Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
O rótulo católico

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 16 de março de 1947, N. 762, pag. 5

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Até que ponto, em nossa ação social, será conveniente, ou mesmo necessário, não apresentar nossas idéias, nossos princípios, nossos planos, sob o rótulo católico?

Para responder a esta pergunta, devemos em primeiro lugar acentuar que a palavra “rótulo” pode dar lugar à interpretação de coisa justaposta ao conteúdo, sem com ele se identificar. Em se tratando de catolicismo, porém, é claro que o essencial é a coisa em si e não o rótulo. Mas em si mesmo considerado o catolicismo é tão característico e tão inconfundível, que fala por si próprio e pode dispensar o rótulo. Não é, entretanto, o catolicismo ou a doutrina católica uma mercadoria avariada e suspeita que, para ser distribuída, necessite ser passada clandestinamente, por uma espécie de contrabando ideológico. Longe de nós o desejo de armar pela estrada social uns tantos mundéus (armadilhas, n.d.c.) e umas tantas arapucas em que os não católicos inconscientemente se deixariam apanhar, chegando, assim, a praticar as verdades de nossa Fé como Monsieur Jourdain fazia a prosa (Monsieur Jourdain: personagem principal da peça escrita por Molière “Le Bourgeois gentilhome”, na qual o protoganista desempenha o papel de burguês ridículo que procura tomar atitudes imitando o nobre, n.d.c.).

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Nosso dever de lealdade nos deve levar, como norma geral, a confessar claramente a Nosso Senhor Jesus Cristo e a Sua Igreja perante os homens. Diz Santo Agostinho que a pior espécie de mentira é aquela praticada com o fim de converter. Devemos, portanto, fugir quanto for possível de qualquer processo de doutrinação social que possa dar ao nosso próximo uma ideia errônea quanto às nossas ulteriores intenções a seu respeito.

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Um dos métodos a serem empregados para evitar o “rótulo” católico (e aqui não se trata do simples rótulo, mas também do conteúdo), consistiria na fixação de princípios gerais, baseados nas verdades naturais, por não nos ser lícito forçar o próximo a aceitar a ordem sobrenatural. Perguntamos, porém: o fato de não nos ser lícito forçar a aceitação da ordem sobrenatural nos impediria de esclarecer o próximo quanto aos princípios e a necessidade dessa mesma ordem sobrenatural?

Já, em seu tempo o autor de “La Cité Antichrétienne au XIXe. Siècle” mostrava os perigos dessa tática, por encobrir uma forma disfarçada de racionalismo, pois seus aderentes, embora não contestem a existência da ordem sobrenatural, praticamente negam sua necessidade e seu caráter obrigatório. A se lhes dar razão, o sobrenatural seria facultativo, por representar um privilégio gratuitamente outorgado à natureza humana. Uma pessoa poderá tornar-se fiel e crente, se assim o desejar, mas pode permanecer na incredulidade, se assim o preferir. A graça não destrói a natureza - dizem eles - deixa-lhes seu fim próprio, com suas forças naturais; e tanto existe um fim natural sem a graça, quanto um fim natural ao lado da graça. A revelação não teria fechado a antiga via que conduzia à felicidade natural; ela teria apenas aberto paralelamente uma via que conduz a um termo mais elevado. Aquele que escolhe o primeiro caminho chegará a um fim natural, como aquele que escolhe o segundo caminho alcançará um fim sobrenatural. Há homens que sempre visam o mais perfeito - que estes aceitem a ordem sobrenatural. Mas há outros que preferem uma perfeição proporcionada à sua natureza e que, satisfeitos de se acharem acima da condição animal, sem aspirar a ser semelhantes a Deus, desejam conduzir-se pela razão natural. Aqueles não poderiam ser acusados de desprezar os dons de Deus, como estes de desprezar sua razão. É consoladora a existência de almas místicas que se lançam em busca de uma perfeição super-humana, mas é também belo que existam homens sábios que se apliquem à prática das virtudes humanas e que ofereçam ao mundo o espetáculo de uma vida conforme a todos os princípios da sã razão. Em resumo, não se pode obrigar a humanidade a aceitar a ordem sobrenatural. Por isso não convém que se proponham princípios católicos para a aceitação de todos, mas deve-se parar a meio do caminho, com princípios que tanto podem ser aceitos por um católico, quanto por um protestante, por um judeu da Sinagoga, por um muçulmano, ou por um incrédulo qualquer.

