Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
O ultramontano São Tomás Morus

 

 

 

 

 

 

Legionário, 22 de setembro de 1946, N. 737, pag. 5

  Bookmark and Share

 

Pessoa amiga nos apresenta uma objeção a propósito de determinado tema tratado por São Tomás Morus em sua famosa “Utopia”. Para dar ao assunto uma resposta bem ampla, procuremos abordar a seguinte questão: “corresponderia a canonização de São Thomas More à aceitação pela Igreja das idéias expostas na citada “Utopia”?

* * *

Um modo simples de responder a esta pergunta seria afirmar que o Chanceler de Henrique VIII foi canonizado, não como Doutor da Igreja, da plana de um Agostinho ou de um Tomás de Aquino, mas como mártir da Fé e apesar da “Utopia”.

Esta versão tem a seu favor os historiadores protestantes que fazem de São Tomás Morus um verdadeiro reformador, no sentido luterano da palavra, apresentando-o como um espírito liberal, apóstolo da tolerância, que colocava lado a lado a ciência e a religião. Para tais historiadores, somente para o fim de sua vida é que São Tomás Morus se teria tornado ferrenhamente ortodoxo e intolerante, tanto em seus escritos como em suas relações com os hereges.

Reforçam este ponto de vista aqueles que vêm em São Tomás Morus um propugnador do comunismo, ao lado de Platão e Campanela. Com efeito, se na realidade São Tomás Morus pretendia, pela “Utopia”, fazer uma apologia do comunismo, e sendo esta doutrina político-social condenada pela Igreja que em 1935 o elevou aos altares, é claro que só uma posterior conversão explicaria tal canonização.

À vista dos graves erros contidos na “Utopia”, se as idéias ali expostas forem levadas ao pé da letra, também concorrem para a tese dos tais historiadores protestantes, quanto a uma volta à ortodoxia no fim da vida, aqueles que querem ver nesse livro a base de uma ordem social não no mero campo da fantasia e da ficção, mas no terreno das realidades práticas, isto é, estaria no pensamento de seu autor propor uma verdadeira reforma da vida política e social da humanidade.

* * *

Ora, segundo os melhores críticos e comentaristas, não se deve ver na “Utopia” de Tomás Morus mais que a fantasia do literato, que os devaneios inocentes de uma inteligência alerta e fecunda pelas regiões do imaginário.

Nela não seria intenção do autor fazer uma profissão de fé, ou propor um modelo à nossa imitação em todo seu conjunto, mas entregar-se a um jogo de espírito do gênero que mais tarde levaria Swift a criar o país de Lilliput. Conforme esclarece o “Dictionnaire de Theologie Catholique”, Tomás Morus não sentiu, ao escrever a “Utopia”, a necessidade de delimitar precisamente seu pensamento. Deixou seu espírito ir derivando ao acaso, ao correr da pena, passando sua atitude mental por toda uma série de combinações intermediárias entre a convicção profunda, de um lado e de outro a fantasia ou mesmo a simples pilhéria. A crítica sarcástica dos males de sua época, e dos desregramentos humanos é evidentemente sincera. Outras passagens, porém, se mostram um tanto estranhas pelo que sabemos de sua formação, de seus gostos, de suas tendências.

* * *

Se se quiser achar na “Utopia” a expressão definitiva das convicções de São Tomás Morus, certos aspectos da obra fariam dele não apenas um protestante, mas um simples deísta, um relativista pragmático desprovido de toda crença em uma verdade absoluta. Ora, tudo que se sabe de sua vida e de sua piedade nos mostra ter sido ele um católico fervoroso e sincero.

Do ponto de vista religioso, por exemplo, o que Morus nos descreve em sua ilha imaginária é a religião natural, com suas virtudes naturais, por oposição à religião revelada.

Entretanto, não mais estamos em uma ordem puramente natural, mas em pleno domínio da ordem sobrenatural. Jesus Cristo é a pedra angular que não pode ser rejeitada pelos construtores das cidades. “Não há salvação senão nele; porque debaixo do céu não foi dado aos homens outro nome em que possamos alcançar a salvação” (Atos 4, 12).

Ora, o Evangelho já foi pregado pelo mundo inteiro. Que interesse prático pode ter portanto essa dissertação sobre o estado político-social de uma ilha que ainda não recebeu o batismo, que não conhece a religião verdadeira?

Um santo que escreve um livro destinado a servir de base para uma reforma social, em plena era cristã, em pleno império da graça, deixaria de fazer referência ao Redentor do Mundo, nos termos em que o fez Santo Agostinho na “Cidade de Deus”? Ou quem sabe a “Utopia” teria sido feita de encomenda para os Chavantes ou para os pigmeus da África Central?

