Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Autoridade e livre exame

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 13 de outubro de 1946, N. 740, pag. 5

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Não pode haver aliança entre a Autoridade e o livre exame, dizíamos em nosso último rodapé. Como vimos, a história de nossos males, a datar da queda de nossos primeiros pais, teve início justamente nessa antinomia. Adão foi vítima da tentação do livre exame, ao se rebelar contra a Autoridade de Deus.

O homem é livre de escolher entre sua salvação eterna e sua eterna desgraça, pois Deus, pela Revelação, lhe deu conhecimento de Sua Vontade, de Seus Mandamentos, dos meios que há de escolher para atingir a bem-aventurança. Como fruto da Redenção do gênero humano, fundou Nosso Senhor Jesus Cristo a Santa Igreja, À qual confiou o ingente trabalho de salvação das almas, nova prova de obediência a que nos submeteu como meio de nos beneficiarmos do resgate da queda de nossos primeiros pais através do Sacrifício do Calvário.

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Os males do mundo têm por origem o desprezo da lei de Deus, confiada à guarda da Santa Igreja. E de modo mais imediato, os males do mundo moderno têm por origem o desprezo da Autoridade da Igreja. Durante todas as épocas, desde os tempos apostólicos, sempre existiram na Cristandade os que se sentem pouco à vontade dentro da Igreja, tanto entre os governantes, como Felipe o Belo com os seus legistas, quanto entre os próprios ministros do Senhor, a partir de Judas, o Apóstolo renegado, patrono dos apóstatas e rebelados de todos os tempos. Em função desses falsos líderes políticos e religiosos podemos estudar todas as agitações populares que através da história têm procurado afastar os povos do verdadeiro caminho de salvação.

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Rejeitar o jugo suave e o fardo leve das leis de Deus e da Igreja, corresponde a aceitar a anarquia e o despotismo do demônio. O livre exame, lançando o mundo no caos religioso e social, gera, como reação, a caricatura da Autoridade, que é o totalitarismo. Recusando-se a obedecer à Igreja, um Henrique VIII é sua própria lei e pode fazer o que bem entende de seu ilimitado poder material. Do mesmo modo podemos compreender um Hitler ou um Stalin a tanger multidões que cada vez mais se perdem nas trevas da heresia e do paganismo.

Longe, portanto, de se achar a harmonização da sociedade nesse “get together” dos católicos com os adeptos do erro religioso ou do materialismo, os filhos da Igreja, em vez de assim confirmar em seus erros os transviados, deviam procurar a pureza da doutrina e a inteireza de sua Fé. Tanto é verdade que satanás não expulsa a belzebu, isto é, não será o livre exame que nos livrará da crise de Autoridade pela qual atravessa o mundo, crise de Autoridade legítima que lança os povos nos braços dos aventureiros do totalitarismo e da demagogia.

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Em vão se invocará uma liberdade que não é a verdadeira liberdade dos filhos da luz, mas a licença que precipitou Lúcifer nos abismos. O mundo somente encontrará a verdadeira paz quando voltar ao regaço da Igreja, como tão bem acentua (Mons.) G. Audisio ao discorrer sobre os males da pseudo-reforma protestante em seu estudo sobre o Direito Público da Igreja e das nações cristãs (o qual pode ser encontrado em sua versão original em italiano, bem como em francês sob o título "Droit public de l'église et des nations crétiennes").

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O direito primordial das nações cristãs repousa sobre a seguinte regra: Príncipes e povos, todos devem obediência à Lei de Deus sob a direção da Igreja docente. Renegar a lei positiva de Deus, ou a autoridade viva da Igreja, é subverter o sobrenatural, isto é, a essência e a alma da religião cristã.

Foi o que fez a pseudo-reforma protestante; ela subtraiu da lei de Deus a garantia do sobrenatural e a sujeitou ao indivíduo, a partir do momento em que a subtraiu do ensino autêntico e divino da Igreja. Então cada um se constituiu árbitro à sua maneira, os teólogos do dogma, os príncipes da justiça, e todo individuo do governo de si próprio. Lutero, monge agostiniano, o padre Zwinglio, o arquidiácono Carlostadt, o beneditino Ecolampádio, o dominicano Bucer, o franciscano Munzer, e as hordas que marchavam atrás deles, desligando-se de seus votos, desligando os votos das religiosas, todos interpretavam a lei de Deus sem o ensinamento da Igreja. Acreditais que sua conduta desse causa a um escândalo? Longe disto, era tida como um bom exemplo, pelo qual deviam dar graças a Deus, como o fizeram os luteranos de Wittenberg por ocasião do casamento de Carlostadt.

