Legionário, Nº 708, 3 de março de 1946

Um importante artigo no "Osservatore"

A polêmica entre o "Osservatore Romano", órgão oficioso da Santa Sé, e as emissoras soviéticas, continua. Mas a linguagem é bem diversa de um e de outro lado. Como tudo quanto diz respeito ao problema comunista tem hoje uma terrível atualidade, tentaremos analisar a posição que na polêmica toma cada um dos contendores.

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Os que, em São Paulo ou alhures, ouviram a discussão radiofônica entre o Revmo. Sr. Pe. Saboya de Medeiros, S.J., e o "camarada" Crispim, hão de ter notado a untuosidade macia com que o representante comunista procurava esquivar-se a qualquer declaração peremptória sobre a posição do comunismo em face da Igreja. Era manifesto o seu propósito de fazer supor aos ouvintes que o comunismo não é anticatólico, nem o catolicismo - considerado ao menos em sua essência - não é anticomunista. O conflito entre a Igreja e o Kremlin proviria unicamente da influência exercida pelo fascismo sobre o chamado "alto clero". Este, sem nenhum interesse para o Catolicismo, e no exclusivo proveito da plutocracia fascista, suscitava um conflito fictício entre o Papado e a URSS. Era tempo de passar sobre todas estas misérias, fazer cessar estes abusos, e renunciar a qualquer propaganda anti-soviética. Foi o que, nas entrelinhas, ou antes entre-dentes, insinuou o macio contendor do Revmo. Sr. Pe. Saboya de Medeiros.

Um artigo recente do "Pravda", órgão oficioso do governo soviético em Moscou, transmitido para a imprensa desta Capital pelo telégrafo, dizia pouco mais ou menos a mesma coisa. O articulista ataca fortemente o que chama a "política pró-fascista" do Vaticano, e acusa o Sumo Pontífice de haver feito "um acordo com Hitler, pelo qual Pio XII teria permissão, para converter os povos soviéticos ao catolicismo", em caso de ser vitoriosa a ofensiva nazista contra a Rússia. Como se vê, a diatribe é de caráter pessoal, contra o Papa e sua "política". Mas o jornalista soviético tem o cuidado de deixar à margem, rigorosamente à margem, as questões propriamente religiosas. "Não queremos provocar um conflito religioso, os teólogos que o façam. Porém não podemos ignorar a política filo-fascista do Vaticano". A questão não é com a Igreja ou com a Religião. É com o Papa e a chancelaria vaticana, que se aventuraram em terreno político. E, neste terreno os soviéticos se julgam no direito de os atacar à vontade, sem com isto atacar os dogmas da Religião.

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Evidentemente, a distinção de nada vale. Mas ela tem um ângulo em que, sem ser rigorosamente verdadeira, tem um quê de verossímil. Atacar o Papa é atacar a Igreja. Mas é certo que a Igreja distingue entre os ataques pessoais feitos ao Papa, e os ataques à doutrina católica. Os primeiros são sempre graves, porque o Papa, ainda mesmo na matéria em que possa errar, está acima das censuras e críticas de quem quer que seja. Mas são muito menos graves do que os ataques à doutrina católica, que podem chegar ao delito religioso máximo, que é a heresia.

Ora, sucede que, em mais de um país, certos católicos se têm julgado no direito de endossar, aberta ou veladamente, a acusação de que a Santa Sé se teria inclinado para o lado do nazismo. Católicos de fraquíssimo estofo, e ainda mais fraca formação, sem dúvida. Mas católicos que alegam precisamente sua qualidade de católicos, para fazer seus ataques à Santa Sé, pretendendo demonstrar com isto, que não é o menor ódio à Igreja que os leva à atitude de discrepância que se imaginam no direito de tomar publicamente, em conferências, livros e artigos de jornal.

Se analisarmos mais exatamente as convicções e tendências de tais católicos, não tardaremos em ver que, em grande número de casos, eles são, ao mesmo tempo que muito pessimistas e severos no que toca à Igreja, muito otimistas e indulgentes no que toca ao comunismo. Eles aceitam com surpreendente facilidade a afirmação de que na URSS tudo se encaminha no sentido de uma maior compreensão da Religião, e não ocultam suas esperanças de que o regime russo, evoluindo do comunismo ao socialismo, acabe por se encontrar com o Catolicismo em um terreno conciliatório.

