Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Sardinhas e tubarões

 

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 2 de junho de 1946, N. 721, pag. 5

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Nesta época de desusada concentração de capitais, de “trusts”, de coordenações, de filas e de câmbio negro, de liberalismo e de totalitarismo socialista, nesta época de especulações desenfreadas e de intervenções desastrosas, que geram a extrema miséria e a extrema opulência, não faltam os inventores de fórmulas mágicas para solução de nossos males.

Há os que advogam a abolição da propriedade privada. Outros não vão tão longe e recomendam apenas a nacionalização ou socialização de certas fontes ou meios de produção de riqueza, tais como as minas, as usinas, os bancos, as estradas de ferro, etc. Há também os que colocam todas as suas esperanças na abolição pura e simples do regime do salariado substituindo-o por uma participação compulsória da mão de obra nos lucros e na gestão das empresas. Que dizer dos que sustentam que a salvação se acha no pã-cooperativismo estatal, em que o Estado será o distribuidor dos produtos, único meio de se acabar com os intermediários parasitas? Respondem outros que não basta o pã-cooperativismo, mas também o pã-seguro estatal. Segurando o cidadão contra todos os riscos da existência, seriam abolidos da face da terra a fome, a miséria, a falta de higiene, a doença, a ignorância e outros males hediondos.

A esta série de soluções mágicas, que apenas começamos a enumerar, vem se juntar o grupo dos que acham serem os juros os responsáveis pelos nossos males econômicos e sociais. Desprezando o que em seu tempo já dizia o grande Weiss, que uma coisa é a usura, e outra o legítimo e honesto interesse sobre o capital, fazem recair sobre a instituição dos juros as condenações e anátemas com que a Igreja sempre fulminou a usura, usura que de fato se acha no âmago de toda a questão social.

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A Igreja nunca adota processos revolucionários para a solução dos problemas, quer eles sejam religiosos, econômicos ou sociais. Basta atentar para o modo como se processou a abolição da escravatura nos primeiros séculos da era cristã. Sua doutrina é de todos os tempos e não se acha sujeita a injunções históricas ou geográficas. Define seu Magistério infalível as questões quando surgem, à luz de princípios já existentes e que formam as bases em que se assenta este esplêndido edifício, procurando, sobretudo, a reforma dos corações para, por meio deste trabalho de conversão, promover a reforma das instituições. Inútil será a reforma social que se propuser, se os corações não estiverem preparados para recebê-la. E além de inútil, tal reforma será nociva e prejudicial, se além de desconhecer a malícia da natureza humana decaída pelo pecado original, se basear no exagero ou falseamento de uma verdade.

Com efeito, o exagero de uma verdade é, em certo sentido, pior que a mentira deslavada. Pois podemos combater a mentira de frente, mas onde delimitar, em um exagero, até onde vai a verdade e onde ela começa a desaparecer?

Está neste caso a questão dos juros e da usura, cuja análise iniciamos em nosso último rodapé.

Prosseguiremos hoje no nosso propósito de alinhar algumas notas sobre este assunto, acompanhando de perto o que sobre ele se acha no estudo “A usura no tempo presente”, publicado por L. Dehon (em 1895).

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duas espécies de empréstimos: o das coisas de que se pode usar sem as destruir, e o das coisas que se consomem com o uso que delas se faz; o primeiro chama-se empréstimo para o uso; o segundo chama-se empréstimo para o consumo.

Ha, todavia, uma terceira forma de empréstimo, que é hoje a mais empregada: é o empréstimo de produção ou de comércio.

No empréstimo para consumo, o dinheiro emprestado é consumido para viver; no empréstimo de produção é consumido para produzir pelo comércio, pela indústria, por qualquer gênero de atividade produtiva. O caso é muito diferente.

Os antigos chamavam mutuum ao empréstimo para consumo. Não conheciam ainda o empréstimo de produção, pois o crédito não se desenvolvera. As transações econômicas eram muito restritas. Entretanto, embora a instituição do juro não fosse reconhecida explicitamente, a verdade é que no aluguel, na renda, no foro já este elemento se encontrava. Fazia-se uso indireto do juro, do mesmo modo pelo qual M. Jourdain fazia prosa (Monsieur Jourdain: personagem principal da peça teatral “Le Bourgois gentillhome”, composta por Molière em 1670, na qual M. Jourdain, um burguês, tomava ares canhestros de nobre e de literato, n.d.c.).

