Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Justiça maior do que a dos

escribas e fariseus

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 9 de fevereiro de 1947, N. 757, pag. 5

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Fruto da ignorância ou má fé, constantemente estamos a encontrar a afirmação de que na solução da questão social, a caridade deve ceder lugar à justiça. Isto é, a reestruturação dos quadros sociais deve decorrer de um direito e não da caridade feita ao próximo.

Pondo de lado os que sustentam esta opinião por mero sectarismo e ódio à ordem social preconizada pela Igreja, procuremos destruir o equívoco em que muitos podem andar neste assunto, vítimas que são de uma confusão de conceitos.

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Em primeiro lugar, vejamos como a virtude teologal da Caridade se acha entrelaçada com a virtude moral da justiça.

E assinalemos antes de tudo que a Caridade é o fundamento mais firme da vida cristã “sem a qual ou não há virtude alguma, ou apenas virtudes estéreis e sem fruto” (Leão XIII na Encíclica “Sapientiae Christianae”). De modo que não se pode falar em solução cristã da questão social sem colocá-la sobre esse fundamento da Caridade, sem o qual todos os esforços serão estéreis e sem fruto.

Além dos nossos deveres de justiça para com Deus, vemos que a virtude da justiça está destinada a manter a paz e harmonia entre os homens, fazendo que cada um respeite as pessoas, atribuições, faculdades e bens legitimamente adquiridos e possuídos por outros. E os elementos componentes da virtude da justiça podem ser assim resumidos: praticar o bem e evitar o mal.

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Como sabemos, os preceitos do Decálogo são destinados (erro tipográfico do original impresso, n.d.c. - ...)rar o cumprimento dos preceitos da Caridade – visto que todos os dez Mandamentos estão resumidos no amor de Deus e no amor do próximo, como reflexo do amor de Deus - mas ao mesmo tempo todos esses preceitos são relativos à virtude da justiça. Com efeito, sendo os mandamentos do Decálogo primeiros princípios da lei moral, devem ter por objeto matéria de justiça e a justiça se incarna no conceito de coisa devida e na vontade de dá-la, chave das relações humanas fundadas na virtude.

Eis porque, referindo-se aos Mandamentos, disse Nosso Senhor: “Declaro-vos que se a vossa justiça não for maior que a dos escribas e fariseus, não entrareis no reino dos céus”. Não é, portanto, sem razão que a piedade é indicada por São Tomás de Aquino como o dom do Espírito Santo correspondente à justiça.

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Um dos efeitos mais importantes da Caridade, como virtude, é a Misericórdia, que representa por excelência a virtude de Deus, não porque seja Ele capaz de sentimentos afetivos de dor ou tristeza ou comiseração, mas pelos benefícios que concede por impulsos do seu amor.

Ao exclamar, inspirada pelo Espírito Santo, que “o nome de Deus é santo e sua misericórdia se estende de geração em geração, sobre todos aqueles que o temem”, leva-nos a Santíssima Virgem a concluir que, para os que não temem a Deus, lhes está reservada, não a misericórdia mas a justiça do Altíssimo, como réus que são do crime de atentar contra o direito natural, que nos manda amar a Deus e ao próximo.

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Afirmamos que o dom do Espírito Santo relativo à virtude da justiça é a piedade. Por divina disposição, o dom correspondente à Caridade é o dom da Sabedoria. O vício oposto a este dom consiste em se querer formar juízo cabal de uma coisa sem ter em conta o destino que Deus lhe assinalou.

Cometem essa suprema insensatez todos aqueles que forjam planos de reformas sociais ou políticas ou ajustam seus projetos e realizações sem lembrar-se de Deus ou prescindindo dEle.

Vivem a cair nesse tremendo erro os chamados homens eficientes e peritos no manejo de negócios e de ciclópicos empreendimentos sociais, se porventura fizerem abstração dessa destinação eterna da vida humana.

Afastando-se de Deus, afastando-se de sua lei moral, da prática das virtudes, o homem não consegue orientar-se no caminho da verdadeira felicidade, concentrada no seu fim último extraterreno. Daí todas as loucuras e alucinações que lançam o mundo no caos em que agora se debate.

Eis porque diz a Igreja, pela voz de seu chefe, que “o reconhecimento dos direitos reais de Cristo e a volta dos particulares e da sociedade à lei de sua verdade e de seu amor, são a única via de salvação”.

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Para assegurar a necessária reforma social, é mister que a lei da justiça se una à lei da caridade, “que é o vínculo da perfeição”. Como se enganam os reformadores incautos, que desprezam soberbamente a lei da caridade, cuidando apenas de fazer observar a justiça comutativa!

Certamente, a caridade não deve ser considerada como uma substituição dos deveres de justiça que injustamente deixam de ser cumpridos. Entretanto, mesmo supondo que cada um dos homens obtenha tudo aquilo a que tem direito, sempre resta para a caridade um campo dilatadíssimo. A justiça sozinha, mesmo observada com rigor, pode, é verdade, fazer desaparecer a causa das lutas sociais, mas nunca fará unir os corações e abrandar os ânimos. Pois bem, todas as instituições destinadas a consolidar a paz e promover a colaboração social, por bem concebidas que pareçam, recebem sua principal firmeza do mútuo vínculo espiritual que une os membros entre si: quando falta esse laço de união, a experiência demonstra que as fórmulas mais perfeitas não têm êxito algum. A verdadeira união de todos em um mesmo bem comum somente pode ser alcançada quando todas as partes da sociedade sintam intimamente que são membros de uma grande família e filhos do mesmo Pai celestial, mais ainda, um único corpo em Cristo (Pio XI na Encíclica “Quadragesimo Anno”).

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E a caridade não é uma pura abstração, uma pura atitude em relação a Deus e ao próximo. Deve concretizar-se em obras. Obras de amor ao próximo representadas pela assistência tanto preventiva quanto curativa ou simplesmente paliativa. Pela caridade podemos, e em determinadas ocasiões devemos querer bens temporais para o nosso próximo, quando úteis e convenientes ou quando indispensáveis para viver e para praticar a virtude. E assim como a severidade não é alheia à caridade, devendo por exemplo, os governantes “mesclar a caridade paterna com a severidade que for necessária” (Encíclica “Diuturnum”), do mesmo modo essas obras de beneficência quando necessárias e imprescindíveis, ultrapassam o âmbito de mera obra de caridade, nela intervindo a virtude da justiça.

Não pode, portanto, ser esquecido o preceito da Caridade na solução do problema social. Mesmo porque “...mais importante para remediar o mal de que tratamos (o comunismo), ou, pelo menos, mais diretamente ordenado a curá-lo, é o preceito da caridade. Referindo-nos a essa caridade cristã “paciente e benigna”, que evita toda aparência de proteção envilecedora e toda ostentação; essa caridade que desde os começos do Cristianismo ganhou a Cristo aos mais pobres entre os pobres, os escravos; e damos graças a todos aqueles que nas obras de beneficência, desde as Conferências de São Vicente de Paulo até as grandes e recentes organizações de assistência social, têm exercitado e exercitam as obras de misericórdia corporal e espiritual” (Pio XI na Encíclica “Divini Redemptoris” contra o comunismo).

Que em nosso conceito de justiça social haja, portanto, um lugar bem amplo para a mútua caridade “que é o caráter distintivo cristão”.


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