Os primeiros imperadores cristãos absorvem, porém, certa dose desse totalitarismo pagão. Constantino quer ditar normas à Igreja. E quando a violência dos bárbaros transforma em escombros a velha estrutura do imperialismo romano, já parcialmente batizado, ainda perduravam muitos desses aspectos arbitrários herdados do totalitarismo gentílico.

Das ruínas dessa antiga sociedade política, surge o feudalismo. Surge uma sociedade hierárquica, em que lentamente vai sendo mitigada a antiga dureza pelo nascimento de instituições livres, pelo despertar da dignidade humana e da autonomia legítima do indivíduo e da família, fruto da pregação do Evangelho. Surgem as aldeias, as cidades e os municípios, surgem as corporações, os organismos vivos que tinham como modelo, naquela confusão inicial consequente à destruição da velha organização política, a única sociedade que permanecia organizada e coesa, a Igreja, as comunidades cristãs, as dioceses com os seus pastores, com os seus ministros a dispensar a todos, além dos inestimáveis socorros espirituais, lições de justiça, os indispensáveis princípios da lei moral, base da vida civil.

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Ora, segundo Pio X, “não há civilização verdadeira sem civilização moral, e não há verdadeira civilização moral sem a verdadeira religião: é uma verdade demonstrada, é um fato histórico”. Eis a razão da diferença entre o totalitarismo da Roma dos Césares e a Cristandade medieval. Há ainda um outro fato histórico incontestável e muito grato a nós tradicionalistas católicos e antirrevolucionários. A Igreja não somente informou o espírito dessa civilização cristã, mas lhe serviu de modelo para a própria estrutura civil. Entre a Igreja, sociedade divina e espiritual, e o Estado, sociedade humana e temporal, vai uma distância enorme. Nada impede, entretanto, que lhe copiemos as instituições e as sábias diretrizes do governo. Em plano diferente e claro. Vermeersch, por exemplo, em seu tratado sobre a tolerância, aconselha que os pais de família tenham em casa um pequeno tribunal do índice e do santo ofício: aquele para fiscalizar as leituras, este para vigiar os costumes dos filhos. De modo análogo, o que impede que o poder civil imite a sabedoria da Igreja em sua organização e em suas instituições?

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De qualquer maneira, em que pesem as opiniões contrárias a este proceder, estamos diante de contundente fato histórico. A respeito dele, fale por nós o velho Audizio professor de Direito Racional das Gentes na Universidade da Sapiência, que em 1864 já dizia o seguinte:

“Habituados que somos a tratar a Idade Média como bárbara, não apreciamos em seu justo valor a vida própria e tão vigorosa de suas instituições. Certamente, sua força material era robusta, mas bem mais robusto ainda era o sentimento da justiça que ligava as altezas imperiais por um juramento de fidelidade ao povo e a Deus. A Igreja, as corporações, a nação inteira tinham nesse juramento uma garantia de seus direitos. Havia se formado uma hierarquia civil “ad instar” [a exemplo, segundo o modelo, n.d.c.] da hierarquia eclesiástica. Do mesmo modo que as dioceses compunham a Igreja, assim surgiram as organizações particulares como outros pequenos estados com seus costumes e suas leis, constituindo as nações. Essas organizações mantinham uma espécie de autonomia, de atividade e de vida em seu próprio seio; elas se reuniam, discutiam seus interesses, e os representavam por delegados junto às cortes gerais. Havia nestas uma verdadeira representação, uma vida social, imitada da hierarquia e do governo da Igreja”.

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“Que a forma dessas instituições fosse ainda imperfeita, vá lá. Mas na época, como se diz, da renascença, dos espíritos e das belas artes comete-se um crime de lesa-sociedade, ao se estrangularem esses germes de uma vida larga e verdadeiramente social sob a pressão e o frio glacial da concentração pagã. Que se tomasse emprestado à Roma dos Césares o culto do belo, muito bem. Mas não se lhe podia pedir de empréstimo uma civilização fundada sobre justiça e a verdade, visto que ela não existiu entre esses pagãos. Seus fundamentos se achavam, pelo contrário, todos traçados na sociedade pela mão da Igreja; mas os pedantes e os imperadores voltaram à adoração desse Capitólio que, sob o orgulho da força, havia esmagado a justiça das nações. Aqui se acham as razões da prodigiosa luta da Igreja com o Império. A Igreja sustentava a causa da justiça e do progresso civil dos povos cristãos; o Império queria fazer retrogradar seu curso até o Cesarismo romano”.

E as heresias, principalmente a heresia protestante, à medida que progrediam, convertiam o cesarismo romano em imperialismo ou regalismo cristão. Começaram os atentados, em grande estilo, contra as liberdades sociais e contra os próprios direitos da Igreja. As nações cresceram em volume e de certo modo em progresso material. Mas o organismo social se atrofiou. De novo a vida dos povos se retirou dos membros, para se concentrar desmesuradamente na cabeça. E de novo também o furor das massas e dos soldados pretorianos se dirige contra os chefes vacilantes e arbitrários. A época é propícia para a ação dos Mários e dos Syllas. A tradição revolucionária tem onde buscar exemplos.

E se são velhos os métodos e os programas dos revolucionários - eles que se ufanam de ser inovadores - por que nós os tradicionalistas católicos, que não temos a superstição da novidade, não poderemos olhar para a experiência do passado?


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