Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
A abominação da desolação

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 17 de novembro de 1946, N. 745, pag. 5-6

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Prosseguem as marchas e contramarchas do democratismo francês, conforme planos previamente estabelecidos. E a vitória eleitoral dos comunistas coloca a Filha Primogênita da Igreja na iminência de ser governada por um gabinete preponderantemente esquerdista.

Esse opróbrio não é porém muito maior que aquele que vem perseguindo a pátria de São Luís desde que as rédeas de seu poder político passaram para as mãos do facciosismo sectário.

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Relembremos o desastre do “ralliement” no início deste século, para mostrar o grau de responsabilidade dos católicos nesses repetidos avanços da causa revolucionária em todo o mundo, pelo fato de não procurarem em primeiro lugar o Reino de Deus e Sua justiça.

Segundo Aventino, no livro “Le Gouvernement de Pie X”, “o grande erro dos católicos franceses foi confundir o ‘ralliement’ com uma espécie de canonização da República, sancionada pelo Papado. Entre os numerosos escritos que foram publicados a esse respeito, temos sob os olhos um artigo aparecido em “Etudes” de 20 de julho de 1908, sob a assinatura de Maurice de La Taille. O autor mostra, por meio de documentos oficiais, que o ‘ralliement’ não foi, no espírito de Leão XIII, senão um pedido aos católicos de fazer praticamente e temporariamente abstração de suas esperanças e preferências políticas: no domínio da ação prática, o interesse superior da religião exigia dos católicos, naquele momento, que se abstivessem de toda luta que os pudesse dividir ou enfraquecer”.

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Na Encíclica “Au milieu des solicitudes”, de 16 de fevereiro de 1892, em que Leão XIII tentara promover essa união dos católicos franceses no campo político e social, depois de fazer a necessária distinção entre os poderes constituídos e a legislação, mostrava o Santo Padre que sob um regime cuja forma é excelente, a legislação pode ser detestável; ao mesmo tempo que, pelo contrário, sob um regime cuja forma é imperfeita, pode ser excelente a legislação dele emanada. De onde resulta que, na prática, a qualidade das leis depende mais da qualidade dos homens que da forma do poder. E acrescentava Leão XIII que o respeito que se deve aos poderes constituídos não pode implicar nem o respeito, nem muito menos a obediência sem limites a toda e qualquer medida legislativa emanada desses mesmos poderes.

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Ora, a França já era então governada por conjurados maçônicos. Levados por falsos líderes da escola de um Marc Sangnier, os católicos franceses se entregaram, de mãos amarradas, aos sectários que conduziam os destinos políticos daquele infeliz país. E o grande mal da incompreensão que dominou o “ralliement” foi esse submissionismo, que reduziu a França ao caos atual. Vejamos, porém, como Aventino já previa essa derrocada:

“As rivalidades políticas foram, apesar das numerosas advertências dadas de 1903 para cá, a principal causa da fraqueza dos católicos contra as forças inimigas. O ‘ralliement’ com todos os efeitos do mais funesto submissionismo, havia se convertido em um dogma que hipnotizava toda energia diante da miragem da legalidade. O Papa (Leão XIII) havia dito, cerca de cinco anos antes, que a defesa religiosa devia passar à frente de qualquer outra consideração; a Igreja sempre ensinou que não se devem obedecer as leis más, isto é, as leis  que lesam os direitos da consciência; Paris havia rompido todos os laços com Roma e fazia guerra ao catolicismo; o “Bloco” (maçônico) havia multiplicado suas leis sectárias, e preparava outras perseguições odiosas. Pio X havia dado o exemplo da resistência às leis injustas, mas tudo se quebrava diante do fetichismo do ‘ralliement’ e da legalidade; incapazes de obrigar os legisladores a respeitá-los, os católicos se achavam mais dispostos a adaptar sua consciência às necessidades da lei e a censurar a intransigência da Santa Sé. Queria-se que o Papa pronunciasse por sua vez as palavras sacramentais: “o ‘ralliement’ está morto”. Para que serviria isto? Já fizera o “Bloco” essa afirmação a 6 de dezembro de 1905.

“Pio X, para o qual a política, não nos cansamos de repetir, era apenas um acessório, não podia assumir posição tão marcada a propósito de uma questão puramente política.

“De um lado, achava-se ele diante de uma situação de fato: existia um governo em França que havia várias vezes e publicamente declarado ignorar o Papado e que agia nesse sentido; o efeito lógico, automático, dessa declaração e dessa atitude devia ser que Roma, de seu lado, ignorasse a natureza e a forma desses poderes públicos e não tivesse que tomar conhecimento de suas ações senão quando elas interessassem aos católicos. Por outro lado, Roma não possui todos os elementos desejados para apreciar o valor prático de todas as formas teóricas do governo. As palavras república, império, monarquia, tomadas de um modo abstrato, nada significam do ponto de vista da Igreja. Tal monarquia, cuja política esteja em contradição com as leis morais e religiosas, será, do ponto de vista romano, inferior a toda república que, como por exemplo a antiga República de Veneza, respeite e faça respeitar essas leis; entre uma boa monarquia e uma boa república, Roma não se pronuncia; é uma questão que diz respeito a cada povo em particular, não sendo os povos feitos pelos governos, mas os governos pelos povos“.

