Plinio Corrêa de Oliveira

 

Uma glória da Igreja, na História

do Brasil

 

 

 

 

 

Legionário, Nº 729, 28 de julho de 1946

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Princesa Isabel (Rio de Janeiro, 29 de julho de 1846 – Castelo d'Eu, 14 de novembro de 1921). Acima, retrato por Joaquim José Insley Pacheco, 1887

Transcorrendo agora o primeiro centenário da Princesa Isabel, é da maior conveniência que se ponham em relevo alguns aspectos de sua personalidade, que a opinião [pública] ainda não conhece devidamente.

Não vale a pena analisar, é claro, as mil pequenas calúnias e maldades com que a propaganda republicana procurou, durante os últimos anos da monarquia, açular contra a herdeira da coroa, a opinião pública. “Mentez, mentez, il restera toujours quelque chose” (Menti, menti, sempre ficará alguma coisa), escrevia Voltaire. O caso da Princesa Isabel constitui significativa exceção à regra geral. Hoje em dia, não há quem perca tempo em discutir os leitmotivs da propaganda anti-isabelina: todos tiveram a vida efêmera das mentiras mal contadas, e se desacreditaram por si.

Entretanto, apesar de tudo isto, a figura da Princesa Isabel ainda não é bem conhecida pelos brasileiros. Os compêndios a apresentam tão somente como a libertadora da raça escrava. Ela emerge da sombra discreta da vida do lar, para penetrar na grande História em um momento fulgurante. Assina a lei de abolição. Volta, depois, à vida de família, numa penumbra que o exílio, pouco depois, ainda tornará mais densa. E nesta penumbra se extingue docemente, e quase sem ruído, a sua vida terrena, numa época em que sua figura já tinha saído inteiramente da atualidade política. Desta vida familiar transcorrida numa nobre discrição, se desprende perfume da genuína virtude cristã. Reunindo estes escassos elementos informativos, o quadro psicológico da Princesa parece compor-se facilmente: excelente dama, que viveu sempre para o lar e que teve a felicidade de assinar em dado momento a lei de emancipação.

Por certo, estes traços gerais são verdadeiros e eles bastam inteiramente para justificar a glória da "Redentora". Não há dúvida, entretanto, de que uma análise histórica mais pormenorizada enriqueceria muito, com novos e belos aspectos, esta noção que, se bem que bela, é no fundo bastante sumária.

* * *

Antes de tudo, é preciso compreender bem o que significa, em regime monárquico, a vida de família de uma Princesa. Não se pense que é uma vida privada, com sua agradável irresponsabilidade e doce despreocupação. A função social da família reinante é subtil e difícil de definir. Nem por isto, deixa de ser muito real e importante.

Para que tenhamos disto alguma idéia, é preciso considerarmos o exemplo inglês, a suma atenção com que a opinião de todas as camadas sociais e correntes partidárias acompanha os gestos e feitos da família real, e a importância que atribui a qualquer acontecimento que ocorra neste terreno.

A família reinante deve, a um tempo, ser o espelho e o modelo do ideal familiar e social do país. Espelho, no sentido de que deve possuir do modo mais acentuado e autêntico, o que a mentalidade doméstica e social do país tem de típico. A família reinante deve ser como que a concretização simbólica do espírito nacional, no que diz respeito à vida social e familiar. Modelo, no sentido de que cabe à dinastia a função discreta de dirigir a evolução da mentalidade nacional, no lar e na sociedade. Munida do prestígio social inerente à sua categoria, pode a família reinante, sobre a qual convergem todos os olhares, por meio de seu exemplo, fazer cair em desuso os costumes menos bons e os substituir gradualmente por outros, exercendo assim sobre o espírito público uma função pedagógica de imensa importância.

Foi este o papel social com que deparou a Princesa, desde seus primeiros anos. Digamos desde logo que ela o desempenhou modelarmente.

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Dom Pedro II em 1887, com 61 anos

Se investigarmos bem a fundo as razões da popularidade que a Família Imperial conservou, mesmo depois da República, veremos que reside em boa parte, no êxito de sua tarefa social. O velho Imperador, com a grande respeitabilidade de sua figura, seu porte grave e afável, sua longa barba precocemente encanecida, representava bem o tipo ideal do excelente pai de família brasileiro daquela época, coluna do lar, protetor suave e varonil dos seus. Os costumes privados do Imperador eram sabidamente excelentes. O Imperador era como que o tipo exemplar que concentrava em si as virtudes que cada brasileiro estimava em seu próprio Pai.

