Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Os testas de ferro de 1789

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 3 de novembro de 1946, N. 743, pag. 5

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Há, nos tempos que correm, uma certa tendência em aceitar os fatos em seu aspecto meramente epidérmico. As coisas são porque são, os homens agem de certa e determinada maneira, movidos simplesmente por suas cabeças ou arrastados por um conjunto de circunstâncias meramente casual. Dir-se-ia que até os católicos passaram a raciocinar como o mais bronco infiel muçulmano.

Entretanto, nos próprios acontecimentos diários, nas “coincidências” que nos envolvem, quanto material para uma análise mais profunda. E é para ilustrar esta nossa tese, que estamos nos ocupando da influência da propaganda dirigida em torno da tomada da Bastilha, valendo-nos da documentação apresentada por Funck-Brentano, em seus “Segredos da Bastilha”.

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“Assisti a tomada da Bastilha, escreve o Chanceler Pasquier; aquilo a que se chamou o ‘combate’ não teve violência, a resistência foi completamente nula. Deram-se alguns tiros de espingarda que não tiveram resposta, e quatro ou cinco tiros de peça. Conhecem-se as consequências desta pretensa vitória que tanto cumulou de favores os também pretensos vencedores; a verdade, porém, é que o grande combate nem por um momento assustou os numerosos espectadores que acorreram a vê-lo”.

No dia seguinte, porém, tudo mudou. A Bastilha tinha sido ‘tomada de assalto num quarto de hora’, de uma forma heroica e formidável. Os canhões dos assaltantes tinham-lhe aberto larga brecha. As muralhas, era verdade, conservavam-se ainda de pé, intactas; mas isto nada significava, pois os canhões tinham feito a brecha, apesar de ninguém a ver... Falava-se dos instrumentos de tortura que tinham sido encontrados: ‘um corpete de ferro, inventado para prender todas as articulações do homem, mantendo-o numa imobilidade eterna’: era uma armadura da Idade Média, tirada da coleção de armas antigas que existia na Bastilha. Descobriram também uma máquina ‘não menos destrutiva, que foi publicamente exposta, sem que pessoa alguma adivinhasse o seu nome e o fim a que se destinava’: era uma máquina de impressão clandestina, encontrada em 1786, em casa de Francisco Lenormand. Enfim, cavando nos fossos do bastião, encontraram-se as ossadas dos protestantes que outrora ali tinham sido enterrados, porque as idéias da época não permitiam o seu enterro na terra benta dos cemitérios. O espetáculo das execuções secretas, no fundo das masmorras da Bastilha, surgiu em todas as imaginações e fez Mirabeau dizer, num lance demagógico muito de seu feitio: ‘Os ministros não foram previdentes, esqueceram-se de comer os ossos!’

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“Foi laboriosa a organização das listas dos vencedores da Bastilha. Um grande número dos que tinham tomado parte na ação, já dissemos, não desejavam ser conhecidos: podiam-se ver pender das forcas as suas cabeças coroadas de louros. Verdade seja que estes desertores da glória foram rapidamente substituídos por uma multidão de bravos que - desde que se admitiu que os vencedores eram heróis com direito a honrarias, pensões e medalhas - se convenceram de que também tinham tomado parte no assalto e que foram os primeiros. A lista definitiva compreendia oitocentos e sessenta e três nomes.

Vitor Fournel conta em um livro encantador a epopeia burlesca e lamentável dos homens do 14 de julho. É preciso lê-lo. Há nele uma multidão de episódios deliciosos que é impossível resumir. Não brilharam de futuro, nem pelos serviços que prestaram à República, nem pela sua fidelidade aos ‘imortais princípios’, estes fundadores da liberdade. Os Hulin - este, no entanto, portou-se nobremente tentando salvar de Launay, o comandante da Bastilha - os Palloy, os Fournier, o Americano, os Latude e quantos outros! tornaram-se dos mais fervorosos sectários do imperador e, destes, os que sobreviveram, dedicados servidores da Restauração. Sob o Império, os vencedores da Bastilha procuraram ver se conseguiam que a todos condecorassem com a (medalha da) Legião de Honra. Vemo-los requerer pensões até 1833 e – nesta data, quarenta e quatro anos depois – o seu número era de quatrocentos e um. Reaparecem depois em 1848. No orçamento de 1874 fala-se ainda em pensões aos vencedores da Bastilha - de 1780 a 1874 - oitenta e cinco anos (depois da “tomada” em 1789).

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“E é este o ponto de vista alegre de sua história. Teve também um outro doloroso: as suas rivalidades com os guardas franceses, a quem acusavam de lhes terem roubado a glória, e com os ‘voluntários da Bastilha’. Conheceram então o opróbrio e a calúnia e surgiram no seu meio as mais sangrentas dissenções. Havia entre eles verdadeiros vencedores e outros, que sendo também verdadeiros, não eram, no entanto, verdadeiros; há sempre espiões entre os vencedores e os ‘patriotas’. No dia 1º de julho de 1790 mataram dois vencedores à pancada, perto do jardim Beaumarchais, em frente ao local das suas façanhas. No dia seguinte trava-se violenta rixa entre quatro vencedores e alguns soldados. Em dezembro assassinaram dois, perto do Campo de Marte. Nos primeiros dias de 1791, são feridos mais dois e aparece num fosso, próximo da Escola militar, um outro, estrangulado.

