Plinio Corrêa de Oliveira
Nova
et Vetera
Legionário, 10 de novembro de 1946, N. 744, pag. 5 |
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Da moderna propaganda dirigida podemos dizer que nunca tão poucos enganaram a tantos com maior desfaçatez e com mais extensos e poderosos recursos técnicos. Neste século iluminadíssimo dir-se-ia que os agentes dessa propaganda, na ausência de base honesta para a difusão de suas idéias e de sua campanha, empregariam a mesma parafernália dos prestidigitadores e escamoteadores profissionais, isto é, em vez de fatos e argumentos, usariam a clássica cartola e o pó de pirlimpimpim. Só assim conseguiram desfigurar os acontecimentos e transfigurar em heróis e em notabilidades internacionais notórios bandidos e mediocridades desconhecidas. * * * O Brasil não está imune dessa propaganda sectária. Deixemos o presente e lancemos os olhos sobre o passado. Um exemplo entre vários: o caso de Felipe dos Santos e da sedição de Vila Rica em 1720. O livro didático “Festas Nacionais” assim se expressa sobre Felipe dos Santos: “Foi o primeiro mártir da independência nacional atado vivo à cauda de quatro fogosos animais bravios, arrastado pelas ruas acidentadas de Vila Rica. Consumado o suplício, o corpo dilacerado foi esquartejado e atirado em pedaços ao pasto das aves de rapina”. E o pintor Antonio Parreiras perpetuou a glória desse arruaceiro em tela encomendada pelo governo de Minas. Aqui, porém, apenas aparece um cavalo. E o “primeiro mártir da independência nacional” está cercado por uma escolta de “dragões da Independência”! Entre outras vozes que se vem levantando pelo restabelecimento da verdade a respeito de tal episódio, se acha a do historiador Feu de Carvalho. Esse honesto e consciencioso estudioso do nosso passado, principalmente pelo seu “Ementário da História Mineira”, aduz irrefutável documentação tendente a fazer riscar de nossos livros históricos, e principalmente dos escolares, o grande e monstruoso erro de se atribuir a Felipe dos Santos o papel de precursor de nossa independência. Já em 1931 dizia o não menos credenciado sr. Afonso de Taunay: ‘Faz-se hoje, e cada vez mais imperiosa, a necessidade de ouvir a voz dos Arquivos ameaçando derrocar as fantasias e patranhas dos homens de má fé. Nos nossos anais brasileiros tão pouco extensos ainda, exemplos há diversos, destas restaurações da verdade, algumas já em via de processo, outras, mais dia, menos dia, a se encetar e executar’. “Assim, parece que breve se dará com esta história pitoresca da conhecida revolta de 1720, nas Minas Gerais, condenada, de uma vez para sempre, a cair das eminências de um movimento precursor da independência brasileira à vulgaridade de um motim qualquer, de origem fiscal e tributária. “Esse Felipe dos Santos Freire, filho de Cascais, arvorado, de uns anos para cá, em nobilíssimo paladino das nossas liberdades pátrias, começa a aparecer-nos como realmente era. Péssimo sujeito, egresso do lar, fugido à família e sobretudo às justiças do Reino e alçado régulo no território aurífero, deram-lhe os fantasiosos e os nativistas arroubados, ares de precursor da independência. “Teve dentro em breve, o nome aureolado pelo prestígio do martírio em prol da secessão do Brasil”. Eis como se forja um “mártir” e um “herói”. “Mas ninguém jamais cuidou de explicar como, ao ocorrer a revolta, encabeçada por este português de péssimos precedentes, foi ela encontrar coesa, compacta, em torno da autoridade do Conde de Assumar, representante legítimo do poderio lusitano, a totalidade dos paulistas do território de Minas. No entanto, no dizer dos falseadores das coisas da História, teve a revolta de Felipe dos Santos a mais acentuada feição nacionalista! Só se em 1720 foram os brasileiros os que tenazmente se opuseram ao separatismo de alguns portugueses péssimos...” Esse motim de Vila Rica, longe de ter um fundo