Poderia a Igreja desejar que os católicos aceitassem uma forma de governo indissoluvelmente ligada a um fundo mau ou evitar que combatessem essa forma ao resistir a esse fundo mau que é a medula do regime republicano francês? Responde-nos Aventino:

“Leão XIII não teve a este respeito um modo de ver diferente do de Pio X. Lemos, com efeito, em um relatório do Sr. Misard as palavras seguintes:  ‘O Papa recordou que não havia cessado de convidar os católicos a aceitar a República, mas uma República cristã, herdeira das tradições e continuadora da missão confiada à grande nação católica que é a França. Se se trata, porém, de uma República em que prevalecem o espírito de seita e as paixões de inimigos irredutíveis da Igreja e do cristianismo, como se poderia esperar do Soberano Pontífice que ele convidasse os fiéis a se agruparem em torno dela?”

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Toda ação social se destaca da política; todo regime segue o destino da ação social com a qual se identifica.

Eis porque a carta encíclica “Notre Charge Apostolique” é não somente a condenação do “Sillon”, golpeado nominalmente porque havia oferecido mais vasto exemplo concreto de um movimento infectado de modernismo social. Este documento indica um vício fundamental de toda ação social e, por conseguinte, de todos regimes que forem contaminados pelo democratismo.

Não se deve confundir democracia cristã com o democratismo cristão do Sillon nem com a democracia leiga.

A democracia cristã, que melhor deveria ser denominada, para evitar todo equívoco, demofilia cristã, se acha baseada sobre o princípio católico de caridade e de justiça, sobre uma ação social católica que se manifesta de alto para baixo, por meio de todos os degraus da organização social, detentores e transmissores do princípio de autoridade. Ela “mantém a diversidade das classes, que é seguramente própria da sociedade bem constituída e deseja para a sociedade humana, a forma e o caráter que Deus, seu Autor, lhe imprimiu”. Podemos ter, sob todos os Pontificados possíveis, democratas cristãos, se nos conformamos com estes princípios.

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O democratismo cristão, filho da democracia leiga, deseja entrar na sociedade com toda a bagagem das falsas doutrinas criadas pela Revolução por seus precursores filosóficos, pelos teóricos de idéias vazias, pretensamente humanitárias: liberdade, igualdade, fraternidade, emancipação política, econômica, intelectual, abolição ou deformação do princípio de autoridade pela delegação divina, povo soberano, nivelamento das classes. Os católicos têm o dever de rejeitar esse democratismo. Pio X já havia feito esta advertência na Encíclica “Jucunda sane”.

Se a palavra república em França não pode ser separada da palavra democratismo, é porque a verdade política se acha, para esse país, fora da República.

Não é a Igreja que o proclama; os fatos falam por si de modo eloquente.

A única coisa que Roma podia verificar e dizer, é se os atos dos governos se achavam conformes às leis divinas e em que medida podem ser aceitos pelo povo.

Em seu discurso de 19 de abril de 1909, Pio X foi obrigado a voltar a esta questão, precisando o que já havia dito antes.

A Igreja, fonte e princípio da autoridade e do amor, nos falou ainda, pelos lábios do Papa, de submissão e recomendou que se desse a César o que era de César, mas também nos indicou quais são os limites dessa submissão, em que medida e em que condições os poderes públicos tem direito à veneração e ao amor dos povos; a Igreja nos falou em submissão, porque ela não fala a linguagem revolucionária; mas ao falar em submissão, Ela não queria dizer submissionismo; falava em submissão, mas condicionava o tributo de amor e de veneração que os católicos devem ao Estado.

Condenava a Igreja a idolatria, como sempre. E se certos católicos, quando o Estado ultraja tudo o que há de mais sagrado, desejam-lhe conceder por acréscimo um tributo de submissionismo e de idolatria, caem sob os golpes de um ou outro dos qualificativos contidos no discurso pontifício: hipocrisia, interesse ou servilismo.

Pio X recordou, nessa ocasião, o episódio de Jesus Cristo ao se acercar de Jerusalém, da qual previa a ruína próxima; chora de dor o Divino Mestre ao pensar que a cidade ingrata, amada e favorecida por Deus, havia abusado de tantas bondades e não soubera reconhecer os benefícios da visita do Redentor.

Jesus Cristo chorou, mas o destino de Jerusalém prosseguiu. Nessa evocação do passado o Papa profetizava de certo modo o que havia de acontecer, o dia em que o patriotismo francês e católico viesse a falir. Se o título de Filha Primogênita da Igreja concede direitos, como Jerusalém possuía, ele impõe deveres, dos quais o esquecimento pode acarretar duras consequências”.

Saberão os católicos franceses tirar proveito dos erros do passado e reagir contra a marcha da revolução sectária, cujo início foi o democratismo de 1789 e o fim será o totalitarismo socialista, ambos unidos como a larva à bruxa? Que seja assim evitado à França o destino da Cidade Santa, mesmo porque não faltam indícios do papel providencial que lhe estaria reservado na defesa da civilização católica.