Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

Nova et Vetera
 
Shylock perante o Santo Ofício

 

 

 

 

 

 

 

Legionário, 26 de maio de 1946, N. 720, pag. 5

  Bookmark and Share

 

Entre as questões candentes de nossa convulsionada época, se acha a de considerar se o regime capitalista, em si, é odioso e imoral. Presa a esta questão se acha a da legitimidade dos juros de interesse sobre o capital. Serão os juros, em si, injustos, criminosos e imorais?

Iniciaremos hoje algumas notas sobre este palpitante assunto.

* * *

A doutrina da Igreja sobre a usura é imutável, se baseia em textos claros e expressos da própria Escritura Sagrada. Apesar disso, os abusos sempre existiram e foi, por exemplo, para coibi-los e salvar o povo das garras aduncas dos shylocks que já no século XV o franciscano Barnabé lançava as bases da instituição dos montepios.

Em uma questão tão complexa temos que distinguir simultaneamente vários de seus aspectos. Um vem a ser a já citada imutabilidade da doutrina da Igreja sobre a usura. Outro vem a ser os acidentes extrínsecos dos contratos de empréstimo. São Tomás, por exemplo, admite o título que se chama “damnum emergens”. A teologia clássica admite também geralmente os títulos que se chamam “lucrum cessans”, “periculum sortis”, etc. Esses títulos foram sempre conhecidos. Um outro aspecto importante da questão vem a ser as profundas modificações introduzidas através da História em nossa vida econômica e social. E foi o reconhecimento dessa mudança que fez a Igreja declarar que há sempre um título legítimo para a percepção de um juro moderado. Por outras palavras, as transformações econômicas e sociais ampliaram sobremaneira o campo de aplicação desses títulos, embora a regra permaneça ainda de pé.

* * *

Outra história seria opinar sobre as preferências entre o antigo estado de coisas e as novas condições sociais em abstrato, postos de lado os abusos que no regime feudal ou no regime capitalista se possam introduzir.

A economia medieval se achava baseada na terra e não no poder do dinheiro, como hoje acontece. A Idade Média, em seu apogeu, desfrutava da paz social e da abastança das condições estáveis da existência. E a fonte de sua força e de sua vida fecunda era, segundo Funck-Breritano, “a união das classes, a união do senhor e de seus arrendatários nos campos: “Gens sans seigneur sont malement baillis” (pessoas sem senhor são maus proprietários, n.d.c.), dizia-se ainda no século XIII; e, nas cidades, “união do patriciado e das corporações profissionais”, tudo isso conformado pela doutrina da Igreja, que se achava impregnada no coração da Cristandade, numa hierarquia de valores baseada no mérito.

* * *

As idéias igualitárias pregadas pelos heresiarcas, culminando no humanismo e no movimento da pseudo-reforma protestante, promoveram a desagregação da sociedade medieval. E a essa “volta ao vômito” do paganismo coincidiu o afluxo de metais preciosos do Novo Mundo, produzindo a desvalorização da moeda, a alta dos preços, os conhecidos fenômenos da inflação e da carestia. Sobretudo depois de 1545, época em que começaram a ser exploradas as minas de Potosi, o aumento crescente da moeda se fez em proporções fantásticas.

Essa perturbação econômica não podia deixar de abalar profundamente as bases da vida social.

“Numerosos contratos seculares, em sua maior parte, ligavam os proprietários de terras, senhores e estabelecimentos religiosos, a seus arrendatários; e estes contratos se multiplicaram depois das guerras inglesas. Como a taxa permanecia imutável, enquanto as quantidades estipuladas perdiam três quartos, quatro quintos de seu valor, os camponeses arrendatários fizeram seu negócio à custa dos senhores proprietários. Eis aí, pois, os senhores, leigos e clérigos proprietários de terras ou beneficiários de censos feudais, atacados nas fontes vivas de sua existência. Na Alemanha, a pequena nobreza caiu em um estado tão precário que já se considerava pertencente ao proletariado” (Funck Brentano).

