Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
A quintessência da verdadeira Caridade

 

 

 

 

 

 

Legionário, 29 de setembro de 1946, N. 738, pag. 5

  Bookmark and Share

 

Diante do espetáculo das lutas fratricidas que presenciamos, é imperioso que os católicos se congreguem num esforço comum tendente a salvar a humanidade do caos em que ela cada vez mais se engolfa. Para isto, entretanto, é imprescindível que se fixem as idéias quanto à natureza e origem dos males que nos assaltam e aos meios de combate que devemos empregar.

* * *

Ora, queremos abordar hoje apenas um ponto básico nesta fixação de princípios que é a questão da deturpação moderna do conceito de Caridade. Afastada da verdadeira Fé, é natural que a humanidade também falseie a verdadeira Caridade. E se a Caridade, o amor de Deus e o consequente amor do próximo vêm a ser o principal mandamento e o resumo de toda a Lei e da pregação dos Profetas, se é a Caridade a maior das virtudes teologais, nada pior que a deturpação da Caridade, que a transforma em simples humanitarismo, em mero democratismo social que se propõe resolver o problema da miséria humana por simples meios materiais, embora às vezes se usem como “slogans” a dignidade da pessoa humana, o fim último extraterreno do homem, etc.

* * *

É comum ouvir-se a exposição em cores bem vivas, do estado em que se achava a humanidade antes da Encarnação do Verbo, e o elogio da ação do Cristianismo dos primeiros tempos da Igreja até a Idade Média. Entretanto, no confronto da Cristandade medieval com a sociedade capitalista hodierna, dá-se relevo predominante ao estudo dos fatos econômicos, abordando de modo puramente natural o aspecto filosófico do problema, e em geral omitindo-se completamente um importante elemento perturbador da obra da Redenção, que são os erros religiosos e as heresias surgidos no seio da Igreja desde os primeiros séculos.

Se há um plano de Caridade e de amor que é o plano de Redenção do gênero humano, existe também um plano de ódio, caricatura daquele, e chefiado por Lúcifer e seus amigos, que pode ser entrevisto através do nexo existente nesse espírito herético, uma espécie de corpo místico de satanás, cuja ação vem se exercendo pelos séculos afora, resultando daquela inimizade que Deus colocou entre os descendentes da Santíssima Virgem e os descendentes da serpente.

* * *

Por não ser abordada esta face da questão é que é comum a incompreensão do homem medieval, mesmo entre católicos. Costuma-se ouvir a afirmação de que os católicos medievais, embora mantendo a mesma Fé e a mesma crença dos primeiros cristãos, estavam longe de ter a mesma Caridade. Como a questão da caridade é fundamental, de nada adiantando a Fé sem a Caridade, pois o próprio demônio crê em Deus embora o odeie, vê-se que, se a fé existente nos tempos medievais era a fé operando sem a caridade, quem assim interpreta a história atribui à Cristandade medieval, pelo menos no que diz respeito à sua pujança vital, uma fé que não era a verdadeira fé cristã dos primeiros tempos da Igreja. Eis aí um preconceito antimedieval naturalmente preso às Cruzadas, à Santa Inquisição e ao ânimo combativo de um Carlos Magno, de um São Bernardo, de um São Fernando II, de um São Domingos, de um Gregório VII.

Ora, o espírito de Fé traz consigo outra virtude muito preciosa, que é o profundo horror ao erro e à heresia. Virtude que se vai tornando rara em nossos dias, diz D. Felix Sardá y Salvani, “mas que por isso mesmo é necessário pregar hoje mais do que nunca, dando claramente a conhecer como nela, e não na tolerância revolucionária, se contém o espírito e a quintessência da verdadeira Caridade”.

* * *

O homem medieval, cavalheiresco, generoso e rude ao mesmo tempo, oferecia sua vida pela Fé, lutando contra os inimigos de Deus, que o eram também da sociedade. Se é evidente que os inimigos da Igreja são nossos próximos, também o são os demais a quem eles pretendem enganar e a quem temos de preservar do erro, como bem assinalava São Tomás Morus já em plena Renascença. E assim fazendo, exercemos nossa caridade em primeiro lugar em relação aos membros do Corpo Místico, que não seria verdadeiro corpo se não tivesse esta lei.

Se Nosso Senhor foi à procura da ovelha desgarrada, e se achava sempre disposto a acolher os pecadores, não deixou também de reconhecer a existência de lobos vorazes, que devem ser combatidos em defesa do próprio rebanho e de verberar a hipocrisia da raça de víboras, dos sepulcros caiados que são os fariseus de todos os tempos. Se Deus é a infinita Caridade, também é a infinita Verdade. Donde se depreende que o combate ao erro não somente é compatível com a Caridade, mas lhe é suplemento indispensável.