A Imperatriz Teresa Cristina em março de 1877 (por Adele Perlmutter-Heilperin)

O mesmo se poderia dizer da Imperatriz, Dona Teresa Cristina. Era italiana, da Casa de Bourbon Duas Sicílias. Adaptou-se a nosso ambiente com a naturalidade com que o fazem os de sua terra. Feia, boa, acolhedora, era ela mesma o protótipo da dama brasileira, algum tanto desinteressada naquele tempo dos encargos de representação, mas exímia em tudo quanto dissesse respeito aos deveres do lar. Todo o mundo, consciente ou inconscientemente, se sentia um pouco parente daquela família-tipo.

Cabia à Princesa Isabel sustentar esta tradição, representar ela mesma a geração em que nascera, com a exatidão e fidelidade com que seus pais haviam logrado encarnar a geração anterior. Incumbia-lhe aliar à representação própria ao regime monárquico, a simplicidade de que os brasileiros sempre foram tão ardentes apreciadores. À delicadeza, essencial ao verdadeiro ideal feminino, a firmeza de pulso própria a uma herdeira da coroa. Em uma época em que as mulheres viviam tão arredadas da política que nem tinham direito de voto, ela, a Princesa Imperial, se encontrava bem no âmago da vida política, onde devia agir de modo a inspirar confiança aos homens e evitar a antipatia das mulheres!

Até que ponto foi bem sucedida em tudo isto? Não lhe faltaram críticas. A alguns parecia excessiva sua simplicidade, seu desinteresse pela vida de sociedade. Por uma contradição muito própria à política brasileira, este ponto era explorado, não pelos altos círculos sociais... mas pela propaganda republicana. Outros receavam que, como dama que era, não tivesse o pulso forte que deve ter quem carrega o cetro. Mais uma vez, foram sobretudo os republicanos que se alarmaram com a idéia de que de futuro o cetro não fosse manuseado com suficiente força, eles que queriam a queda do trono, precisamente para evitar os excessos do poder. Mas é preciso dizer que não foram só os republicanos que se desagradaram por vezes com este aspecto da atuação da Princesa. Mesmo em círculos monárquicos, estas críticas causavam certa impressão. E alguns dos mais fervidos defensores da coroa eram os primeiros a achar que o trono exigia mais representação e mais força.

Até que ponto estas críticas foram fundadas? A questão se prestaria a um muito amplo desenvolvimento. Ela pertence sobretudo ao domínio da história dos costumes, capítulo complexo da grande História, que não se trata razoavelmente senão com um amplo desenvolvimento de reflexões e um grande reforço de fatos e documentos, coisa que, evidentemente, escapa aos limites de um artigo. 

Uma coisa, porém, é certa. A Princesa Imperial se conservou muito popular durante todo o tempo da monarquia e esta popularidade perdurou até sua morte. Quando ela faleceu, os jornais publicaram com destaque a sua fotografia, os brasileiros fitaram comovidamente sua figura de anciã maternal e veneranda. A lei de 13 de Maio já estava longe e a todos parecia tão natural que não houvesse escravos no Brasil, que ninguém sentia mais a sagrada emoção do dia da abolição. O pesar que sua morte causou foi, para todos, um pouco como o da morte de um membro de sua própria família. Era uma popularidade pessoal, que lhe vinha de suas virtudes, vistas sobretudo deste ângulo fundamental: a Princesa soubera, ela também, encarnar perfeitamente o que havia de melhor entre as brasileiras de sua geração. Era o tipo da grande dama brasileira de seu tempo, nobre, maternal, bondosa, que sabia fazer-se respeitar sobretudo pelo amor.

É possível que algo pudesse ter sido mais perfeito no seu modo de desempenhar o papel representativo de seu cargo. Somente hoje, começam os historiadores a poder pronunciar-se sobre o assunto com isenção. E a questão ainda pende de estudo. De um modo ou do outro em linhas gerais é inegável que ela acertou: a sua durável popularidade prova-o de modo claríssimo.

Princesa Isabel e seu esposo, Dom Gastão (Conde d'Eu), junto com seus netos, seu filho Dom Luís e a esposa deste Dona Maria Pia em 1913.


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