Evidentemente, a reflexão que salta aos olhos é de que também o Catolicismo deveria "caminhar" muito para chegar a este ponto de encontro, já que o socialismo, como tal, também foi condenado pela Igreja. E "caminhar" significa aí "evoluir". Não é difícil perceber que certos espíritos menos prudentes poderão facilmente deslizar, através desta esperança, para o terreno das mais perigosas quimeras.

Deixemos de lado, porém, este aspecto da questão, que não nos interessa diretamente no presente artigo, e focalizemos o objeto que propusemos de início, que é a análise da atitude soviética.

Bem analisadas as palavras do "Pravda", e tantas outras declarações dos comunistas moscovitas e indígenas, vê-se que, se fossem concebidas para alimentar, desenvolver e excitar estas esperanças, não seriam outras do que são. Prudentes, untuosas, lisas e macias mesmo quando ferem a fundo, elas se destinam evidentemente a desacreditar o Vaticano junto à massa dos fiéis, a alimentar nestes a ilusão de um acordo com o comunismo, e a denunciar finalmente como politicagem vil, qualquer atitude de discrepância que a Santa Sé assuma em relação a estas tendências perigosas.

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Para complicar toda esta questão, existe um fator cuja importância jamais será suficientemente encarada. Os católicos - ao menos os do Brasil - mostram certa relutância em compreender os motivos do verdadeiro conflito entre a URSS e a Igreja. Para eles, a luta vem do fato de que os dirigentes russos são pessoalmente ateus, e inimigos da Religião. Alguns chegam a entrever também a inexistência da família, na sociedade comunista, é um empecilho irremediável para uma conciliação, no momento presente, entre católicos e vermelhos. Ainda assim, os que vêem isto não constituem senão uma relativa minoria.

Tudo isto posto, parece que, no fundo, o conflito entre os católicos e os comunistas seria de fácil solução, desde que uns russos piedosos chamassem a si a direção da máquina vermelha, e restaurassem o instituto da família.

É fácil ver que, assim concebido o panorama político, seria difícil explicar a perseverança e a veemência com que o "Osservatore Romano" ataca a URSS.

Daí, a achar que o "Osservatore Romano" faz "política" atacando tanto a Rússia, há apenas um passo.

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Felizmente, o "Osservatore Romano" tem tomado uma atitude muito franca em toda esta questão. E, ainda recentemente, publicou um excelente artigo, de que as agências telegráficas nos transmitiram um resumo que - com surpresa para nós - é inteligível, ortodoxo e fidedigno.

Este artigo faz parte de uma série em que o jornal do Vaticano desenvolve a idéia de que o comunismo é um estado absolutamente tão "totalitário" e ditatorial quanto o nazismo. E faz residir neste ponto, a causa mais delicada, a causa verdadeiramente insanável do conflito entre a Igreja e a URSS.

Com efeito, ainda que a URSS reatasse relações diplomáticas com a Santa Sé e desse liberdade de culto, ainda que restaurasse a instituição da família, continuaria absolutamente incompatível o comunismo com o Catolicismo.

Não é só por sua política anti-religiosa, mas em si mesmo, considerado apenas como regime político-econômico-social, que o comunismo é condenado pela Igreja. E pelos mesmos motivos por que foi condenado o nazismo. Ambos são totalitários. Ai está o nó da questão.

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Esclareçamos um pouco esta idéia. A Igreja tem uma moral. Desta moral decorre uma civilização que é a civilização cristã. O comunismo - visto só enquanto sistema social - visa a realização de um mundo que, nos seus aspectos econômicos, sociais e políticos, é precisamente o contrário de tudo quanto a moral católica preceitua. E, assim, é proibido ser comunista a um católico, como lhe é proibido ser nazista, ou como lhe é proibido sustentar a tese de que o roubo é lícito, a escravização de todos os homens livres é desejável, etc., etc.

Se porventura o comunismo quisesse fazer-se de católico nada estaria mudado na essência das coisas. Como os bandidos da Maffia calabresa, que antes de seus roubos acendiam velas à Madonna para serem bem sucedidos. Esta devoção sacrílega não mudava nada na essência de seu ato, que continuava a ser por sua natureza um pecado de roubo.