Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Tradição e Revolução

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 28 de setembro de 1947, N. 790, pag. 5-6

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O inglês se achava com o braço em talas, o rosto coberto de pontos falsos. E explicou a razão de ser de tudo aquilo. Mandara preparar o cavalo para dar um passeio. “E então?” pergunta-lhe o amigo. “Montei demais”. Isto é, caíra do outro lado da sela ao galgar a montaria...

Também do ponto de vista doutrinário, são muitos os que não conseguem evitar os dois percalços de andar a pé ou de “montar demais”.

Tomemos, para exemplificar, o caso da revolução e da tradição. Há os que temem cair nos erros do tradicionalismo ao combater os nefastos erros revolucionários.

O bem, porém, não teme a luz. E se, conforme nos diz o Livro da Sabedoria, “a doutrina é para o insensato como grilhões aos pés, e como cadeias que lhe carregam a mão direita”, para os filhos de Deus, pelo contrário, ela vem a ser uma suave escada de Jacó, destinada a nos facilitar a Ascenção ao reino da Verdade.

* * *

Procuremos, portanto, remover a confusão que os espíritos timoratos parecem encontrar na seguinte afirmação de Pio X: “Os verdadeiros amigos do povo não são nem revolucionários, nem inovadores, mas tradicionalistas” (Pio X na Carta Apostólica “Notre charge”).

Com efeito, olhando para o passado, vemos como o Cristianismo exerceu uma influência fundamental sobre o Estado, sobre a legislação, sobre as instituições e sobre os costumes públicos, do mesmo modo que conseguiu penetrar na família e nos costumes dos indivíduos.

Não temos ilusões quanto ao chamado “Antigo Regime” e bem sabemos que a decadência do mundo ocidental teve início quando a sociedade civil deixou de se basear na hierarquia feudal, absorvida esta pela centralização do poder real, engendrada pelos legistas da marca de um Nogaret e pelos pais do absolutismo, do sacrílego Felipe o Belo e ao herético Henrique VIII, com posteriores escalas pelo galicanismo.

Não foi, porém, contra esses germes do totalitarismo que combateu a revolução, pois ela é, por natureza, totalitária.

A revolução consistiu e consiste ainda na destruição da antiga ordem política e social, profundamente penetrada da influência católica e fundada sobre os Evangelhos, e que, apesar das transformações que já sofrera a partir da Renascença, ainda se achava impregnada do espírito que a Santa Igreja lhe inoculara através de vários séculos de labor apostólico.

Simultaneamente com essa destruição, trabalharam e ainda trabalham os revolucionários pelo estabelecimento de uma nova ordem, fundada unicamente sobre as “luzes” da razão. Nessa transformação radical, destinada a fazer desaparecer o sobrenatural da sociedade e a nela implantar o naturalismo, eis em que consiste a revolução, essa revolução a que alguns emprestam um valor místico, designando-a com R maiúsculo, em companhia de outra entidade misteriosa e demiúrgica, a oposição (também com M maiúsculo)... Como se os movimentos políticos valessem por si mesmos e não pelos que se acham por detrás deles.

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Ora, ensina-nos a doutrina católica que duas são as ordens de conhecimento: os conhecimentos de ordem natural, tais como os de ordem sensível, dados pelos sentidos, ou os de ordem racional, dados pela inteligência e pela razão; e os conhecimentos de ordem sobrenatural, dados pela inteligência e pela razão esclarecidas pela revelação divina.

O próprio do espírito revolucionário é negar a ordem sobrenatural. Assim, em presença dos erros do filosofismo, que repele as luzes da Fé, houve a tendência contrária de negar a possibilidade de se chegar à verdade a não ser pela Fé. É o erro do fideísmo e dos sistemas tradicionalistas de Bonald, do Padre Ventura, de Lamennais e de Bonnetty, para citar alguns exemplos.

Tanto os racionalistas, quanto esses tradicionalistas acabam por confundir a ordem natural e a ordem sobrenatural, aqueles por fazerem das verdades sobrenaturais objeto do conhecimento natural, e estes por fazerem dos dons sobrenaturais um meio indispensável para o próprio conhecimento natural.

A Igreja se afasta de ambos esses erros e exageros contrários e mantem a distinção essencial entre a ordem natural e a ordem sobrenatural.

A Igreja Católica, define o Concílio do Vaticano, sempre sustentou e sustenta por um consentimento unânime que existe uma dupla ordem de conhecimento, distinta não somente pelo princípio, mas ainda pelo objeto; distinta em primeiro lugar pelo princípio, porque em uma nós conhecemos pela razão natural, e em outra pela Fé divina; distinta, em seguida, pelo objeto, porque, além das coisas às quais a razão natural pode atingir, são propostos à nossa crença mistérios ocultos em Deus que nós não podemos conhecer sem uma revelação divina”.

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O erro de certos tradicionalistas consistiu, assim, em fazer depender o conhecimento das verdades naturais de uma revelação primitiva aos primeiros homens, e de uma transmissão social através de seus descendentes, o que fizeram, levados pelo zelo devorador de combater a negação racionalista da ordem sobrenatural.

