Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
"Tende confiança. Eu venci o mundo"

 

 

 

 

 

 

Legionário, 25 de agosto de 1946, N. 733, pag. 5

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Numa época normal o bom senso popular não deixaria de notar como são frágeis os argumentos dos arautos de uma mirabolante nova ordem que estaria para ser instaurada no mundo sobre os escombros do atual edifício social. Com efeito, ao lançarmos um olhar sobre o panorama político e social, o que vemos por todos os lados são apenas indícios e evidências daquilo que Shakespeare dizia ser “captive good attending captain ill” (um prisioneiro sadio aguardando um capitão doente). Se não se pode prescindir do elemento humano ao tratar dos sistemas políticos, econômicos e sociais e se os homens que têm atualmente em suas mãos as rédeas do poder, são o que são, apenas uma cega e insensata euforia a serviço da mais completa falta de descortino pode levar o homem da rua a acreditar nesse conto da carochinha.

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Conforme afirmava Louis Veuillot na introdução às obras completas de Donoso Cortês, o mundo se acha repleto de espíritos medíocres aos quais toda convicção vigorosa desagrada, e aos quais toda afirmação clara ou precisa surpreende e impacienta. Há desses espíritos entre os católicos e em maior número do que seria natural de encontrar. São eles um dos tristes sinais destes tempos em que a verdade se acha tão fortemente diminuída entre os homens. O caminho que Donoso Cortês indicava à sociedade lhes parece difícil, impraticável e fruto de um injustificável “exagero”.

E acrescentava Louis Veulllot:

“Um crítico de Donoso Cortês, aliás cheio de respeito por sua pessoa e de simpatia por seu talento, escreveu que, para salvar o mundo, seriam suficientes os meios ordinários da Providência: grandes Papas, grandes príncipes, grandes reis.

“Esses meios ordinários da Providência não são os meios ordinários da humanidade. Donoso Cortês não pretendia que fossem necessários recursos mais poderosos. Quando ele dizia que o mal triunfa naturalmente do bem e não é vencido senão por uma ação direta, pessoal e soberana de Deus, não queria dizer que Deus devesse, de qualquer modo, combater pessoalmente. Deus envia seus santos, cheios de Seu espírito, perseverantes até à morte, investidos, se necessário, do dom dos milagres, e é isto bastante como a história o testemunha por toda a parte.

Não nos esqueçamos, entretanto, que isto é bastante para sustentar a luta; é bastante para obter, após longos e sangrentos combates, uma dessas tréguas durante as quais a Igreja repousa ao abrigo de um calvário formado pelos despojos dos mártires. Mas a vitória definitiva não está reservada aos esforços dos cristãos. Na batalha que precederá o último dia, a verdade não triunfará a não ser pela intervenção direta, pessoal, soberana de Jesus Cristo. O Filho de Deus virá e vencerá sozinho.

“A época desse desenlace é segredo de Deus. Donoso Cortês acreditava apenas que através dessas alternativas de vitórias e de derrotas, o mal, posto que ainda possa ser vencido várias vezes, irá engrossando seu exército. E que o bem, posto que ainda possa ser por várias vezes vencedor, sentirá progressivamente enfraquecer sua seiva, seu ardor, sua virtude, e por conseguinte terá cada vez mais necessidade dessa assistência sobre-humana que não é ainda, se se deseja falar rigorosamente, a intervenção direta de Deus, mas que também deixou de ser obra e feito do homem. Que importa que o braço de Deus não apareça, se vemos Sua sombra?

“Quais serão, com rigor, as forças respectivas do mal e do bem? Eis outro problema, outro segredo! Se as pesamos nas balanças da simples razão, o mal leva a melhor. Seu exército é imenso. O primeiro grito de guerra, sobretudo a primeira vantagem conseguida, decuplicará seu número e sua audácia. Vede em quantos pontos a sociedade é vulnerável, que muralhas desmanteladas e vinte vezes escaladas ela opõe a seus destruidores, e como tudo isso na verdade não passa de poeira! Sem dúvida, movido por orações mais poderosas que todas as iniquidades humanas, Deus tudo pode mudar. Nessa balança do mal e do bem, o único peso de um santo fará descer o prato que sobe. Será isto um milagre, e o mundo dele tem necessidade. Fará Deus esse milagre? Sim, se os destinos da humanidade ainda não estiverem cumpridos.

