Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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A idolatria do trabalho

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 9 de março de 1947, N. 761, pag. 2 e 7

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O presidente Perón expôs, em discurso que pronunciou há alguns dias, o programa a que há de obedecer a Carta dos Trabalhadores da Argentina. Neste programa, destaca-se o seguinte ponto, de indisfarçável importância:

“2) Todas as riquezas, os juros e rendas do capital resultante exclusivamente do trabalho humano, e, portanto, a Sociedade deve dar aos trabalhadores remuneração material que satisfaça não somente suas necessidades vitais, mas os recompense por seus esforços e suas realizações”.

Isto quer dizer que o trabalho é o único fator da riqueza e da produção, sem haver outros. Karl Marx não diria melhor. Apenas, Marx é mais lógico do que Perón, tirando deste princípio a consequência natural de que os operários devem ser os donos dos produtos, mediante a eliminação completa da propriedade privada dos bens de produção. Perón não vai tão longe, e tira uma conclusão mais modesta, quase aceitável: a sociedade deve dar aos trabalhadores remuneração material que satisfaça não somente as suas necessidades vitais, mas os recompense por seus esforços e realizações. Contudo, qual a extensão desta recompensa, partindo-se do princípio do trabalho como fator exclusivo de riqueza? É evidente que, segundo este princípio, todas as demais classes da sociedade nada mais são do que parasitárias, e não deveriam existir numa sociedade bem organizada. O ideal seria uma coletividade proletária, a ser obtida através da ditadura do proletariado.

Estamos assim diante de mais uma manifestação do fenômeno social mais típico da idade contemporânea: a idolatria do trabalho. A humanidade tirânica, que não quer reconhecer superioridades, mas quer realizar de si mesma o seu paraíso e a sua redenção, apela para o trabalho, a força igualitária que está ao alcance do ínfimo dos homens, como fonte originária de todos os valores. E não é de estranhar que, tendo apelado para uma tal divindade, acabe escrava da força bruta.

O trabalho, de si mesmo, é radicalmente incapaz de originar qualquer valor ainda mesmo um valor econômico. Que valeria para uma tribo africana todo o aparato de uma civilização material? O que mantem de pé a estrutura da economia moderna é toda a nossa tradição de cultura para qual são devidamente apreciados os valores da civilização material. O que não se aprecia, o que não se deseja, não tem valor econômico e orgânico, os fatores culturais tem uma influência assinaladíssima, muito maior que o maior trabalho, na determinação dos valores econômicos. Ora, a elaboração da cultura, enquanto tal, não exige trabalho, no sentido “trabalhista” da expressão.

Aqui tocamos numa ambiguidade envolvida entre os múltiplos sofismas do princípio em discussão. A palavra trabalho se aplica tanto ao trabalho espiritual como ao trabalho material, mas em sentidos profundamente diferentes, que é preciso distinguir cuidadosamente para não cairmos nos piores erros. O trabalho espiritual é imanente, qualitativo, [ilegível no original devido a problema gráfico, n.d.c.]; o trabalho material é transitivo, quantitativo, mecânico. O trabalho espiritual é da ordem da ação; o trabalho material o é da operação. O trabalho espiritual supõe um certo ócio, despreocupação das contingências e necessidades materiais; o trabalho material é essencialmente “negócio”. O trabalho espiritual é “liberal”; o trabalho material é de sua própria natureza “servil”. O trabalho espiritual não viola a lei do repouso dominical, mas o trabalho material o faz. Ora, os trabalhismos e socialismos fazem, de coisas tão díspares, espécies de um só gênero, e, o que é ainda pior, põem o acento na significação material, dando ao trabalho espiritual um caráter proletário.

Mas, como dizíamos, o trabalho é radicalmente incapaz de originar mesmo um valor econômico. O que o trabalho faz é, apenas, ocasionar tal valor. Quanto aos demais valores o trabalho é só um meio de realizá-los materialmente e o faz na medida em que se subordina a eles. Desta forma, o trabalho não tem um valor próprio, intrínseco, mas recebe o valor dos fins que se propõe. Um objeto não é bom apenas por ter sido trabalhado, mas por ter sido “bem” trabalhado; e o acento recai no “bem” e não no “trabalhado”.

Além disso, o trabalho não beneficia os valores em si mesmos, mas nos benefícios a nós, proporcionando-nos a fruição dos valores (e isto mesmo só em relação aos valores cuja realização concreta depende do trabalho). Em si mesmo, o trabalho é uma força que tanto se pode aplicar ao bem como ao mal, à construção como à destruição, à civilização com à barbárie. E ultimamente tem servido mais à barbárie do que à civilização precisamente porque tem querido erigir-se em valor absoluto, em lugar de subordinar-se aos verdadeiros valores.


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