Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
O reinado da euforia

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 18 de agosto de 1946, N. 732, pag. 5

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Apesar das advertências dos últimos Papas e de outras vozes isoladas que se têm levantado para indicar aos homens a catástrofe que se avizinha, a humanidade continua a trilhar o caminho que a está conduzindo inexoravelmente ao totalitarismo socialista.

E o que é terrível e trágico é que essa marcha se faz em um ambiente de completa euforia. Diante das desgraças que se multiplicam, diante do gradativo desaparecimento do respeito entre as nações das normas do direito e da justiça, da honestidade na política e nos negócios, nas relações das famílias e dos indivíduos, a humanidade às vezes para apreensiva, mas em seguida voluntariamente procura se aturdir e esquecer as agruras presentes, consolando-se com as delícias de uma nova ordem que lhe estaria sendo preparada não se sabe em que laboratórios secretos.

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Deposita-se uma esperança messiânica na ação salvadora dos governos e dos homens, ainda mesmo que esses governos e esses homens não se achem penetrados do espírito católico, dificuldade que não existe para muitos dos próprios católicos, pois, como em seu tempo já assinalava Louis Veuillot, não são poucos os que confiam na possibilidade de reintroduzir o catolicismo na sociedade e no organismo estatal secretamente, por medidas delicadas e disfarçadas que não despertem a atenção de nenhum daqueles a quem sua existência é incômoda e importuna.

Eis porque esses católicos, herdeiros dos judeus que depositavam todas as suas esperanças no reinado terreno de Nosso Senhor Jesus Cristo, eis porque esses que transformaram o Evangelho em um mero instrumento de conquistas sociais, não podem suportar as vozes que se levantam, como a de Donoso Cortês, para colocar o problema em seus verdadeiros termos, e para lembrar à humanidade que para ela não haverá salvação a não ser por melo Daquele que é o Caminho, a Verdade, a Vida, que o Divino Salvador não veio à terra para mostrar que Sua doutrina é boa porque produz o bem estar social, mas para mostrar que o bem estar social deve ser uma consequência da aceitação e da prática de Sua doutrina, pois a primeira obrigação do cristão é procurar o Reino de Deus e Sua justiça e o resto lhe será dado como acréscimo.

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A conversão completa de Donoso Cortês ao catolicismo se deu no fim de sua vida, cerca de quatro anos antes de morrer (pouco antes de cumprir 44 anos, n.d.c.). São dessa fase as previsões por ele feitas do advento do totalitarismo socialista, que publicamos em nosso último rodapé. Como são também dessa última fase da vida do grande espanhol o conceito por ele formado da luta entre a Cidade de Deus e a cidade mundana, de que passamos a nos ocupar em seguida.

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Donoso Cortês via o mundo dividido em duas civilizações, entre as quais há um abismo, a do catolicismo e a do filosofismo. Para ele, a civilização católica contém o bem sem mistura do mal, a civilização filosófica contém o mal sem mistura de bem.

Esclarecia Donoso Cortês que a civilização católica pode ser considerada de duas maneiras diferentes: em si mesma, como um certo conjunto de princípios religiosos e sociais; e em sua realidade histórica, em que esses princípios se combinam com a liberdade humana. Considerada do primeiro ponto de vista, a civilização católica é perfeita. Considerada do segundo ponto de vista, a civilização católica, em seu desenvolvimento através dos tempos e sua extensão através do espaço, se acha sujeita às imperfeições e às vicissitudes de tudo o que se estende pelo espaço e se prolonga no tempo.

Quando Donoso Cortês dizia que a civilização católica contém o bem sem mistura de mal, considerava esta civilização do primeiro ponto de vista. E em seus esclarecimentos frisava ele que do segundo ponto de vista, isto é, em sua realidade histórica, vendo suas imperfeições unicamente de sua combinação com a liberdade humana, o verdadeiro progresso deveria consistir em sujeitar-se o elemento humano, que a corrompe, ao elemento divino, que a purifica.