Resta apenas explicar esta inacreditável mudança de opinião, esta inesperada lenda que transformou em grandes homens os salteadores de abril, junho e julho de 1789.

“A razão principal encontra-se explicada na passagem, tão realista, da comédia Rabagas de V. Sardou: - 'Mas então em que é que se distingue um motim de uma revolução? - Motim, diz-se quando o povo é vencido e, neste caso, é tudo canalha; revolução quando o povo vence e, então, são todos heróis'.

“Na noite de 14 para 15 de julho, o duque de La Rochefoucauld-Liancourt foi acordar Luís XVI para lhe anunciar a tomada da Bastilha. ‘Temos então uma revolta’, disse o rei. ‘Não, Senhor, respondeu o duque; é uma revolução’."

Dada a vitória dos bandidos orientados por um bando de conspiradores numa cidade desarmada, como era Paris em 1789, do resto se incumbiu a propaganda dirigida pelas forças secretas. E assim surgiu a versão revolucionária da tomada da Bastilha, que não passa de um cínico acervo de mentiras e de deturpação dos fatos.

Mas, passemos a um aspecto mais importante dessa propaganda dirigida.

“Já citamos o estranho episódio da convergência de vagabundos e bandidos em Paris, a partir do início do ano de 1789, provindos não somente das várias partes da França, mas também de países estrangeiros, notadamente da Alemanha. Essa convergência e as tropelias cometidas em Paris fazem supor que essa populaça na aparência desorganizada e em estado caótico era dirigida por alguém. Vimos o papel de Camilo Desmoulins e de outros demagogos revolucionários nessa orientação. Posteriormente, em outras atrocidades, como no assassinato da princesa de Lamballe, vemos que aqueles grupos amotinados e entregues até aos horrores do canibalismo eram dirigidos por homens calculistas e frios, que previam a marcha dos acontecimentos e até o itinerário que os assassinos deviam seguir ao levar a cabeça de sua vítima na ponta de uma lança.

“Ora, como se houvesse um programa preorganizado, vemos o que aconteceu por toda a França em seguida ao motim que causou a tomada da Bastilha.

“Vitor Fournel escreve: ‘Deu-se imediatamente um pânico estranho, extraordinário, fantástico, que atravessou a maior parte da França, como um vento de loucura e que muitos de nós ouvimos contar aos nossos avós com o nome de Dia dos salteadores. Pânico que surgiu em todos os lugares, na segunda quinzena de julho de 1789. De repente, sem se saber de onde, o boato amedrontante cai sobre as cidades e aldeias: os salteadores estão ali, às nossas portas; avançam em multidão, queimando casas, destruindo tudo. Cobertos de pó, anelantes (ofegantes), circulam correios espalhando a terrível nova. A galope, um desconhecido cavaleiro passa, lançando o alarme: - Alerta, às armas! Ei-los!

“Acorrem os habitantes. ‘Nada mais verdadeiro, os bandidos foram vistos, devem estar a uma ou duas léguas, no máximo. O sino toca a rebate, todo o mundo se arma, fecham-se as portas dos baluartes, cada casa se transforma em barricada; os mais atrevidos partem em reconhecimento. Finalmente, nada se produz e nada se vê chegar. Mas o alarme renasce. Os salteadores mudaram de direção, vão chegar, mantenham-se vigilantes!’”

Quem não vê nos fatos assim descritos a ação de uma guerra de nervos? Como seria possível o alastramento geral de um boato tão inverossímil por toda a França? Quando sabemos da influência preponderante das forças secretas na origem e desenvolvimento da Revolução Francesa, quando nos damos conta que já naquela época havia por toda a França uma grande rede de lojas, quando nos lembramos do modo de agir das sociedades secretas, então esse fenômeno que também ficou conhecido pelo nome de ‘O grande medo’ perde toda sua aura de mistério, passando a ser uma simples questão de propaganda dirigida. Fica-se então sabendo de onde partiam os boatos, quem havia enviado esses ‘correios’ e esses cavaleiros que passam lançando o alarme.

“Dá-se, então, nas províncias, o mesmo que já havia acontecido em Paris: o povo, tangido pelo medo, invade os quartéis e toma as armas que encontravam a fim de se defender contra os bandidos. Em meio do povo, quantos emissários das lojas não existiriam para orientar seus “espontâneos” movimentos? Ao lado dessas cenas de pânico começam a surgir os assaltos, assassinatos, pilhagens, incêndios que, então, numa tremenda recrudescência desolaram a França. Gustavo Bord dá-nos desses acontecimentos um quadro empolgante”. Invadem-se os palácios, soltam-se os presos e condenados, a desorganização impera por toda a parte.

E quem teria a lucrar com tudo isto? Quem em seguida estabeleceu o terror para dominar uma situação que o dirigismo tornara caótico? As forças secretas, tendo à frente, como testas de ferro os homens dos “imortais princípios” de 1789.


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