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Em se tratando, porém, de transações em dinheiro, os antigos, não tendo em vista senão o empréstimo de beneficência, o empréstimo feito a um homem com a corda no pescoço, consideravam a gratuidade do empréstimo como uma consequência natural do seu caráter de contrato beneficente.

Consideravam que o dinheiro era, de sua natureza, improdutivo. Nada produzia nas mãos do mutuado; o mutuante, não podia, por conseguinte, reclamar do mutuado senão o capital.

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Ora, na constituição “Vix pervenit” Bento XIV dizia: “Não se pode negar que não se encontrem, muitas vezes, com o contrato de empréstimo, outros títulos que não são intrínsecos a este contrato e que dão um direito perfeitamente justo e legítimo a exigir qualquer coisa, além do capital emprestado”.

E que o dinheiro, de improdutivo, como era passou a ser reconhecido como produtivo, podemos verificá-lo até pela linguagem sempre tão cuidadosa da Igreja, como se depreende do seguinte documento, emanado da Congregação da Sagrada Penitenciaria, de 1889, ao responder a uma pergunta de um Bispo da Itália se podia admitir empréstimos a 8 e 10%, habituais em sua diocese: “Como é difícil taxar, por via de regra geral, os frutos do dinheiro, o venerando Bispo decidirá segundo as circunstancias, considerando, segundo os tempos e os locais, a prática observada pelas pessoas de consciência delicada”. Eis, portanto, reconhecido o fato de que o dinheiro é capaz de produzir frutos, em contraste com a sua antiga suposta esterilidade.

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A linguagem popular, que é muitas vezes a expressão do bom senso, adotou também uma palavra nova para significar esta coisa nova. Já não se diz:  “Eu empresto o meu dinheiro ao Estado ou a tal Companhia”, mas “coloco o meu dinheiro no Estado ou em tal Companhia”. Não se trata de um empréstimo, mas de uma colocação de dinheiro.

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Já nos referimos, em rodapé anterior aos vários títulos intrínsecos aos contratos de um empréstimo, que tornam legítimos os juros, não em virtude de mera tolerância, mas de título compensador que justifica os lucros.

A teologia católica condenou sempre como injusto o proveito tirado do empréstimo propriamente dito, ou mutuum, em razão da natureza do próprio empréstimo.

Mas também sempre reconheceu que existia muitas vezes um contrato diferente do mutuum; e ainda mais, admitiu sempre que era lícita uma certa compensação pelos inconvenientes extrínsecos que podiam acompanhar o empréstimo: embaraço momentâneo para o capitalista, possibilidade de empregar a quantia emprestada em um negócio lucrativo, etc.

Estas circunstâncias extrínsecas do empréstimo eram muito mais raras outrora do que hoje; assim, considerava-se ordinariamente o empréstimo em si mesmo e declarava-se usurário e ilícito o lucro recebido por tal empréstimo.

Hoje, estas circunstâncias extrínsecas do empréstimo se tornaram muito frequentes e, por assim dizer, universais, ao ponto de sempre se poder presumir sua existência. Eis porque a Igreja passou a autorizar um juro moderado.

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Erraria, porém, quem supusesse que foi somente em nossos dias que Roma acreditou dever promulgar regras de procedimento para uso dos prestatários timoratos. É o que veremos oportunamente, mediante o estudo das decisões da Santa Sé sobre a questão dos juros e da usura.

E ao fazê-lo não nos move o desejo de justificar a atitude desumana dos modernos tubarões, que são os burgueses progressistas, mas apenas o de salvaguardar o direito das indefesas sardinhas, ameaçadas pelo totalitarismo socialista, gerador de novos tubarões, os “gauleiters” e comissários do povo, sob pretexto de coibir abusos no uso da propriedade, do capital, e dos demais bens que Deus confiou à nossa guarda.