patriótico ou nacionalista, foi uma vulgar arruaça de súbditos portugueses contra seus superiores hierárquicos na colônia. E Dom Pedro de Almeida, o hábil e enérgico Conde de Assumar, estava no seu dever em reprimi-lo. Como é sabido, durante essas perturbações, o povo de Vila Rica foi à Vila do Carmo, onde se achava o Conde de Assumar, a fim de lhe apresentar suas exigências. Delas se fez um termo que prova como é ridícula a versão segundo a qual estaria nos desígnios dos sediciosos proclamar uma república democrática, e deposição do rei na pessoa de seu governador. Com efeito, indaga Feu de Carvalho, como é que na cláusula quarta dessa proposta “Queria esse mesmo povo assegurar à sua Majestade as trinta moedas de ouro?” E na cláusula quinta, como explicar que republicanos extremados fizessem a seguinte declaração: “Queria esse mesmo povo, para o serviço de Deus Nosso Senhor e de Sua Majestade D. João V, que Deus o guardasse e a conservação do Governo da Colônia”? Finalmente, como explicar que na cláusula duodécima republicanos exaltados, que se insurgiam contra a autoridade do Governo e, portanto, do rei pedissem ao mesmo governador em nome deste mesmo rei, “Que Deus o conservasse, lhes concedesse o perdão geral, selado com as armas reais e ao som de caixas fosse publicado nos lugares públicos”? * * * Conhece-se o desfecho desta comédia. Os cabeças do movimento, alguns potentados portugueses, foram presos em Vila Rica por ordem do Conde de Assumar, visto continuarem os tumultos praticados à noite por escravos e apaniguados, apesar das promessas feitas pelo governador de atender a algumas das exigências desses reinóis. Presos os cabeças, Felipe dos Santos, mero comparsa secundário, foi aliciar gente em Cachoeira do Campo para libertá-los. Vê-se, portanto, a falta de apoio popular que a mazorca tinha no próprio teatro dos acontecimentos, acontecimentos em que encontramos, “exclusivamente, negros e portugueses, mesmo porque, de brasileiros, só havia um ou outro paulista ou baiano em Vila Rica”. Luiz Soares de Meireles, homem do povo, prendeu em flagrante o português Felipe dos Santos em Cachoeira do Campo, quando tentava levantar o arraial. Diante desse flagrante foi o arruaceiro processado sumariamente e enforcado em uma polé. O jesuíta Antonio Corrêa, contemporâneo dos acontecimentos, assim narra o fato em seu “Discurso Histórico Político”: “À vista de sua confissão, e ser apanhado em flagrante foi no mesmo dia, com aplauso dos moradores, enforcado e esquartejado”. * * * Quanto ao apregoado confisco dos bens de Felipe dos Santos, estamos diante de nova balela. O governo colonial nada pôde confiscar, porque tudo que possuía Felipe dos Santos se achava penhorado. Confisco houve dos bens dos arruaceiros portugueses mais graduados. Resta destruir a lenda segundo a qual Felipe dos Santos teria sido arrastado pelas ruas de Vila Rica por cavalos bravios. A sentença de Felipe aos Santos, que se acha na secção de manuscritos da Biblioteca Nacional, determinava que “com baraço e pregão corresse as ruas, sofresse morte natural e fosse esquartejado”. Lavrada a sentença, ordenou o governador que “fosse arrastado pelas ruas até o lugar público do suplício”. Racionalmente deve-se compreender: arrastado pelos soldados até à forca, e não por cavalos. É a expressão usada por Camilo Castelo Branco, em “O Regicida”: “... como tal o condenam e mandam que com baraço e pregão pelas ruas públicas, e costumadas seja levado à rasto à forca...” * * * Entretanto, a causa da demagogia sectária precisava de um mártir. E, com esse “arrastar pelas ruas”, do resto se encarregou a fantasia dos mesmos escribas que transformariam os salteadores da Bastilha em heróis da libertação universal contra a “tirania” e a “opressão”, como se os atuais régulos “republicanos” e “democráticos” não colocassem em um chinelo o poder pessoal dos antigos soberanos... |