* * *

Admitamos, somente para argumentar, que Tomás Morus com a “Utopia” quisesse fazer não literatura, mas filosofia. Um exame atento do texto não deixaria margem para se fazer desse Santo um campeão do livre exame ou um pioneiro das idéias liberais. A própria tolerância, tal qual é entendida hoje, não existe na “Utopia”. Os habitantes da ilha são constrangidos, sob pena de perder seus direitos cívicos, a aceitar um certo número de dogmas do Estado: a Providência, a imortalidade da alma, as recompensas e os castigos eternos da vida futura. Os que ousam negar estes dogmas, além de não se lhes confiar nenhum cargo na sua república comunista fantástico-ideal, e de serem tidos por inaptos para qualquer função, ficam proibidos de falar sobre suas doutrinas, principalmente diante do povo.

Aceita-se ali a liberdade de pensamento, não a liberdade da palavra ou da discussão, sendo os “hereges” tratados como párias.

* * *

Quanto ao regime político, longe de se filiar à corrente liberal, seria antes um precursor do totalitarismo socialista, se o quisermos extrapolar para a realidade prática fora dos limites dessa ilha fabulosa. Eis porque autores, como Leclercq em suas “Leçons de Droit Naturel”, afirmam que Tomás Morus, em seu plano de governo da “Utopia”, o concebe quase sem liberdade. “O Estado nele regula matematicamente toda a atividade dos cidadãos. E podemos dar inúmeros exemplos da vida dos habitantes da “Utopia” para mostrar que “a questão do direito do Estado não é posta em discussão”. Basta uma pequena amostra: “Os viajantes se reúnem para partir juntos; eles são munidos de uma carta do príncipe, que certifica a partida e fixa o dia da volta...” E até os vestuários são padronizados para todos os habitantes da ilha...

* * *

No caso de doença incurável e acompanhada de muito sofrimento, os sacerdotes e magistrados incitam o doente a abreviar a vida, quer suicidando-se, quer deixando-se matar por outrem. Os utópicos admitem também o divórcio, embora para certos casos especiais, com permissão expressa do Senado.

* * *

Em contraposição com essas extravagâncias expostas em livro escrito em latim, que o autor, em sua vida, não permitiu fosse traduzido para linguagem vulgar, por ser destinado a um público culto e inteligente que bem perceberia o alcance de suas idéias, vejamos alguns traços da vida desse grande Santo.

Deixemos de lado o literato e consideremos como Tomás Morus na vida pública usou seus dotes intelectuais na defesa da Verdade.

Adversário do erro religioso, em suas polêmicas com os protestantes se define sobre o castigo dos hereges de maneira que não deixa nenhuma dúvida quanto a seus sentimentos profundos; os hereges devem ser queimados: não é certamente a Igreja que o exige, mas esta não impede que o corpo social tome esta medida de autodefesa. Achava ele que devemos antes de mais nada ter piedade dos ignorantes que os hereges podem extraviar, cortando o mal pela raiz para os proteger.

E segundo uma opinião liberal, como Lord Chanceler da Inglaterra, “a única mancha em seu caráter como juiz foi a dureza (harshness) de suas sentenças por opiniões religiosas”.

Suposto partidário do divórcio, rompeu com Henrique VIII por não concordar com o divórcio do rei com Catarina de Aragão. Suposto apologista do suicídio nos casos desesperados, enfrentou fleumaticamente a morte no patíbulo, pilheriando com o carrasco, após curtir mais de um ano de prisão. Suposto propagandista da liberdade de cultos, sofre o martírio por não concordar com o título de chefe da Igreja inglesa que Henrique VIII dera a si próprio (e notemos, entre parêntesis, que a seita de Henrique VIII assim formada, estava de acordo com os “dogmas” oficiais da “Utopia”). Suposto campeão do livre exame, é um defensor intransigente da infalibilidade do Papa.

* * *

A quem, portanto, seguir? Ao autor de um livro de ficção, que a ser levado a sério faria de Tomás Morus um propagador de ideias errôneas, ou ao Santo que levou a sinceridade de suas convicções até ao heroísmo? E se tivermos em mente a verdade que o Santo é aquele que não somente prega a virtude, mas sobretudo a pratica em grau heroico, nos será fácil vislumbrar qual a reforma social que São Tomás Morus na realidade desejou: aquela que começa pela reforma dos corações, pela luta contra a corrupção ambiente, pelo verdadeiro espírito de Fé, pelo apego sem desfalecimentos à única e verdadeira Igreja, mesmo com o sacrifício de nossas vidas.

Nota: Vide outras matérias sobre o assunto:

* O Jornal, Rio de Janeiro, 22 de junho de 1935 - Chanceler e Mártir

* 1970-02-04 - São Tomás Morus, "A man for all seasons" (O homem que não vendeu sua alma)