Plinio Corrêa de Oliveira

 

 

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A abdicação do homem

 

 

 

 

 

 

Legionário, 24 de fevereiro de 1946, N. 707, pag. 2

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Certo cronista carioca de um dos jornais desta Capital, não faz muito tempo, chamou a atenção sobre um “mistério” da vida nacional que seria o “mistério” dos inativos. Partindo da consideração dos inativos, no sentido técnico do termo, isto é, aqueles que fazem jus a uma remuneração do Tesouro, por conta de uma verba especial que leva o seu nome, sem prestarem mais serviços à administração pública, o cronista começou a lembrar as multidões que, todos os dias, enchem as ruas e as praias, em pura flanação, em autêntica inatividade. Estas multidões estão longe de serem compostas apenas de favorecidos da fortuna; pelo contrário, as mais baixas camadas populares aí estão bem representadas.

E aqui entra o “mistério”: toda esta gente, bem ou mal, de um modo ou de outro, tem de atender às necessidades fundamentais de habitação, vestuário e alimentação. Como o conseguem, se são “inativos”?

Eis aí um ponto importante. Não temos ainda no Brasil nenhum plano Beveridge, nem qualquer programa trabalhista, tipo Bevin-Attlee, em andamento para assegurar aos indivíduos a satisfação inconcussa daquelas três necessidades fundamentais. Entre nós, esta responsabilidade ainda incumbe a cada um de per si, consideradas pessoas de maior idade, capazes de gerir suas pessoas e bens. E, no entanto, acontece o que este cronista observou. É verdade que aqui em São Paulo não há praias, nem se vêm pelas ruas tão grande número de flanadores. Entretanto, há um fenômeno inteiramente paralelo: depois dos recentes aumentos de salário, verificou-se uma alarmante baixa no rendimento do serviço, principalmente o absenteísmo cresceu assustadoramente.

Na Rússia, estes fenômenos foram tão sensíveis que forçaram a adoção do plano Stakhanov, que remunera mais por unidade de serviço quanto melhor for o rendimento do operário. Vê-se, pois, mais uma vez, que o regime socialista, em que o Estado é a providência universal, só se mantém pelo engodo e pela polícia, como consequência do estado de minoridade efetiva a que ficam reduzidos todos os cidadãos. Os súditos do Estado socialista são uma espécie de crianças manhosas e recalcitrantes, das quais só se pode obter alguma coisa com promessas de doces e de palmadas. A tutela absoluta, própria do Estado socialista, é um considerável incentivo para a inércia e a preguiça. Que aconteceria, pois, se aplicada entre nós?

A prerrogativa mais característica da pessoa humana está na capacidade moral de cada um construir a própria vida, podendo fazer de si um artífice reputado, um profissional de nomeada, um chefe de família honrado, um homem de bem, quiçá um santo, com a possibilidade de ser precisamente o contrário, e até um criminoso, tudo isto com as respectivas consequências meritórias ou demeritórias. É por aí que cada um pode realizar uma autêntica personalidade, tomando resolutamente sobre os próprios ombros a empresa de sua vida. Naturalmente esta empresa tem riscos e pode fracassar. Quem não quer aceitar estes riscos não é verdadeiramente um homem, é um derrotado antes da luta, que abdica de sua dignidade e de sua personalidade em mãos de um Estado-tutor. Estes é que formam a massa anônima e passiva, que é o material de que se fazem os Estados totalitários e socialistas.

Evidentemente, uma sociedade bem organizada deve socorrer e amparar os infortunados. Mas isto é a exceção, e não a regra. A regra deve ser a de Pio XI, na Encíclica “Quadragesimo Anno”, tão oportunamente lembrada por Pio XII, em sua última alocução: tudo o que o indivíduo pode desempenhar por si mesmo não deve ser entregue à comunidade. Este é o regime de responsabilidade, exigido pela dignidade espiritual do homem.