A sociedade, porém, seguiu um caminho diferente. Dando por morto o império da Fé e proclamando a independência da razão e da vontade do homem, ela tornou absoluto, universal e necessário esse mesmo mal que era relativo, excepcional e contingente. Este período de rápido retrocesso teve início na Europa com a restauração do paganismo literário, que acarretou sucessivamente as restaurações do paganismo filosófico, do paganismo religioso e do paganismo político.

Hoje o mundo se acha nas vésperas da última dessas restaurações, a restauração do paganismo socialista.

E, segundo o grande ultramontano espanhol, a história já pode formular seu julgamento sobre essas duas civilizações, das quais uma consiste em conformar a razão e a vontade do homem ao elemento divino, e a outra a deixar de lado o elemento divino e a proclamar a independência e a soberania do elemento humano.

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Pois bem, indaga Donoso Cortês, “das duas civilizações, qual conquistará a vitória no curso dos tempos? Respondo, sem que minha pena hesite, sem que meu coração trema, sem que minha razão se perturbe: a vitória pertencerá incontestavelmente à civilização filosófica. Deseja o homem ser livre? Sê-lo-á. Detesta os laços que o prendem? Estes cairão na poeira a seus pés. Um dia, para tentar sua liberdade, quis matar seu Deus. Não o fez? Não O crucificou entre dois ladrões? Desceram do céu por acaso legiões de Anjos para defender o Justo que morria sobre a terra? Pois bem, por que haveriam eles de descer hoje quando se trata, não da crucifixão de Deus, mas da crucifixão do homem pelo homem? Por que desceriam eles hoje quando nossa consciência nos grita tão alto que, nesta grande tragédia, ninguém merece sua intervenção, nem os que devem ser vítimas, nem os que devem ser carrascos?

”Trata-se aqui de uma questão muito grave, trata-se nem mais nem menos que de verificar qual é o verdadeiro espírito do catolicismo a respeito das vicissitudes desta luta gigantesca entre o mal e o bem, ou, como dizia Santo Agostinho, entre a cidade de Deus e a cidade do mundo. Quanto a mim, tenho por provado e evidente que aqui em baixo o mal acaba sempre por triunfar do bem; e que o triunfo sobre o mal é reservado, se assim se pode exprimir, a Deus pessoalmente.

“Ademais não há nenhum período histórico que não culmine em uma catástrofe. O primeiro período histórico começa na criação do mundo e termina no dilúvio. E que significa o dilúvio? Duas coisas: o triunfo natural do mal sobre o bem, e o triunfo sobrenatural de Deus sobre o mal, por meio de uma ação direta, pessoal e soberana.

Os homens se achavam ainda encharcados pelas águas do dilúvio quando a mesma luta recomeçou. As trevas se acumulavam em todos os horizontes. No advento de Nosso Senhor, fazia-se noite por toda a parte, uma noite espessa, palpável. O Senhor foi pregado na Cruz, e a aurora raiou para o mundo. Que significa esta grande catástrofe? Duas cousas: o triunfo natural do mal sobre o bem, e o triunfo sobrenatural de Deus sobre o mal, por meio de uma ação direta, pessoal e soberana.

Que dizem as Escrituras sobre o fim do mundo? Elas dizem que o Anticristo será senhor do universo, e que então virá o Juízo Final com a última catástrofe. Que significará esta catástrofe? Como as outras, ela significará o triunfo natural do mal sobre o bem, e o triunfo sobrenatural de Deus sobre o mal, por meio de uma ação direta, pessoal e soberana.

“Tal é para mim a filosofia, toda a filosofia da história...

“E tal sendo minha crença eu vos deixo determinar qual deva ser minha opinião sobre o resultado da luta que se desenrola atualmente no mundo.

“E que se não diga que, se a derrota é certa, a luta é inútil. Em primeiro lugar, a luta serve para atenuar, suavizar a catástrofe, e em segundo lugar, para nós que temos a glória de ser católicos, a luta é o cumprimento de um dever e não o resultado de um cálculo.

Agradeçamos a Deus por nos haver concedido o combate; e não exijamos, além desse favor, a graça do triunfo Àquele que concede aos que combatem generosamente por Sua causa uma recompensa bem maior e preciosa para o homem do que a vitória terrena”.