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Os príncipes não iam muito longe dos monges apóstatas na interpretação da Bíblia e da lei de Deus. Alberto de Brandemburgo reunia em si um misto de príncipe e de religioso, pois que estava ligado pelos votos religiosos na Ordem Teutônica, da qual possuía o comando; liga-se sacrilegamente a uma mulher e se torna senhor da Prússia Oriental, que pertencia à sua Ordem. Por esse gesto consegue aos olhos da pseudo-reforma, um duplo mérito: o de haver calcado aos pés tanto seus votos religiosos quanto a justiça. E quando aprouve ao Landgrave de Hesse desposar duas mulheres, ou melhor ainda, quando Henrique VIII da Inglaterra quis mudá-las à vontade, divorciando de umas, mandando outras ao cadafalso, quando esse novo Tibério ditava ao mais vil dos parlamentos as leis mais tirânicas, faziam esses príncipes outra coisa senão interpretar a lei de Deus à sua maneira?

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Mas se a coisa parecia agradável e justa para os príncipes e para os monges apóstatas, por que não o seria também para o povo? Que necessidade havia de ser pregada aos povos a palavra de Deus, se todos tinham olhos para ler a Bíblia e uma razão ou o Espírito Santo para interpretá-la? Nada, por conseguinte, menos razoável que a inclinação de Lutero, ao escrever sobre o capítulo XV da primeira Epístola aos Coríntios: “A insolência dos nobres e do povo subiu a tal ponto que eles não mais desejam nos ouvir e não mais fazendo menor caso de nossos sermões. Miseráveis! Deixaram de levar em conta a vida futura. Vivem como creem: são porcos e creem tanto quanto os porcos e morrem como porcos”. Eis o retrato dos filhos traçado pela mão do pai. Mas, pela lógica do livre exame, todos tinham razão: o pai tinha razão de pregar, os filhos de não acreditar e de não ouvir.

O protestantismo tem variado singularmente no que diz respeito à soberania. Ora a eleva ao céu, ora a arrasta pela lama. Elevou-a ao céu, para a opor ao Papa. Arrastou-a pelos charcos, para a subordinar a todos os conspiradores ou revolucionários. Calvino, na dedicatória de suas Instituições a Francisco I, por um reflexo do catolicismo, afirma com razão que o rei é ministro de Deus para dilatar o reinado de Jesus Cristo, estabelecido por Deus Pai, Rei de toda a terra. Mas acrescenta que se o rei se afasta da lei de Deus, se torna um bandido e deixa de ser rei; em seguida, comentando o capítulo VI de Daniel, desenvolve livremente seu pensamento: “O príncipe que se insurge contra Deus, quebra ele próprio sua coroa; não mais é nem sequer um homem, não merece tal nome: melhor será cuspir-lhe no rosto que lhe obedecer”.

Daí as duas opiniões extremas do protestantismo: 1º) direito divino imediato dos príncipes, que consequentemente não se acham submetidos a nenhuma jurisdição eclesiástica; 2º) direito de cada súdito de julgar o príncipe e de o considerar desprovido de sua autoridade. A primeira lisonjeava os príncipes, a segunda sorria aos povos que não deixaram de segui-la.

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Antes de Calvino, o próprio Lutero havia fomentado o espírito revolucionário dos povos, com sua furibunda eloquência de taverna. Eis o que escrevia e pregava: “Um rei bom e piedoso é tão raro como uma fênix, desde que o mundo existe. Os reis não passam de loucos e perversos. São os carrascos e os executores da cólera de Deus. É grande esse Deus a quem se tornam necessárias altezas sereníssimas para carrascos e para esbirros” (Op. Luth. Jenae, t. II, p. 181, 182).

É tremenda a torrente de vilanias que Lutero vomitou contra todas as autoridades que existem sobre a terra. Era seu provérbio que não é possível ser príncipe sem ser bandido. Prometia o paraíso aos povos que combatessem os príncipes; e quando suas doutrinas acenderam a mais feroz das guerras, a dos anabatistas e dos camponeses contra seus senhores, prometeu, pelo contrário o paraíso aos príncipes e aos senhores que exterminassem os camponeses.

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De onde podem vir tão brutais contradições em quem pregava sempre a Bíblia e a lei de Deus? De uma causa única, isto é, da supressão da Autoridade divinamente instituída para interpretar a lei de Deus com o espírito de Deus; da natureza da pseudo-reforma, a qual, em vez de corrigir os abusos extirpava as instituições; dessa liberdade perversa, que não é o livre e honesto exercício de seus verdadeiros direitos, mas a invasão dos direitos de outrem, a insurreição e, no pensamento de Lutero, a emancipação absoluta do cristão em relação ao Papa (cisma e heresia), do súdito em relação ao príncipe (anarquia), de todo homem em relação ao direito de propriedade (comunismo), da carne em relação ao espírito (epicurismo), do espírito em relação a Deus (racionalismo).