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Podemos distinguir nesse erro geral e disfarçado, dois erros especiais. O primeiro é o de pretender que o homem possa permanecer fora da ordem sobrenatural, sem grave desordem moral, repelindo voluntariamente o fim e os meios dessa ordem. O segundo é o de insinuar que, sem o socorro da revelação ou da graça, seja possível, em nosso estado presente, conhecer todas as verdades naturais e fazer todo o bem natural.

O primeiro e o principal desses dois erros consiste, portanto, em pretender que a Fé e toda a ordem sobrenatural sejam de superrogação, sem caráter obrigatório: “a razão teria uma tal independência, que a Fé não poderia ser exigida por Deus”, conforme a proposição condenada pelo Concílio do Vaticano I. A natureza seria, portanto, essencialmente livre com relação à ordem sobrenatural.

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É este o erro do liberalismo, principal fonte do indiferentismo, que mais frequentemente faz os católicos, que de fato abraçam a doutrina da Igreja, serem mimoseados com os epítetos de reacionários e ultramontanos. Confundem os latitudinários nosso dever de pregar a verdade com a intenção de querer “forçar” a aceitação dessa verdade. Os apóstolos e discípulos não deveriam “sacudir o pó das sandálias” nas cidades que se negarem a aceitar a doutrina pela qual Nosso Divino Salvador derramou Seu precioso Sangue, mas nela permanecer e arranjar um meio termo, uma atenuação dessas verdades para o trabalho no terreno comum, dividindo o apóstolo do meio social em dois homens: o indivíduo que é católico, e o homem de ação, que é neutro, conforme erro apontado por Pio X na Encíclica ao episcopado francês “Notre charge apostolique”.

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Os homens podem usar de seu livre arbítrio para o bem ou para o mal, mas quando agem contra a vontade de Deus deixam de ser livres, tornando-se escravos, pois “o que pratica o pecado é escravo do pecado”. Sem grave perturbação da vontade de Deus, os homens não podem, portanto, repudiar o caráter obrigatório do sobrenatural. E é nosso dever confessar esta verdade por “sobre os telhados”.

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Que diz Nosso Senhor nos Evangelhos a este respeito? “Aquele que crer e for batizado será salvo; o que não crer, será condenado”. “Quem nele crer não será julgado; mas quem não crer, já está julgado, por não crer no nome do Filho unigênito de Deus”. “Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim também é necessário que o Filho do homem seja exaltado, para que quem creia nEle não pereça, mas tenha a vida eterna”.

A elevação do homem ao seu fim sobrenatural se apresenta, portanto, da parte de Deus, como um ato não apenas de misericordiosa bondade, mas de autoridade soberana. Deus dá gratuitamente e por pura liberalidade o que não é devido à natureza humana, mas, ao dar, deseja que se aceite. Sua dádiva torna-se para nós um dever. Deseja que todos os homens creiam na sua palavra e tendam para seu fim sobrenatural, sob pena de perder a própria felicidade natural. “Procurai em primeiro lugar o reino de Deus e sua justiça e tudo mais vos será dado como acréscimo”.

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O segundo erro desses racionalistas mascarados é o de pretender que, no estado presente da humanidade, depois da queda e da Redenção, a razão humana possa, sem o auxílio da revelação, conhecer todas as verdades naturais, e a vontade, sem o auxílio da graça, observar a lei natural.

É o que veremos em nosso próximo número.


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