Vemos, assim, por meio desta especulação, a passagem do patrimônio de linhagens históricas para as mãos dos burgueses. A usura domina a sociedade e em consequência da inflação monetária surge o pauperismo. Já no reinado de Henrique VIII se promulgam na Inglaterra severos editos contra os desocupados. E esta abundância da moeda ao transformar afinal, por sua massa e por sua mais rápida circulação, as condições dos câmbios internacionais, fez nascer o capitalismo bancário e comercial.

* * *

Estamos, portanto, diante de um fato, e se é verdade que o traço dominante da economia moderna é a mecanização das relações sociais em que todo o valor é apenas cotado pelos algarismos inscritos nos livros de contabilidade; se é incontestável ser este aspecto da economia capitalista de origem especificamente judaica, como bem acentua Verrier Sombart em sua obra “Os judeus e a vida econômica”, também não deixa de ser verdade que esses males do capitalismo não são de sua essência, mas da dureza coração dos homens.

A usura sempre existiu e não se manifesta apenas na instituição dos juros, mas na especulação dos valores, nos açambarcamentos, no jogo de bolsa, na exploração do trabalho pela fixação de salários de fome, na procura desenfreada dos lucros, do luxo, dos prazeres sensuais, enfim, nas três concupiscências de que nos fala o Apóstolo São João.

Para extinguir abusos, não precisamos, porém, condenar o uso de meios lícitos.

Ora, “a sociedade antiga tinha quase o equivalente ao empréstimo a juros nas constituições de rendas. Somente os capitais colocados em rendas não podiam ser reclamados senão em casos excepcionais, por exemplo, quando o devedor caía em desconfiança ou faltava aos seus compromissos” (Dehon).

Trata-se de um autêntico empréstimo com menos elasticidade e facilidade para o crédito e para o comércio.

* * *

Conforme diz o mesmo autor, se o empréstimo a juros fosse, como dizem os rigoristas, a última forma de escravatura, Leão XIII não se esqueceria de nos conclamar abertamente para uma cruzada contra este vício social. Pelo contrário, embora condenando a “usura voraz”, tanto ele quanto Pio XI procuram promover a união e harmonia do capital e do trabalho, e o que é este capital senão a colocação de rendas nas empresas produtivas?

* * *

Os antigos, tendo em vista em geral os empréstimos de beneficência, e vivendo numa sociedade em que a moeda tinha uma função bem mais restrita e local, consideravam a gratuidade do empréstimo condenadas, a agiotagem e a usura como uma consequência natural de seu caráter de contrato beneficente.

Hoje a regra é o empréstimo de produção. E embora sejam ainda dadas as transformações sociais, passam a vigorar os títulos extrínsecos que se acham ao lado dos empréstimos.

* * *

Deixemos de lado o romantismo dos que não têm outra noção do capital a não ser a que se acha ligada ao “capital colonizador”.

Uma usura voraz corrói o organismo social. Mas “o devedor, hoje, é, na maior parte das vezes, mais rico do que pobre; é o Estado que pede emprestado para multiplicar os  meios de comunicação ou de defesa nacional; são as ricas Companhias que pedem emprestado para desenvolver os seus meios de produção e suas fontes de riqueza. O credor, pelo contrário, é pobre, digno de proteção; é o trabalhador ou o pequeno comerciante, que lança seu dinheiro nos cofres do Estado ou das grandes Companhias para ter, sob forma de juro, uma pequena parte nos lucros das grandes empresas” (Dehon).

Eis porque podemos, sem nenhuma inquietação de consciência, auferir do capital um juro moderado, porque a Santa Sé fez por nós as investigações necessárias e verificou que hoje em dia há sempre um título legítimo para receber tranquilamente esse juro.

* * *

É o que veremos em nosso próximo rodapé, quando daremos um resumo das decisões da Igreja sobre esta questão velha que se renova.

Shylock é um personagem fictício da peça "The Merchant of Venice", do dramaturgo inglês William Shakespeare. Na peça, Shylock é um agiota que empresta dinheiro a seu rival cristão, Antônio, colocando como fiança uma libra da carne de Antônio (Wikipédia). Acima, "Shylock Depois do Julgamento" (Shylock After the Trial), de John Gilbert (fim do século XIX).