Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
A socialização da medicina

 

 

 

 

 

Legionário, 16 de junho de 1946, N. 723, pag. 5

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Por diversas vezes já nos referimos às várias frentes em que se desenrola a luta pela implantação no mundo do Estado totalitário socialista. Uma dessas frentes vem a ser a socialização da medicina enquadrada no Plano Beveridge, na sua modificação feita pelo novo Plano de Previdência Social do Partido Trabalhista britânico e nos vários planos de previdência e de assistência que andam a surgir como cogumelos pelo mundo inteiro.

Sob a capa de proteção para as classes menos favorecidas, vai assim ganhando terreno o plano de escravização totalitária. E, corroborando este ponto de vista, que aliás só os cegos voluntários podem combater, transcrevemos abaixo o que sob o título de “Um serviço médico estatal”, publicou o velho jornal católico inglês “The Tablet” de março do corrente ano:

“A tradição profissional inglesa não é nem de individualismo anárquico, nem de controle burocrático. Em todas as grandes profissões, a tradição inglesa tem sido a de permitir à profissão a liberdade de ser sua própria mestra. A profissão, através de sua corporação ou de sua associação autodirigida, tem imposto a seus membros o necessário código de ética profissional, por meio do qual se defende contra os defraudadores. O Estado, evidentemente, vem se reservando o direito em última instância de aplicar seu veto aos regulamentos das profissões - direito de proteger a sociedade contra a exploração por parte de uma profissão – mas este direito tem sido exercido com muita parcimônia. A experiência mostra que uma tradição de honradez é uma garantia mais segura do que a aplicação de sanções penais. O mais leve contato com a tradição médica ou com a história de nossos hospitais é bastante para mostrar como são absurdas as acusações de que no passado os serviços médicos têm sido comprados e vendidos ao mais alto preço como uma mercadoria qualquer no mercado. O Governo de Coalisão falou muito a respeito de um “serviço de saúde nacional”, como se ninguém se tivesse lembrado de tal serviço antes de o Governo ter sido chamado a proporcioná-lo e, nisto como em outros assuntos, os membros conservadores do Governo têm pouca razão para queixas se verificarem que o Estado intervém no assunto com um vigor maior do que haviam esperado.

“Não obstante, o que mais importa é o interesse público e não a conveniência política de qualquer partido. O bem público e a caridade cristã concordam plenamente em dizer que nenhum homem deve ser mantido desnecessariamente doente apenas por falta de dinheiro para pagar a conta do médico. Certamente deve existir serviço médico gratuito ou assistencial para os excepcionalmente desprotegidos. Mas nisto, como em tanta legislação social moderna, é com uma lógica muito falsa que se sustenta que, pelo fato de haver certas pessoas que são assim excepcionalmente abandonadas pela sorte, e porque esses infelizes devem ser socorridos, portanto a mesma assistência deve também ser impingida ao homem ou à mulher normal que dela não necessitam. Uma conta de médico de onde em onde - a ser paga pela renda ou por seguro - é uma das despesas normais do homem livre. É um dos privilégios normais do homem livre o decidir se deve ter um médico ou não, e a escolha do médico, no caso de assim o desejar. Uma sociedade em que estes direitos são cerceados, passa a ser menos livre. E até que ponto estes direitos são cerceados no presente plano? (O artigo se refere ao plano do Partido Trabalhista, modificação do Plano Beveridge).

“É verdade que quem quer que o deseje, depois de haver pago sua contribuição ao plano nacional através de suas taxas, poderá dispensá-lo. Poderá, se assim o desejar, contratar os serviços profissionais de seu médico particular, do mesmo modo que ainda pode enviar seu filho a uma escola particular, e o médico, de sua parte, ainda pode se dedicar à clínica particular e remunerada. Mas o paralelo entre escola e médico não pode ser levado longe. Não há duas espécies diferentes de médicos, como há duas espécies diferentes de escolas. O médico que clínica particularmente, por meio de consultas pagas, também clinicará publicamente, pago por um salário do Estado. De modo que não é possível que muitos clientes, ao verificarem que terão de pagá-lo obrigatoriamente através de taxas, ainda se mostrem dispostos a pagá-lo de novo como médico particular. Poucos médicos, por outro lado, acharão que valha a pena equipar um consultório particular, além do consultório ou aparelhamento que o Estado lhes fornece nos Centros de Saúde. E apesar de ser negado pelos organizadores do plano o fato de que a clínica privada não será diretamente proibida, entretanto, a balança pende tanto contra ela, que a intenção é de extingui-la dentro em breve.

