Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Um enorme rebanho a pastar

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 6 de outubro de 1946, N. 739, pag. 5

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Diz Balmes que o Anjo colocado por Deus com uma espada flamejante à porta do paraíso terrestre é não somente um fato histórico, mas também uma divina advertência aos homens de que serão inúteis seus esforços no sentido de uma volta à perfeita felicidade neste vale de lágrimas.

Lúcifer havia sido vítima do príncipe dos pecados, que é o pecado do orgulho, ao querer se libertar de Deus, ao querer se comprazer em sua natureza de ser criado, vítima, portanto, do naturalismo. Eis porque Leão XIII cita o “non serviam” como a primeira manifestação liberal ocorrida na história do céu e da terra.

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Do mesmo modo, a queda de nossos primeiros pais constituiu uma segunda tentação do naturalismo, ao lhes insuflar o pai da mentira a promessa de que seriam como deuses... Comendo do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, passariam a prescindir da divindade, a constituir em sua própria natureza o objeto de suas cogitações e de sua felicidade. Eis, portanto, de novo o pecado do liberalismo, do racionalismo, a explicar a grande desgraça que caiu sobre os homens com a perda do paraíso terrestre.

E a história da humanidade passou a ser o relato dessa tremenda luta entre os descendentes da serpente, os homens carnais de que seriam figuras representativas Caim e Esaú, e a progênie espiritual d'Aquela que lhe esmagaria a cabeça, figurados em Abel e Jacob. É a velha luta da Cidade de Deus contra a cidade mundana.

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Se se tem em conta a verdade da filiação do liberalismo e de seus subprodutos, que são os totalitarismos da esquerda e da direita, aos princípios nefastos da pseudo-reforma protestante, vê-se como restringem a profundidade do tema tratado os estudiosos que insistem no aspecto de reação contra o capitalismo que apresenta o socialismo hodierno. O amor à verdade colocaria nesta importante pista qualquer sociólogo esclarecido e de reta intenção. Em uma época de confusionismo, de interpretações intencionais e tendenciosas, é dever de consciência - pelo menos dos intelectuais católicos - que além de estudar a face puramente econômica do problema, também investiguem as raízes mais profundas que os erros de nosso século têm nesta vasta conspiração universal urdida pelo espírito das trevas. Não se pode desprezar, em um estudo como este, o caráter conspiratório dos atuais movimentos que apaixonam os povos.

A própria guerra que acaba de avassalar o mundo, não seria aquela conflagração mundial prevista e preconizada por Lenine como etapa necessária à obra revolucionária, mediante a destruição dos últimos redutos da “resistência burguesa”? Da Revolução Francesa disse Joseph de Maistre que foi satânica. Desta guerra e das confusões que tem gerado, que poderemos dizer?

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Não se nega a possibilidade da existência de quem esteja de boa fé no erro socialista, como aliás em qualquer outro. Não é menos verdade, porém, que aquele que recusa submeter o entendimento às verdades sobrenaturalmente reveladas o faz sempre por culpa própria, visto Deus conceder a todos os homens a necessária graça atual. Aí que nem infiéis, nem os ímpios, nem os hereges, nem os apóstatas podem fazer verdadeiros atos de Fé, por não possuírem a necessária virtude sobrenatural, no que imitam a fé dos demônios. E devemos também distinguir o pagão que nunca entrou em contato com o Evangelho, daqueles que em plena civilização católica vivem como pagãos, desprezando parcial ou totalmente as verdades reveladas e fundando seu assentimento, quando se dão ao luxo de crer em alguma coisa, não na autoridade divina, mas no próprio juízo.

O que também é inegável é que essas enormes multidões, no meio das quais pode existir quem esteja de boa-fé, são tangidas por orientadores de incontestável má fé, que sabem quais os verdadeiros desígnios dessa conjuração e dessa agitação social, e que constituem a facção dos reais inimigos da Igreja. Eis a quem devemos combater e a quem será temerário e imprudente fazer concessões.

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Para os chefes revolucionários, o povo não passa de um rebanho, que pode ser agitado de um lado para outro mediante uma propaganda inteligente, feita à custa de muita audácia e de alguns “slogans” bem escolhidos. A célebre opinião pública é forjada entre quatro paredes por alguns cérebros em conluio, e o maior exemplo desses pronunciamentos populares insuflados por conspiradores se acha no plebiscito do povo judeu ao escolher, por aclamação estrepitosa, Barrabás a Jesus Cristo.