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E impelidos por esse exagero anti-intelectualista, algumas vezes esses tradicionalistas exaltados chegaram mesmo a combater os teólogos escolásticos, opondo-lhes os Padres da Igreja primitiva. Os Santos Padres, segundo eles, representariam a pura tradição da Igreja e os escolásticos, uma tradição alterada. A Igreja, a partir da Idade Média, ter-se-ia desviado do verdadeiro caminho, enveredando para o racionalismo através da filosofia perene.

Eis a razão pela qual o tradicionalista Bonnetty foi obrigado a assinar a seguinte retratação:

É falso que o método de que usaram São Tomás, São Boaventura e outros escolásticos depois deles, leve ao racionalismo e haja sido a causa que fez cair a filosofia, no seio das escolas modernas, no naturalismo e no panteísmo; e por conseguinte não se deve incriminar esses doutores e esses mestres por o haverem empregado, sobretudo porque tinham a seu favor a aprovação ou pelo menos o silêncio da Igreja”.

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Isto do ponto de vista teológico.

Vejamos em que consistiu o exagero tradicionalista do ponto de vista social.

Lamennais dizia: “Somente o testemunho universal dos povos dá-nos a certeza”.

Eis porque houve quem dissesse que Rousseau pretendia que o poder reside essencialmente na multidão e Lamennais nela colocava a infalibilidade, pelo que um e outro sistema podem ser alinhados entre as chamadas teorias “humanitárias”... e demagógicas.

Outro erro que a Igreja condena em certos tradicionalistas, do ponto de vista social, é o fazerem da sociedade civil uma instituição positiva de Deus, bem posterior à criação do homem, quando tanto a filosofia quanto a teologia nos ensinam que a sociedade civil, e por conseguinte o poder público, são uma instituição natural, que resulta da natureza sociável do homem, ambos instituídos, portanto, ao surgir no mundo a humanidade.

E como corolário desse erro, sustentam esses tradicionalistas, que o poder civil foi dominado e instituído pelo sacerdócio.

É curioso notar uma outra prova de que os extremos se tocam. Apesar de partirem de pontos de vista diametralmente opostos aos esposados pelos revolucionários, os tradicionalistas que sustentavam esta tese acabavam aderindo ao barrete frígio, pois concordavam com os teóricos da Revolução ao afirmar que a sociedade civil não é uma instituição natural requerida pela natureza sociável do homem, mas positiva e arbitrária, apesar de instituída pelo próprio Deus. Vide o “Contrato Social” de Rousseau.

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Depois de tudo isso, será que não nos podemos declarar tradicionalistas, como o fez o Santo Padre Pio X em sua Carta Apostólica atrás citada?

Não confundamos o tradicionalismo com os erros cometidos por alguns tradicionalistas. Como não devemos confundir, por exemplo, a democracia ou a república com os erros esposados pelos democratas ou republicanos.

E nem retiremos destas breves considerações a conclusão de que a Igreja nada tem que ver com o poder civil, isto é, a conclusão de que o Estado deve ser leigo, como querem os revolucionários de todos os matizes.

A sociedade humana foi estabelecida por Deus. Deve, portanto, corresponder às intenções de Deus e preencher o fim para a qual foi criada.

Mandou o Divino Mestre que se desse a César o que era de César. Apesar disso, que diz Nosso Senhor a Pilatos, delegado desse mesmo poder civil? “Não terias poder algum sobre mim, se não viesse do alto”.

Com efeito, declara em outra instância o Filho de Deus: “Todo o poder me foi dado no céu e na terra”. E se esse poder divino se exerce mesmo sobre governos pagãos, como o de César, que dizer então dos Estados cristãos?

Eis porque assim explica Dom Duarte (de Leopoldo e Silva) o sentido das palavras de Jesus Cristo a Pilatos, quando disse que o Seu reino não era deste mundo: “o meu reino, a autoridade que eu exerço no mundo por intermédio da minha Igreja, não me foi transmitida pelos homens, não a recebi deste mundo, de nenhum poder sobre a terra, mas a recebi do céu e me foi comunicada pelo Pai. Se assim não fora, teria soldados que me defendessem para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o meu reino não é daqui, deste mundo, embora se exerça no mundo”.

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Erram, portanto, continua Dom Duarte, os que, abusando destas palavras de Jesus, pretendem subtrair o Estado às salutares influências da Igreja Católica. Proclamando a origem celeste do seu reino, superior às combinações da política humana, proclama Jesus a universalidade desse mesmo reino, cujos súbditos, vivendo no mundo, têm o incontestável direito de se regerem e governarem, segundo as normas da Verdade”.

“Não queremos que ele reine sobre nós”, disseram os judeus, repetindo o “non serviam” de Lúcifer.

Contra os revolucionários, que hoje repetem esta frase sob o véu hipócrita da separação dos dois poderes, sejamos sinceros e resolutamente tradicionalistas:

“A civilização não mais está para ser inventada nem a nova Cidade para ser construída nas nuvens. Ela existiu, ela existe: é a civilização cristã, é a Cidade católica” (Pio X na Carta Apostólica “Notre charge”).

Eis porque “os verdadeiros amigos do povo não são nem revolucionários, nem inovadores, mas tradicionalistas”.

E o modo mais seguro de se evitarem os escolhos atrás citados consiste em sermos tradicionalistas ultramontanos, sempre fiéis ao Papa, à Cátedra de São Pedro.


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