“Qual será o efeito disto? A eficiência não é o único teste, mas é um teste - um teste que em assuntos de saúde pode ser aplicado por meio de estatísticas. Será interessante depois de alguns anos, ver a prova das estatísticas nesta experiência. Mas a experiência do médico assistencial, que sempre clinicou sob condições aproximadamente semelhantes às em que todos os médicos passarão a clinicar, essa experiência não é animadora. Não há maior engano do que o daquele que imagina ser possível eliminar a concorrência pela imposição de um controle burocrático, e isto no caso de ser desejável a eliminação dessa concorrência. Pelo contrário, é certo que esse controle produzirá uma forma nova e muito mais nociva de concorrência - a concorrência em que o mérito vai não para o médico mais competente, nem para o médico mais simpático aos clientes, mas ao médico mais sabido nas manhas políticas, para o médico que souber se impor como “persona grata” em Whitehall e que somente disser coisas que não aborreçam as autoridades.

“Não poderia haver momento mais perigoso que o presente para o incentivo dessa classe indesejável. O velho médico era um homem livre, dono de si mesmo e era uma parte da dignidade de sua profissão o dever de combater a favor de seus clientes contra as forças anônimas e poderosas que porventura tentassem prejudicá-los. Nunca tal defesa foi tão necessária como no futuro contra o arbítrio do Estado. O Estado está oferecendo ao trabalhador em troca de contribuições para o seguro social, certos benefícios em caso de acidentes, de doença e de desemprego. A condição de pagamento desses benefícios - uma condição que tudo parece indicar será posta em vigor com uma brutalidade cada vez maior à medida que as contingências financeiras se apertarem - e que o trabalhador “haja tomado todas as providências para se manter em boas condições”. O juiz dessas providências adequadas deve ser o médico. É, com efeito, sintomático que o médico por sua vez dependerá do Estado para receber seu salário e fazer carreira, e ser contado de agora para diante como um dos vários agentes estatais cujo serviço será verificar se os trabalhadores preenchem as condições pelas quais poderão gozar do benefício de suas próprias economias.

“O outro grande alvo para ataque é o hospital particular. Quem quer que retenha qualquer crença no valor da liberdade poderá negar a vantagem e serem os hospitais financiados livremente por meio de contribuições voluntárias, em vez de compulsoriamente através de taxações, desde que as contribuições voluntárias sejam suficientes para que os hospitais funcionem eficientemente. A sobrevivência do princípio das contribuições voluntárias, nas novas circunstâncias da vida moderna, é uma questão de opinião, e ninguém se oporia a um completo inquérito sobre a estabilidade financeira e a eficiência dos hospitais voluntários e particulares. Mas não foi esta a linha de combate e é difícil de não se acreditar que o sr. Bevan tenha uma prevenção ideológica especial contra o hospital voluntário, não por causa de sua ineficiência, mas porque é voluntário. É a própria expressão de liberdade que cheira mal em suas narinas. Lenine, em uma passagem famosa, explicou a razão pela qual, para o marxista, um bom sacerdote é mais nocivo do que um mau padre. É que por um mau padre a religião ficava desacreditada e, por um bom, ficaria reabilitada. A mesma coisa se aplica aos hospitais voluntários e ao Sr. Bevan. O próprio fato de existirem é uma refutação viva da retórica da extrema esquerda, que gosta de sustentar que aqueles que economizam dinheiro assim procedem para se dedicar à luxúria e à ociosidade à custa dos trabalhadores. É inconveniente para sua teoria que tanto dinheiro acumulado pela poupança haja sido gasto em atos de caridade para com os desprotegidos da sorte. Portanto, os hospitais particulares são condenados não por causa de suas deficiências, mas de suas virtudes. E sua condenação é uma desgraça e um sádico empobrecimento da variedade da vida inglesa.

“A verdade é que esta concentração de todas as forças nas mãos do Estado é necessária, não para tornar os hospitais eficientes, mas para aumentar os poderes do Ministro da Saúde na direção do trabalhos dos médicos. Os estadistas erastianos (do nome de seu autor Tomás Erasto, é uma doutrina filosófico que sustenta a superioridade do Estado em matéria religiosa sobre a Igreja, n.d.c.) em outras eras procuraram subordinar e avocar a si o sacerdócio da religião vigente, e assim aumentar sua força. A concepção corajosa do Sr. Bevan em uma época mais materialista, é a de apoiar a força da tirania não no suporte da religião, mas da medicina“.