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À esquerda, Honoré Gabriel Riqueti, conde de Mirabeau (1749-1791) e à direita Sébastien-Roch Nicolas, que tomou posteriormente o nome de Nicolas de Chamfort (1740-1794), ambos importantes figuras da Revolução Francesa

“Devemos temer, dizia Mirabeau a Chamfort, a oposição da maioria da nação, que não conhece nossos projetos e que não estará disposta a nos prestar seu concurso. Faremos que ela o queira e a obrigaremos a dizer o que ela jamais pensou. A nação é um grande rebanho que não sonha senão em pastar e que, com bons cães, os pastores levam até onde bem desejam”.

É essa realidade política que um católico deve ter em mente ao enfrentar o problema do socialismo, quer seja ele revolucionário e de ação direta, como o nazismo e o comunismo, quer seja evolucionista, parlamentar e fabiano, como o trabalhismo de Harold Laski. Sobretudo não nos deve seduzir qualquer laivo de ideia cristã que se encontre nesses erros sociais. Devemos nos lembrar que foi pela exploração dessa tecla que um judas como Von Papen fez vingar a propaganda nazista em certos meios católicos da Alemanha, apesar das advertências do Episcopado e da própria Santa Sé. E é essa a tática atual do comunismo e de outras correntes socialistas, algumas das quais se intitulam “cristãs”, sem nos referirmos aos salamaleques feitos ultimamente pela União soviética aos cismáticos.

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Dir-se-á que até mesmo na alma daqueles que renegaram o seu Salvador se acha ainda enraizado o Cristianismo. Uma coisa, porém, é Nosso Senhor Jesus Cristo estar na raiz, outra será a existência de simples restos apodrecidos da raiz, sem a árvore que não pode viver sem a seiva vital.

Mesmo porque idêntica afirmação se poderia fazer a respeito da (......) porque São Tomás esclarece (......) de Ario, de Pelágio, de Nestório, e de outros heresiarcas tais como Wiclef, João Huss e Lutero. Todos tinham restos de cristianismo enraizados em suas almas, tanto que não deixaram de fundar seitas e doutrinas de fundo cristão, apesar de condenados pela Igreja... Neste andar Hitler vai à frente de Marx, pois enquanto este era desastradamente materialista, aquele em suas arengas, inclusive na última, não deixou de fazer alusões à Providência... E por que se há de estabelecer distinção no essencial entre o socialismo nazista e o socialismo marxista?

O socialismo moderno é uma seita, como o definiu Leão XIII na Encíclica “Quod Apostolici”, seita nefasta, “pestilência mortal que se infiltra pelos membros mais profundos da sociedade humana”.

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No século passado (XIX), os católicos recusaram uma aliança oferecida pelos protestantes para o combate ao socialismo. Não pode haver aliança, dizia então Veuillot, entre a Autoridade e o livre exame. Hoje vemos o triste espetáculo da adesão dos cismáticos russos e dos elementos mais representativos da seita anglicana ao socialismo soviético, além da vergonhosa apostasia de elementos católicos, de que é exemplo frisante o ex-Bispo de Maura.

Estamos diante da grande afinidade entre os erros religiosos e os erros sociais já assinalada nas antigas heresias, todas elas com as notas características do panteísmo, do ponto de vista teológico e do socialismo do ponto de vista social.

Mas o Anjo com a espada flamejante continua alerta e não permitirá que esses soberbos transponham os umbrais do paraíso terrestre, uma vez abandonada a porta estreita que nos apresenta o Redentor do mundo para o ingresso no pleno gozo da felicidade para a qual (fomos) criados, que é a bem-aventurança eterna.

Nota: Sugerimos empenhadamente a nossos leitores que não deixem de ler e refletir sobre o histórico discurso de Pio XII aos jornalistas católicos reunidos em Roma no seu IV Congresso Internacional (de 17-2-1950) a respeito da imprensa católica e a opinião pública. O mesmo encontra-se disponível no site do Vaticano no idioma original em que foi proferido (francês), bem como em italiano e em espanhol. Caso alguém encontre alguma tradução fidedigna em português, desde já agradecemos sua indicação.