* * *

Foi essa obra de preservação da Fé que a Cristandade medieval levou a cabo com todo o ardor e entusiasmo. Encaravam a situação religiosa, política e social com realismo, vendo onde existia o mal para o combater, e em grande parte conseguiram, assim, frustrar as maquinações do espírito das trevas, através das conspirações e sublevações heréticas que agitaram o mundo cristão.

E é essa mesma conjuração que ainda hoje põe em prática seus planos, ajudada, sobretudo, pelo enfraquecimento do espírito de Fé entre os povos cristãos. Foi contra o dessoramento da sociedade mediante a infiltração de idéias deletérias que combateu a Cristandade medieval, legando-nos, como fruto dessa luta, a civilização ocidental. E aí está porque não se pode compreender o espírito daquela época sem se fazer o estudo dos erros sociais e religiosos que ela combateu não somente pela pena de seus doutores, como testemunha a “Suma contra os gentios” de São Tomás, ou as páginas inflamadas de um São Bernardo de Claraval, mas também pela espada de seus heróis.

Ali não havia lugar para “guarda-chuvas” e “Muniques”. Ao contrário dos atuais chefes de Estado, que tramam a desgraça da humanidade burguesmente refestelados nas poltronas de seus gabinetes, ou envolvem suas visitas ao “front” do mais impenetrável segredo, os reis se colocavam à frente de seus exércitos. E lançando a Cruzada contra os infiéis do Islã, em guerras justas abençoadas pela Igreja (veja-se por exemplo a origem da indulgência da Porciúncula), a Cristandade medieval fez que chegasse até nós o surto dessa civilização então ameaçada pela heresia e pela infidelidade, como se acha agora em risco de soçobrar nas garras do totalitarismo socialista.

* * *

Não nos iludamos, porém. Os homens medievais eram da mesma natureza que a nossa, inferior à dos anjos e, ademais, descaída pela culpa de nossos primeiros pais. Tinham as mesmas paixões, deixando-se levar por elas, algumas vezes, até aos mais violentos excessos. Mas possuíam um verdadeiro espírito de Fé, dessa Fé que transporta montanhas, e que se patenteia por meio de atos, dessa Fé que é espírito e vida.

A semente lançada por Urbano II no Concílio de Clermont achava, portanto, terreno onde germinar. Pregando ao povo sobre a necessidade da primeira cruzada contra os infiéis, depois de haver reproduzido ao vivo todos os motivos que deviam arrastar os cristãos à Terra Santa, não se esquece da reforma moral pela qual sempre pugnou a Igreja, e censura com veemência os príncipes que o escutam pelos exemplos de corrupção que haviam dado e ao uso sacrílego que faziam de seus exércitos, para meras guerras de conquista. Relembremos, porém, as próprias palavras do grande Pontífice:

 

Pintura representando Urbano II pregando a Cruzada

“Irmãos, que, diremos? Escutai e compreendei. Armados até os dentes, e com expressões de ferocidade, atacais vossos irmãos e vos entredevorais. Não é a milícia do Senhor que põe em pedaços as ovelhas de seu aprisco. A Santa Igreja reservou seu exército para a defesa de seus filhos. Para dizer a verdade, de que somos os arautos, não vos achais no bom caminho que vos conduzirá à salvação e à vida. Sois opressores dos órfãos, espoliadores de viúvas, homicidas, sacrílegos, ladrões e salteadores; derramando o sangue dos cristãos, contais sobre o salário dos malfeitores, sobre os despojos de vossas vítimas, e, como os abutres sentem de longe a podridão dos cadáveres, vossos olhos se voltam para regiões longínquas, para nelas descobrir a guerra. Certamente, aí está um mau caminho, e o mais afastado dos caminhos do Senhor. Se, portanto, quereis pensar na salvação de vossas almas, renunciai a essas lutas sacrílegas, e vos prepareis para a defesa da Igreja do Oriente. Foi dela, com efeito, que decorreram todas as alegrias de vossas almas, foi ela que derramou sobre vossos lábios o leite da Fé, e que vos condensou os dogmas do Santo Evangelho. Nós vos exortamos, portanto, a não mais manchar vossas mãos no sangue de vossos irmãos; mas, pela defesa da Fé, enfrentai as nações estrangeiras e, tomando Jesus Cristo por chefe, formai um exército cristão, um exército invencível; combatei por vossa Jerusalém mais corajosamente ainda que os antigos israelitas. Atacai e dispersai os turcos, (...) mais ímpia e mais culpada que os jebuseus (tribo cananeia que viviam em Jerusalém, cidade que haviam fundado, antes da sua ocupação pelo rei Davi, n.d.c.). Que vos seja glorioso morrer por Jesus Cristo nessa cidade em que Jesus Cristo morreu por vós”.

* * *

Eis a quintessência da verdadeira caridade. Eis o que está faltando na atual luta contra o totalitarismo nazista, pois falta aos seus opositores o verdadeiro espírito de Fé. E os infiéis, na pessoa da Rússia soviética, se assentam à mesa da conferência da paz...