“Entretanto, mesmo um milagre não nos salvará sem catástrofes. Esses grandes santos, nós os chamamos grandes porque eles têm qualquer coisa a mais além dessa santidade, que é de certo modo o sal quotidiano da terra e que a impede de se corromper ao ponto de excitar o horror e a abominação do Céu. Eles vêm com a missão expressa de reparar imensas desordens por meio de imensos trabalhos. Hoje, que a desordem é quase sem limites, que a sociedade se acha constituída sobre a negação de Deus, qual deverá ser esse trabalho? Levantar ruínas é um combate que faz ruínas. Os santos não têm o costume de aparecer unicamente como conciliadores. Pregam a penitência e a trazem. São generais do exército. Seja porque têm a missão de redimir o povo de Deus comprimido e subjugado pelos inimigos, seja porque os levam às grandiosidades e às conquistas, eles abalam o mundo.

“Há uma barbárie e uma idolatria novas sobre a terra. Novas pelo menos depois da regeneração do gênero humano pelo sangue de Jesus Cristo. A barbárie erudita criou meios de pressão nunca vistos. A idolatria dos gozos materiais enfraqueceu o pequeno número daqueles que os possuem, ao mesmo tempo que faz morrer de fome aqueles que não os possuem. Uma incredulidade mais do que selvagem, não somente em relação aos dogmas religiosos, mas em relação às prescrições da simples moral, se esconde sob o verniz das convenções sociais e das convenções políticas. A polícia, incrédula ela própria, é o único cimento do edifício. Sacrifica-se tudo à fortuna, e a ambição se degrada até ao ponto de não ter outro móvel a não ser o bem-estar. Em nossas últimas revoluções, apenas se viram mártires e heróis de doutrinas que causaram horror”.

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Diante desse quadro tão sombrio esboçado por Louis Veuillot, observava Donoso Cortês:

“No entanto, de duas uma: ou a reação religiosa vem, ou não vem. Se surgir essa reação religiosa, vereis em breve como, à medida que subir o termômetro religioso, naturalmente, espontaneamente, sem nenhum esforço da parte dos povos ou dos governos, começará a descer o termômetro político até que marque o ponto temperado da liberdade das nações. Mas se, pelo contrário, o termômetro religioso continuar a descer, não sei onde iremos parar. Eu o sei, e tremo de o imaginar.

“No mundo antigo a tirania se mostrou feroz e impiedosa, e no entanto essa tirania era materialmente limitada, sendo pequenos todos os Estados e sendo completamente impossíveis as relações internacionais.

“Por conseguinte, na antiguidade não pode existir tirania em grande escala, se excetuarmos a de Roma. Presentemente, porém, como as coisas mudaram! As veredas estão preparadas para um tirano gigantesco, colossal, universal, tudo se acha preparado para isso. Não mais há resistências, sejam materiais, sejam morais: não mais há resistências materiais, porque com os modernos meios de comunicação não há mais fronteiras, e com o telégrafo, não há mais distâncias. Não há mais resistências morais porque todos os espíritos estão divididos e todos os patriotismos estão mortos”.

E cerca de um século antes do aparecimento da bomba atômica, Donoso Cortês já previa o aparecimento do Omniarca do totalitarismo pagão e socialista, cujo despotismo seria facilitado pelos progressos da técnica, dessa mesma técnica que é o maior orgulho do materialismo de hoje e que será o instrumento para a humilhação e escravização do homem do século vinte.

A sociedade poderia se salvar, se quisesse, mas não o quer. Resiste à Graça. Eis porque ela está morrendo.

“Suas extremidades estão frias, o coração em breve paralisará. E quereis saber por que ela morre? Ela morre porque foi envenenada. Ela morre porque Deus a havia feito para ser alimentada pela substância católica, e porque certos médicos empíricos lhe deram por alimento a substância racionalista. Ela morre porque, do mesmo modo que o homem não vive somente do pão, mas de toda palavra que sai da boca de Deus, do mesmo modo as sociedades não morrem pelo ferro, mas por toda palavra anticatólica saída da boca dos filósofos. Ela morre porque o erro mata e porque esta sociedade se acha fundada sobre erros”.

E a queda da sociedade é tão profunda, sua decadência tão radical, sua cegueira tão completa, que a catástrofe que está para vir será a catástrofe por excelência. Os indivíduos podem se salvar ainda, porque sempre puderam se salvar. Mas a sociedade está perdida, não que ela esteja em uma impossibilidade radical de se salvar, mas porque, segundo vejo, é evidente que ela não deseja se salvar. Não há salvação para a sociedade, porque não queremos fazer de nossos filhos verdadeiros cristãos. Não há salvação para a sociedade, porque o espírito católico, único espírito de vida, não vivifica o todo, não vivifica o ensino, nem os governos, nem as instituições, nem as leis, nem os costumes”.

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Sejam, portanto, nossa única esperança, nosso único refúgio, a única razão de ser de porfiarmos, sem desalento, na luta contra o mal, as promessas dAquele que há cerca de dois milênios nos dizia: “Tende confiança. Eu venci o mundo!